Por Leandro Nogueira Coppi
Fotos: Andre Santos
Foi como um blast beat na cabeça: de sopetão, no início de abril, a produtora Overload anunciou para o mês seguinte o retorno do Carcass ao Brasil, com datas em São Paulo (SP) e Belo Horizonte (MG). Minha reação imediata foi pensar que, ao menos em São Paulo, o show seria um fracasso de público. Por dois motivos: primeiro, porque fazia só um ano que os pioneiros ingleses do goregrind tinham tocado no país — no festival Summer Breeze, agora chamado Bangers Open Air; e segundo, porque, poucas semanas antes, muita gente já tinha torrado uma boa grana para prestigiar dois dos maiores festivais de metal da atualidade, o próprio Bangers Open Air e o Monsters of Rock. Mas, para minha surpresa, o Carioca Club estava abarrotado de gente para receber o Carcass.
Merecido para a Overload, que, além de arriscar em uma turnê relâmpago, acertou em cheio ao programar o início do show para as 20h30. Em tempos em que casas como o Tokio Marine Hall e o Manifesto Bar – que não são de fácil acesso – têm a teimosia de iniciar seus eventos tarde demais, forçando o público a sair às pressas ou enfrentar uma via-sacra para voltar para casa, é um alívio ver um show começar pontualmente e terminar em horário civilizado – ainda mais em uma cidade violenta como São Paulo. Uma decisão simples, mas que demonstra respeito e organização. Que tapa!
Foi de arrepiar o clima que se instalou no local quando, ao som mecânico, começou a ressoar o riff incial de The Living Dead at the Manchester Morgue, faixa do EP Despicable, de 2020. Uma bandeira do Brasil com o logo do Carcass, cuidadosamente estendida de modo a cobrir o amplificador do guitarrista e fundador do grupo, Bill Steer, simbolizava a conexão entre a veterana banda de Liverpool e a plateia que vibrava ansiosa. A euforia aumentou quando Daniel Wilding surgiu em pé atrás de seu kit de bateria, sinalizando ao público com suas baquetas, enquanto o “novato” guitarrista Nippy Blackford (Amulet, Human Experiments) – na banda desde 2023 – atravessava o palco. Quando Steer apareceu, os gritos ficaram ainda mais inflamados. Na mesma intensidade, o público recebeu o outro veterano da banda, o vocalista e baixista Jeff Walker, que surpreendeu ao aparecer de cabelo curto e sem tingimento, assumindo os grisalhos. Rompendo a introdução, o quarteto desferiu Unfit for Human Consumption, faixa do álbum Surgical Steel (2013), marco do renascimento do Carcass após um silêncio de 17 anos desde Swansong, cuja imagem estava estampada no pano que cobria o praticável da batera de Wilding.
Se já na primeira música o Carcass viu o público da pista entrar no mosh pit, no início da próxima – a mais conhecida da carreira da banda e talvez a favorita da maioria dos fãs -, Buried Dreams, do fantástico álbum Heartwork (1993), o grupo foi acompanhado em coro. Falando em Heartwork, grande parte do repertório do show foi justamente baseado nesse álbum, considerado uma obra-prima do death metal e um divisor de águas que consolidou a transição que o Carcass vinha buscando desde o antecessor Necroticism – Descanting the Insalubrious (1991). Com isso, a banda se afastava da crueza rústica e gonorrenta dos dois primeiros discos – Reek of Putrefaction (1988) e Symphonies of Sickness (1989) – que se tornaram cult para os amantes do splatter. Com um som bem mais técnico e melódico, Heartwork foi o alicerce para o chamado death metal melódico de Gotemburgo, influenciando bandas como In Flames e Soilwork, por exemplo. Desse clássico – gravado ainda com Ken Owen, que desde 1999 não consegue mais tocar bateria como antes devido a um derrame cerebral, e Michael Amott, guitarrista que, após deixar o Carcass, fundou o Arch Enemy – foram executadas as pérolas No Love Lost (imperdoavelmente não tocada no Summer Breeze), Death Certificate, This Mortal Coil e a própria Heartwork.
Em termos de repertório, o Carcass apresentou um belo apanhado de seus sete álbuns de estúdio, incluindo a faixa-título do EP Tools of the Trade. Assim sendo, 316L Grade Surgical Steel e Captive Bolt Pistol, além de Kelly’s Metal Emporium, Dance of Ixtab (Psychopomp & Circumstance March No. 1 in B) e The Scythe’s Remorseless Swing – extraídas respectivamente dos álbuns Surgical Steel (2013) e Torn Arteries (2021), que marcam a retomada das atividades do Carcass em 2007 – se misturaram a outras dos primórdios da banda, como a instrumental Genital Grinder e Pyosisified (Rotten to the Gore), ambas do debut Reek of Putrefaction, além de Ruptured In Purulence, do sucessor Symphonies of Sickness.
Já o mencionado Necroticism – Descanting the Insalubrious foi representado pelas clássicas Incarnated Solvent Abuse e Corporal Jigsore Quandary, além da pouco lembrada Carneous Cacoffiny. Por sua vez, Swansong foi apresentado em doses homeopáticas: suas músicas Tomorrow Belongs to Nobody, Black Star e Keep on Rotting in the Free World (um trocadilho genial com Keep On Rockin’ in the Free World, de Neil Young) não foram executadas na íntegra, mas surgiram costuradas a outras músicas.
Individualmente, os grandes destaques do Carcass continuam sendo seus integrantes mais antigos, Bill e Jeff. Com seu visual setentista e uma semelhança impressionante com o guitarrista Doug Aldrich (The Dead Daisies), Bill é dono de timbres inconfundíveis – sujos na medida certa nos riffs e cristalinos nos solos absurdos que despeja, especialmente nas músicas dos álbuns a partir de Heartwork. Em vários momentos, dançou e sorriu para o público, quebrando com leveza a habitual carranca que o som do Carcass carrega. Já Jeff Walker, embora nem sempre seja lembrado por sua técnica, é um baixista bastante competente e um dos frontmen com uma das vozes mais cáusticas do death metal. Nesta apresentação, por várias vezes ele descia ao degrau mais baixo do palco para se aproximar do público e arremessava palhetas aos fãs. No entanto, em termos de comunicação, Walker estava mais contido do que o habitual, limitando-se a poucas palavras ao longo do show.
Nos quesitos técnicos do show, se por um lado a iluminação deixou a desejar – especialmente para os fotógrafos -, por outro a qualidade de som manteve-se impecável do início ao fim. E isso foi crucial, pois valorizou especialmente as guitarras de Jeff e Nippy, além da regulagem precisa de Daniel Wilding: principalmente bumbos, caixa e tambores soavam lindamente bem timbrados. Tão rápido quanto chegou o dia do show em relação ao pouco tempo que ele havia sido anunciado, foi também a passagem do Carcass pelo palco do Carioca Club. A pouca comunicação de Walker, a ausência de bandas de abertura e um setist conciso e bem amarrado contribuíram para a sensação de que os cerca de noventa minutos passaram voando. Ao fim, o que ficou foi a impressão nítida de ter assistido não apenas a um show, mas a mais uma aula, literalmente cirúrgica, de death metal.
Carcass setlist:
Unfit for Human Consumption
Buried Dreams
Kelly’s Metal Emporium
Incarnated Solvent Abuse
No Love Lost
Tomorrow Belongs to Nobody / Death Certificate
Dance of Ixtab (Psychopomp & Circumstance March No. 1 in B)
Black Star / Keep on Rotting in the Free World
Genital Grinder
Pyosisified (Rotten to the Gore)
Tools of the Trade
The Scythe’s Remorseless Swing
316L Grade Surgical Steel
This Mortal Coil
Corporal Jigsore Quandary
(Bis)
Captive Bolt Pistol
Ruptured In Purulence / Heartwork
Carneous Cacoffiny
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