Por Luiz Tosi
Fotos: Pati Patah
Bruce Dickinson tem no Brasil quase que sua segunda casa. Isso é reflexo de uma conexão profunda tanto pessoal quanto musical com o país. Essa relação é tão significativa que São Paulo se destaca como a cidade com o maior número de ouvintes mensais do Iron Maiden no Spotify em todo mundo. Além do Maiden, Dickinson ainda tem um histórico de apresentações solo marcantes no Brasil, incluindo performances no Olympia em 1995, no festival Skol Rock de 1997 e no também extinto Via Funchal em 1999 – apresentação essa que deu origem ao aclamado álbum ao vivo Scream From Me Brazil. Em 2023, ele enriqueceu essa trajetória com shows acompanhados de orquestra em homenagem a Jon Lord (Deep Purple/Whitesnake) e participações como palestrante em eventos como a Campus Party, CCXP e no festival Summer Breeze Brasil.
Em meio a uma pausa na agenda do Iron Maiden, Bruce lançou seu aguardado novo álbum solo, o ambicioso The Mandrake Project, uma aventura audaciosa que leva o público à uma viagem épica, explorando temas de renascimento, introspecção e a eterna busca pela verdade. O trabalho não é apenas um álbum, mas também uma série de quadrinhos, destacando a versatilidade criativa de Dickinson e sua capacidade de entrelaçar várias formas de arte. A apresentação deste sábado (04) no Vibra São Paulo (SP) foi a última de uma série em solo brasileiro. Antes, Bruce passou por Curitiba, Porto Alegre, Brasília, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Ribeirão Preto.
Apesar do excelente público, os ingressos não se esgotaram, o que merece uma reflexão. Conhecido por suas declarações polêmicas, Bruce criticou, em entrevista à ATMósferas Magazine, os preços abusivos na indústria de shows, mencionando o valor exorbitante de 1.200 dólares para os shows do U2 na recém-inaugurada The Sphere, em Las Vegas. Contudo, parece mais razoável que um americano ou turista em Las Vegas pague 1.200 dólares por um espetáculo de visual único do que um fã brasileiro, que rala todos os dias, desembolse R$ 960,00 (isso, novecentos e sessenta reais!) por um show em pista comum, em pé, sem nenhuma produção especial, vendido como “um show analógico (…) como se fosse 1972′”, conforme Bruce mencionou em entrevista coletiva. Isso evidencia uma desconexão notável entre suas críticas e os valores praticados em suas próprias apresentações.
Após serem escalados de última hora devido a um imprevisto de saúde com um dos membros da Clash Bulldog’s, a banda originalmente programada para a abertura, coube ao Noturnall a tarefa de aquecer o público. Thiago Bianchi (voz), Saulo Xakol (baixo) e Henrique Pucci (bateria), acompanhados pelo novato Victor Franco (guitarra), tiraram o desafio de letra, com uma performance sólida e contagiante. Comunicativo na medida certa, Thiago se mostrou muito em forma, alternando facilmente entre notas altas e guturais profundos. Excelente show.
Às 22:10, os sistemas de som deram início à introdução de The Invaders (uma popular série de ficção científica americana dos anos 60), seguida pela vinheta Toltec 7 Arrival. A abertura de Bruce Dickinson com Accident of Birth, seguida de Abduction, estabeleceram o tom para uma noite que prometia ser memorável, dado o volume com que o público cantou cada palavra. A terceira, Laughing in the Hiding Bush, ressoa ainda mais forte hoje, com uma sonoridade mais pesada e alinhada aos discos mais recentes.
Ao som do tradicional coro “Olê, olê, olê, olê, Bruce, Bruce”, o vocalista deu as boas-vindas ao The Mandrake Project, seguido pela nova e muito bem recebida Afterglow of Ragnarok. Em Chemical Wedding, um dos seus maiores sucessos solo, fomos todos transportados de volta ao mencionado lendário show no Via Funchal em 1999. Outra faixa do The Mandrake Project, Many Doors to Hell, com seu riff ao estilo Scorpions, ainda parecia ser desconhecida por muitos fãs. Já Gates of Urizen, estrategicamente posicionada no setlist, introduziu uma atmosfera mais introspectiva. O repertório do The Mandrake Project se expandiu com as cinematográficas Resurrection Men e Rain on the Graves. As novas faixas se mostraram ainda melhores ao vivo.
Aos 65 anos e tendo superado um câncer de língua, Bruce ainda impressiona com performances que muitos novatos invejariam. Ele parece encontrar ainda maior facilidade e conforto ao interpretar suas músicas solo do que as do Iron Maiden. Isso pode ser devido ao fato de que, em sua carreira solo, Bruce opte por manter as afinações originais das músicas, que se alinham melhor à sua extensão vocal atual.
Sem se apoiar em nomes como Adrian Smith ou Roy Z, o cantor montou um time de músicos escolhidos a dedo. Dave Moneno (bateria), Mistheria (teclados), Tanya O’Callaghan (baixo), Philip Naslund (guitarra) e Chris Declerq (guitarra) não apenas complementam sua visão artística, mas também trazem suas próprias nuances e energias para o palco, criando um som coeso que soa fresco e, ao mesmo tempo, familiar para os fãs de longa data. Orgulhoso de sua banda, carinhosamente denominada The House Band of Hell, Bruce proporcionou momentos para que todos brilhassem, especialmente com um cover inusitado da faixa instrumental Frankenstein, do The Edgar Winter Group. Nessa ocasião, ele se juntou aos músicos na percussão, arriscando até um solo junto ao baterista e protagonizando um dos momentos mais descontraídos da noite.
Retornaram com a pesada e arrastada The Alchemist, uma espécie de continuação de Chemical Wedding, e então veio uma das mais esperadas da noite: Tears of the Dragon. Essa música é tão marcante que muitas pessoas a conhecem de cor sem nem saber quem a canta. A faixa ganhou o protagonismo que merece com uma bela introdução acústica e um espetáculo de lasers, criando um dos momentos mais catárticos do show.
Encerrando o set regular, a magnífica Darkside of Aquarius enlouqueceu os fãs. A melhor do show, na minha opinião.Outro aspecto que capturou a atenção de todos foi a qualidade impecável do som. Frequento o Vibra SP (antigo Credicard Hall) desde sua inauguração, em 1999, e confesso que não me recordo de ter ouvido um som tão perfeito na casa quanto neste sábado. Os méritos vão para Bruce, que trouxe consigo Ken ‘Pooch’ Van Druten, engenheiro de som do Iron Maiden, renomado por seus trabalhos com artistas como Justin Bieber, Jay-Z, Whitney Houston, Linkin Park e Kiss.
No retorno para o bis, Bruce lembrou que voltará ao país ainda este ano para dois shows com o Iron Maiden e, em seguida, revelou uma notícia que deixou os fãs eufóricos: “Talvez eles (Iron Maiden) não estejam aqui em 2025. Mas, eu estarei. Voltarei a vê-los então.” Logo após, dedicou Navigate the Seas of the Sun ao povo do Rio Grande do Sul, que foi duramente afetado por temporais na última semana. O encerramento da música, com suas belas harmonias vocais, foi emocionante. A energia restante foi consumida pelo peso de Book of Thel e The Tower, ambas entre as favoritas de todos os fãs, presentes no álbum Chemical Wedding.
Bruce havia anunciado que o repertório da turnê se concentraria em seus quatro álbuns mais recentes: Accident of Birth (1997), The Chemical Wedding (1998), Tyranny of Souls (2005) e The Mandrake Project (2024). O setlist foi muito bem montado, mas confesso que adoraria ter visto Road to Hell, mais faixas de Balls to Picasso e pelo menos Tattooed Millionaire, mesmo entendendo que esta poderia ficar deslocada no show. Apenas não me pergunte quais eu tiraria…
A esporadicidade com que se vê Bruce em apresentação solo é tão grande que essa noite ficará marcada como uma celebração de uma carreira lendária, um reencontro com os fãs e uma visão do futuro do vocalista na música. À medida em que Dickinson continua a explorar novos horizontes criativos, seu legado como um dos maiores vocalistas de heavy metal de todos os tempos é assegurado.
Setlist Noturnall
Try Harder
No Turn at All
Fight the System
Cosmic Redemption
Wake Up
Reset the Game
Nocturnal Human Side
Setlist Bruce Dickinson
Intro: The Invaders / Toltec 7 Arrival
Accident of Birth
Abduction
Laughing in the Hiding Bush
Afterglow of Ragnarok
Chemical Wedding
Many Doors to Hell
Gates of Urizen
Resurrection Men
Rain on the Graves
Frankenstein(The Edgar Winter Group cover)
The Alchemist
Tears of the Dragon
Darkside of Aquarius
Navigate the Seas of the Sun
Book of Thel
The Tower
Siga o canal “Roadie Crew” no WhatsApp: