Por Pedro Delgado
Fotos: Leandro Cherutti
O tempo sempre foi um agente implacável na história do mundo e da humanidade, já que dificilmente algo se mantém incólume com seu passar. Com a cultura, e mais especificamente a música, não seria diferente. Um bom exemplo é o próprio rock e o extenso guarda-chuva que advém dele. Se há alguns bons anos bastava dizer “sou do rock” pra alguém imaginar seu tipo de som e, com ele, sua identidade, ainda que a percepção popular ainda se valha do estereótipo, a bem da verdade é que se debruçar pelas milhares de ramificações hoje existentes faz do gênero possivelmente o que tem o maior número de subgêneros.
Dentre eles, um que certamente sempre se destacou pela irreverência, agressividade e toda a manifestação de uma contracultura à sociedade e à religião, o metal extremo, sempre sofreu torcidas de nariz justamente por ser a manifestação mais própria dessas críticas através de riffs rápidos, pesados e crus, refletindo o pensamento da época e servindo como base para uma guerra midiática, exatamente pelo ataque direto a um dos elementos mais fundamentais da sociedade: a crença no divino e seus dogmas.
Nomes como Venom, Sarcófago, Death e Hellhammer são apenas alguns dos que criaram uma fundação que ecoa mais de 40 anos depois, servindo de base para expressões musicais contemporâneas que agregam esse legado às questões e necessidades do tempo presente. Porém, é inegável que, junto a isso, nem o irreverente metal extremo ficou ileso ao peso do tempo, passando por transformações que hoje se refletem em novos elementos, como o avant-garde, prog-death e o post-black metal, e novos nomes como Zeal & Ardor, Blood Incantation e Paradise in Flames – bandas que bebem dessa mesma fundação, mas não se limitam apenas à sua gênese, empurrando e levando esse legado a uma nova direção e experimentação.
Ainda assim, embora isso seja uma tendência, não é a regra, já que existem aqueles que provam que algumas raízes são tão profundas — talvez até o mais fundo círculo infernal — que nem mesmo o tempo ousa transformar. E a prova viva disso se deu neste último sábado, 15 de março, em São Paulo, quando o Fabrique Club foi o escolhido para que as portas da escuridão se abrissem pela segunda vez após 12 anos, permitindo que emergissem três figuras sacrílegas vindas do frio finlandês. Eu me refiro, claro, ao blackened death metal do Archgoat.
Formado em 1989 pelos gêmeos Ritual Butcherer (guitarra) e Lord Angelslayer (vocal e baixo), o Archgoat era uma banda que entregava aquilo que você esperaria de alguém chamado Angelslayer: a mais blasfêmica, oculta e anticristã sonoridade, crua e brutal, típica do gênero que de forma viral alcançou muitos jovens numa época em que a internet, como a conhecemos hoje, era apenas um embrião.
Chamando a atenção da cena underground da época, a banda assinou com a Necropolis Records em 92 e lançou seu primeiro EP, Angelcunt (Tales of Desecration), em 93. Logo após entrar em estúdio para gravar seu primeiro álbum, a banda se desentendeu com a gravadora, rompeu o contrato e desapareceu da cena do black metal por alguns anos, até o retorno oficial em 2004. Em constante produção desde então, a banda lançou cinco álbuns, sendo seu material mais recente o EP All Christianity Ends, de 2022.
Se todo o cristianismo acaba, eu não saberia dizer. Mas uma coisa que certamente não acabou foi a importância dada pelo Archgoat à sua estética, conceito e raízes, preservados mesmo após tantos anos, mantendo-se fiéis ao estilo e, como resultado, sendo evocados através dos mais diversos rituais negros ao redor do mundo, como foi o caso também em São Paulo. É importante destacar ainda o detalhe da curadoria feita para a abertura da noite, que contou como banda de apoio The Laws Kill Destroy, capitaneado por Geraldo Minelli, também conhecido como Gerald Incubus, sobretudo em seus dias como baixista e membro fundador da lendária Sarcófago, banda expoente e referência mundial no gênero.
Com um setlist especial composto apenas de bordoadas do Sarcófago, a noite profana se iniciou com a intro de Recrucify, alguns poucos minutos antes do horário previsto, num som pesado que fazia o estômago agonizar e já dava uma boa ideia do que estava por vir. The Black Vomit, hino saído de The Laws of Scourge, inaugurava as primeiras batidas, com toda a agressividade característica dos riffs do Sarcófago, junto àquelas marretadas de bateria que, nas mãos de Morto, passaria a ser provavelmente também o nome de seu instrumento até o final da noite.
Com uma sonoridade crua e direta, Pedro Nicolsky nos vocais, contrastando com os demais músicos pela sua camiseta vermelha, mandou aquele “hail satan” pro público antes de iniciar Satanas, música que dificilmente você tocaria na casa de sua vózinha. Com aqueles riffs caóticos e uma intensidade que só aumentava, os guturais pesados pareciam capazes de abrir uma fissura no meio da pista, permitindo que as demais criaturas malignas participassem do bate-cabeça.
“Este é um tributo à banda mais desgraçada do Brasil”, disse Pedro antes de iniciar Satanic Lust, primeira faixa do álbum I.N.R.I., que já nas primeiras distorções da guitarra fazia os presentes gritarem em clamor e voltarem ao bate-cabeça. Este, aliás, era composto pelas mais variadas gerações, mas parecia brilhar mais os olhos daqueles que vivenciaram de perto o Sarcófago.
Aquecendo cada vez mais a plateia, que ia aos poucos aumentando (devido àqueles que chegavam surpresos pelo início adiantado), com aquele “Fuck Jesus Christ” de boca cheia, a intro da faixa-título do álbum, I.N.R.I., se iniciava, anunciando que a brutalidade e o sacrilégio estavam apenas começando. Fechando com a quadra de I.N.R.I., Deathrash parecia nos transportar diretamente pros anos 80, com toda a velocidade que te fazia questionar se Morto estava realmente “morto” na bateria – afinal, suas violentas batidas ritmadas contrariavam a lógica com tamanha precisão.
Com o fôlego tendo sido roubado do público após um petardo atrás do outro, era o momento de relaxar e se entregar a todo o deleite luxurioso com a intro de The Lust, do EP Rotting, que provoca com gemidos e ruídos de prazer, que, dada a ambientação (e a simbologia trabalhada), você imaginaria algo muito errado acontecendo na cena. Isso serviu, claro, para a chegada de Sex, Drinks & Metal, música que não só mostra que o “descanso” já tinha acabado, como presenteia o público com momentos marcantes, com destaque ao baixo de Geraldo Minelli e às rápidas pausas ao longo da faixa, que serviam como um breve momento pra respirar antes da selvageria crua que é esse clássico, contando ainda com belos e hipnotizantes riffs nas mãos de Igor Podrão e Cesar Pessoa.
Logo após seu fim, adentrava ao palco uma figura curiosa, com toda aquela vestimenta característica “raiz” do metaleiro, com cintos de balas e spikes por todos os lados, segurando ainda uma garrafa de uísque em cada braço. Esse era Rodrigo Malevolent, também vocalista e um dos idealizadores do projeto, que passava a assumir os vocais pelo resto do show e que, com saudações pra lá de cordiais como “fuck you, Jesus Christ. Bora lá, seus fodidos…”, era o suficiente pra causar o júbilo do público pro início de The Laws of Scourge.
A mudança com a faixa-título do álbum homônimo não diminuiu o ritmo — muito pelo contrário, aumentou ainda mais e trouxe um novo frescor, principalmente pela presença de palco de Malevolent, que facilmente colocou todos em suas mãos (e suas almas nos bolsos). Screeches from the Silence na sequência fazia todos gritarem e clamarem pela performance, com direito a poderosos agudos de Malevolent.
Nunca antes eu tinha visto um público que a cada xingamento gritava em animação e comemoração. Pois era assim que Malevolent, sempre com um “boa noite, seus fodidos. Vamos nessa!”, seguia puxando cada música. Mas, com certeza, os destaques da noite ficam pra dupla final: Midnight Queen, uma das mais emblemáticas do Sarcófago, que antes de seu início Malevolent fazia questão de dizer, com aquela voz que dava peso e pesar, “Ela só tinha 16 anos! Ela é a rainha!” Uma visceral e triste música que reconta a vida de uma jovem guiada à vida da noite como consequência de uma adolescência difícil, alvo do moralismo e com um final trágico, encenado por Malevolent ao usar o cabo do microfone pra simular o enforcamento da rainha.
Se aqui os fãs achavam que não poderiam ir mais à loucura, com o simples dizer “o pesadelo vai pegar”, todos sabiam que significava a chegada de Nightmare, faixa que inclusive inaugurou o primeiro mosh da noite, trazendo toda a agressividade primitiva e crua do Sarcófago, com direito ainda a um Gerald que desceu do palco pra tocar parte da música em meio à multidão.
Com mais um “Fuck Jesus”, que a essa altura já era de lei, e o baixo tocando a marcha fúnebre, chegava ao fim o tributo que mais pareceu uma viagem no tempo e ao mesmo tempo uma aula de história e também de perpetuação de legado, cortesia do The Laws Kill Destroy.
Passado esse momento e à medida que agora era possível recobrar (temporariamente) o fôlego, o ambiente de um Fabrique, agora já mais cheio (embora longe de sua lotação completa), passava a ser coberto de fumaça, criando uma atmosfera sinistra e de mau agouro entre as cabeças ali presentes. Não demorou pra que Goat Aggressor adentrasse o palco, se posicionando atrás da bateria e segurando as baquetas pra formar o sinal da cruz invertida. Com isso, Ritual Butcherer e Lord Angelslayer apareciam, como uma imagem saída dos discos antigos, com aquele corpse paint e vestimentas bem old school/faça você mesmo, poucas palavras e muita atitude.
Heavens Ablaze, faixa do álbum Worship the Eternal Darkness, o mais recente, de 2021, era o que dava o tom pra apresentação envolvente e intensa do Archgoat, com destaque logo de cara para insanidade rítmica a cargo de Goat Aggressor, quase ofuscando os irmãos, não fosse também pelos riffs viscerais e o gutural marcante de Lord Angelslayer, grave e praticamente inaudível, que te faz pensar que, se no inferno existir algum tipo de som, com certeza seria em seu timbre.
Com uma iluminação que deixou a sequência em quase absoluto blackout, crescia em intensidade Lord of the Void, faixa de Whore of Bethlehem, que, se em sua versão gravada chama a atenção pelo nível de crueza proposital, ao vivo parece transpor isso pros palcos de uma forma autêntica. Guiados pelos coros de “ei, ei, ei”, o público parecia totalmente convertido e pronto pra assinar o contrato maligno. Foi aqui também que nasceu o segundo (e último) mosh da noite, mas isso não significa um público desanimado — pelo contrário, chifres, punhos, blasfêmias (e até um “vai, Corinthians!”) eram jogados em meio à música do Archgoat, que, de forma rítmica e hipnotizante, com desacelerações e acelerações no tempo, prendia a atenção de todos.
Se nesse começo Goat Aggressor já tinha chamado a atenção, em Jesus Christ Father of Lies ele rouba totalmente a cena, a ponto de você questionar se o que tava sentado na bateria era um homem ou uma britadeira. Isso, claro, em perfeito contraponto a Ritual Butcherer em seus solos limpos, quase angelicais em meio ao piche do profano que se realizava ali. Os coros gregorianos ao fundo, pelo sistema de PA, intensificavam esse tom – jocoso até – da inversão do sagrado. Uma verdadeira blasfêmia comemorada, diga-se de passagem.
“Isso é uma aula”, disse uma pessoa próxima a mim, um reflexo do que parecia ser o êxtase e o completo deslumbre causado pelo trio naquela noite. Outra faixa que irrompeu o público em regozijo foi com os barulhos incômodos dos guinchos de porcos, sinalizando o início de Messiah of Pigs, título recebido com muita animação, com mãos aos ares e em direção à banda. Butcherer, nesse sentido, respondia com olhares, expressões e ocasionais “thank you”, mas sempre de forma bem comedida. Angelslayer, por outro lado, se continha ainda mais, dificilmente se dirigindo ao público para dizer algo além dos títulos das músicas e tendo como conexão apenas os horns ao ar.
E não que isso fosse mal visto pelos presentes — muito pelo contrário, na verdade. Ainda que tendo dito algumas pequenas sentenças (inaudíveis na maioria, e não por questões de som), a entidade que Angelslayer se tornava parecia ser apenas um receptáculo do mais puro caos e trevas, confirmando o apreço dos músicos por sua visão inexorável em relação à sua arte.
Rise of the Black Moon (título curioso pra uma época em houve um eclipse lunar poucos dias atrás), primeira de Angelcunt (Tales of Desecration), não só marcava o início da leva de músicas concebidas nas profundezas do abismo do Archgoat, como trazia, em meio a todo seu ocultismo, elementos que criavam uma atmosfera macabra, como badaladas de sino e cantos gregorianos, que parecem extremamente errados de tão bem que se encaixam com a proposta.
Nessa mesma pegada de elementos complementares, os constantes gemidos pelas caixas de som, quebrados pelo som de uma cabra, anunciavam a chegada de Goddess of the Abyss of Graves, enquanto Angelslayer, nesse momento, simulava a cena profana com seu baixo — o que, curiosamente, foi o único movimento mais amplo feito pelo músico ao longo do show. Aqui, o grande destaque se deu por um berro grave em meio ao seu gutural, que parecia vir do fundo ácido dos caldeirões que servem como tortura para as almas impuras em seu estômago.
Sem tempo pra respirar, os fãs gritavam em clamor quando os primeiros segundos de Nuns, Cunts & Darkness começavam. Diretamente de The Apocalyptic Triumphator, outra música que traz o elemento marcante dos sinos infernais, essa favorita dos fãs serviu como base pro louvor de cabelos indo pra trás e pra frente, à medida que, somado à voz de Angelslayer, o PA estralava com uma segunda voz sobreposta, mais grave e infernal, daquelas que, após ouvir, você precisaria de algumas boas noites de sono com a luz acesa pra dormir em paz.
Destaque também para Grand Luciferian Theophany, música mais lenta, daquelas arrastadas tanto pela guitarra quanto pela voz, que, em sua atmosfera ritualística e entre suas muitas letras profanas, finalizava com um “Hail Satan, Hail Lucifer” novamente pela voz alterada, automaticamente replicado pelo público, em completo acordo e aceitação com os termos de serviço do “coisa-ruim”. A faixa serviu ainda como a despedida pré-encore, antes da saída temporária dos músicos, que, sob gritos e aplausos, retornaram rapidamente pra finalizar o ritual iniciado.
Iniciando com outra de uma série de três do primeiro EP, Black Messiah vinha para mostrar que ainda havia muito combustível no tanque de enxofre da noite, com novamente os característicos elementos de desaceleração e aceleração que traziam toda a fúria da banda. Death and Necromancy e Soulflay vieram na sequência, numa viagem pras raízes pútridas do Archgoat, enaltecendo todas as palavras luciferianas da cabra mestra.
Derrubando a última gota pra findar o ritual e selar o destino dos presentes, Penis Perversor, talvez a única música com um nome mais à la quinta série, foi a escolhida. Apesar do título, ela reflete toda a artesanalidade e, novamente, a preocupação com a manutenção de sua essência na arte, sendo um ótimo exemplo disso, já que originalmente não está presente em nenhum álbum – foi lançada em 93 como uma demo que, pra obter uma cópia, era necessário enviar um VHS em branco mais os custos. Se isso não é a própria epítome do underground pra se finalizar um show, eu não sei o que é.
Mas o fato é que, apesar de uma noite bem movimentada, com diversas outras apresentações de outros gêneros acontecendo, a demonstração vista no Fabrique foi um grande momento de ter contato não apenas com a história do metal extremo, mas pela autenticidade e o esforço de manter viva uma chama que, acima de tudo, preserva uma identidade e um conceito em seu estado mais puro. Arriscaria dizer que não necessariamente porque o momento atual seja ruim, mas porque a ele carece justamente incorporar de forma mais direta as questões e simbologias que são praticamente a antítese de uma força motriz que movimentou o mundo por milênios, questionando o status quo e deixando sua marca, através da música, para as novas gerações.
E, ah, antes que eu me esqueça: após o encerramento, os irmãos gêmeos, que parecem uma figura trazida do vazio e duplicada, estavam lá, cumprimentando e saudando seus fãs, provando que até mesmo na bíblia negra são seres de carne e osso.
Setlist The Laws Kills Destroy
Recrucify (Intro)
Black Vomit
Satanas
Satanic Lust
INRI (Intro)
INRI
Deatrash
The Lust Intro
Sex, Drinks & Metal
The Laws of Scourge
Screeches from the Silence
Prelude to a Suicide
Orgy of Flies
Midnight Queen
Nightmare
Setlist Archgoat
Heavens Ablaze
Lord of the Void
Jesus Christ Father of Lies
The Apocalyptic Triumphator
Goat and the Moon
Messiah of Pigs
Darkness Has Returned
Rise of the Black Moon
Goddess of the Abyss of Graves
Nuns, Cunts and Darkness
Hammer of Satan
Grand Luciferian Theophany
Bis
Black Messiah
Death and Necromancy
Soulflay
Penis Perversor
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