Por Rogério SM
Fotos: Tiago Rossi
A história do punk britânico não seria a mesma sem o Buzzcocks. Formada em Manchester, em 1976, a banda foi uma das responsáveis por unir a fúria do punk com melodias irresistíveis e refrãos que grudam na cabeça. Décadas se passaram, o mundo mudou, mas a urgência das músicas permanece intacta. Não só isso: mais uma prova de que a perseverança, quando feita com o coração, vale a pena. Desde a morte do fundador Pete Shelley, em 2018, havia quem duvidasse se o Buzzcocks conseguiria seguir em frente. Afinal, Shelley não era apenas o vocalista, mas também o principal compositor e um dos pilares da banda. Só que o que se viu no palco foi a materialização de uma decisão tomada com a paixão e a convicção de quem entende que o legado do punk precisa continuar seguindo. Steve Diggle, agora como frontman absoluto, assumiu o protagonismo com uma postura que alterna carisma, rebeldia e uma entrega impressionante. O show é dele – do primeiro acorde ao último refrão.
E foi exatamente isso que se viu na noite de 24 de maio em um Carioca Club lotado: uma celebração catártica de quase 50 anos de história, marcada tanto pela reverência ao passado quanto pela força do presente. Diggle, com recém-completados 70 anos (seu aniversário é em 7 de maio), se mostrou uma verdadeira força da natureza. Não apenas continua levando o nome do Buzzcocks em frente, como o faz longe de ser uma paródia de si mesmo. Ao contrário, sua energia e talento passam a certeza de que o grupo ainda continuará por anos e anos.
Antes, tivemos os belíssimos shows de Sweet Suburbia e Excluídos, filhos diretos do citado legado de Shelley e Diggle. As duas bandas entregaram apresentações convincentes, combinando a energia do punk com melodias instigantes e convidativas, especialmente o Excluídos, que, não por acaso, contava com uma base sólida de fãs na frente do palco. Seja como for, a influência do Buzzcocks esteve presente nos dois shows. Por isso, a expectativa para a entrada do grupo inglês era enorme. E, no melhor estilo punk de surpreender a plateia, a banda abriu os trabalhos com um de seus maiores clássicos: What Do I Get?, geralmente tocada no final do set. Com metade do público de boca aberta e a outra agitando sem parar, Diggle ganhou a casa de cara. A partir daí, não houve respiro. Sua voz rasgada e um tanto esganiçada, guitarra afiada e sua presença magnética comandaram a plateia, que respondeu à altura, cantando cada verso, cada refrão.
Se a ausência física de Shelley poderia soar como uma sombra, o que se viu foi exatamente o contrário: o espírito da banda estava mais vivo do que nunca. Diggle se colocou à frente não como um substituto, mas como um legítimo herdeiro do próprio legado que ajudou a construir desde os primórdios. Com seus riffs sujos, sorrisos marotos e olhares desafiadores, ele transforma cada música em um hino de resistência, de vida e de amor pelo rock. Andava de um lado para o outro do palco, interagia com os presentes e pedia constantemente para que todos acompanhassem com palmas os sucessos que vierem um atrás do outro.
O setlist, aliás, foi uma aula de punk. Logo no começo, o grupo emendou Harmony in My Head, I Don’t Mind, Everybody’s Happy Nowadays e Senses out of Control. Mesmo com o som das guitarras oscilando um pouco, a vibração era tamanha que todos pulavam e cantavam sem parar. A atual formação não deixava a energia de Diggle cair. O baixista Chris Remington ficava mais concentrado, enquanto o baterista Danny Farrant batia forte e conduzia tudo como um reloginho. Dando apoio também nos backing vocals, o guitarrista Mani Perazzoli segurava a onda para Diggle brilhar.
Enquanto Fast Cars e Sick City Sometimes mostravam o lado mais “garageiro” do Buzzcocks, Isolation e Autonomy provavam que o grupo não é de “uma nota só”. Curiosamente, foi nas mais introspectivas Bad Dreams e especialmente na quase dub Why Can’t I Touch It? que o público mostrou animação ímpar. A última, aliás, foi cantada em uníssono e mostrou como a banda inglesa possui um alcance artístico que vai além do punk tradicional.
Diggle não mostrava um pingo de cansaço e, se a idade está chegando, como ele mesmo já declarou, no palco parece que isso não conta: foi conduzindo a apresentação sem perder o foco em nenhum momento. A cada música, o Buzzcocks mostrava como entregar um show robusto e com muita energia. Destination Zero, Love You More, a absurdamente contagiante Orgasm Addict e Manchester Rain hipnotizaram os presentes. Já era muito, mas ainda tinha mais.
Após uma breve pausa, a banda volta para o bis (ou seria mais uma segunda parte do show?) apenas com Diggle no palco e seu violão. Sorrindo, ele apontava para o próprio peito: o lendário punk mostrou que também é fã de futebol e trajava com orgulho uma camisa do Santos Futebol Clube. E assim deu início à bela e agridoce Love Is Lies, com o restante do grupo entrando no meio da música. Em seguida, pedradas como Promises, Why She’s a Girl from the Chainstore e Just Got to Let it Go mantiveram a energia no topo. Diggle puxava um “olê olê olê” a todo instante e o público retribuía sem pestanejar.
O final veio com Boredom e Chasing Rainbows, mas a essa altura todos estavam aguardando ansiosos o encerramento apoteótico com Ever Fallen in Love (With Someone You Shouldn’t’ve). Já nos primeiros acordes do clássico absoluto do grupo, o Carioca Club foi transformado em um coral gigantesco e emocionado. Após pouco mais de uma hora e meia de show, Diggle fez questão de puxar um último “olê, olê, olê” e entregar algumas palhetas em mãos para felizardos que estavam na primeira fila.
No fim, ficou claro que o Buzzcocks de hoje não é apenas uma homenagem ao passado, mas uma banda que continua entregando o que se espera dela. E Steve Diggle, com sua postura indomável, deixa um recado que ecoa forte: enquanto houver vontade, paixão e uma guitarra plugada, o punk vive. E muito.
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