Por Valtemir Amler
Se você não ficou com os olhos e ouvidos fechados pelas últimas duas décadas, certamente ouviu falar de Charlotte Wessels. Afinal a vocalista foi uma das principais forças responsáveis pelo sucesso da banda de metal sinfônico holandesa Delain, engrandecendo com sua voz seis dos oito álbuns completos de estúdio do grupo (todos de Lucidity, de 2006, até Apocalypse & Chill, de 2020), e possuindo reconhecidamente uma das melhores vozes de todo o cenário, tendo por isso aparecido em inúmeros projetos ao longo dos anos. Oficialmente fora do Delain desde 2021, ela não perdeu tempo e foi logo mostrando uma nova faceta do seu talento, algo que veio muito a calhar aqui, em seu projeto solo, que simplesmente carrega seu nome. Reconhecida como uma talentosa cantora de metal, jazz e música clássica, ela aproveitou toda a imensa gama de oportunidades contidas entre esse e outros estilos para criar canções cujas estruturas musicais variam do pop alternativo melancólico ao rock com infusão de sintetizadores, conectando elementos atmosféricos com sons mais pesados e cruzando fronteiras de gênero com facilidade. Se musicalmente Wessels apresenta algo diferente, também é diferente a metodologia de trabalho: impulsionada pelos seus apoiadores no Patreon, a vocalista veio compondo, gravando e divulgando uma música por mês na plataforma. Todas as canções do primeiro ano desse projeto aparecem no álbum Tales From Six Feet Under (2021), ao passo que as canções apresentadas no segundo ano estão em Tales From Six Feet Under Vol II (2022). Confira o que ela nos contou sobre essa nova etapa na sua vida.
Olá Charlotte, é ótimo falar com você nesse momento de virada na sua vida. Foram quase vinte anos como uma das forças motoras do Delain, então, como está sendo esse momento para você?
Charlotte Wessels: Bom falar com você também, Valtemir, obrigado pelo interesse. É como você disse, foi uma grande mudança na minha vida, o Delain foi uma parte da minha vida por algo em torno de dezesseis anos, eu ainda era bastante jovem quando comecei a trabalhar com a banda, então foi uma mudança imensa, uma mudança muito emotiva, não foi de nenhuma maneira um momento divertido para mim. Só fico feliz que, quando o rompimento aconteceu, eu já tinha organizado a minha comunidade no Patreon, pois, se naquele momento eu tivesse a obrigação de começar algo do zero, eu certamente não conseguiria fazer nada, teria caído em um buraco negro. Então, foi importante que eu já tivesse algo em que pudesse focar minha atenção. Ainda me mantenho conectada com alguns dos garotos da banda, e eles vão se juntar comigo no palco para fazer uma espécie de show especial das duas partes do Tales From Six Feet Under, o que certamente também vai ser muito emotivo para mim, já que será no mesmo palco em que fizemos o nosso último show antes da pandemia. Sabe, não quero focar em nada negativo e nem me entregar a uma tristeza persistente por conta dessa separação, então simplesmente desejo boa-sorte e que tudo dê certo para todos, e sigo em frente.
De certa forma, sinto que isso é o melhor a se fazer. E para os fãs, que não fique ressentimentos, pois agora eles têm dois ótimos projetos para seguir, o Delain e sua carreira solo.
Charlotte: Sabe Valtemir, essa foi uma das coisas mais legais que alguém já me disse desde que nos separamos, então, muito obrigado mesmo! E é isso mesmo que eu gostaria, que as pessoas que gostam da música que fizemos continuem seguindo a banda e a minha carreira, pois todos precisamos seguir em frente. Tenho bastante orgulho do que fizemos como banda, não há motivo para lembrar de tudo aquilo com dor, giramos o mundo juntos, levamos alegria para as pessoas e fizemos muita música, gravamos vários álbuns. Mas é algo que ficou para trás, um novo capítulo foi aberto para a banda e para mim. Não vamos perder tempo encontrando alguém para apontar o dedo, vamos guardar os bons momentos e curtir a boa música, não importa de onde ela venha.
É ótimo ouvir isso. Sabe, você foi uma das grandes razões de amarmos o Delain por tanto tempo, e seria uma sensação bem amarga se você estivesse indiferente ou até ressentida com algo que fez parte e que mudou a vida de tantas pessoas ao longo dos anos.
Charlotte: De novo, obrigado pelas palavras, está sendo ótimo falar com você! Queria que tivéssemos falado antes, acho que teria me ajudado nas horas mais duras, obrigado de verdade. E eu garanto, eu jamais vou me entregar a maus sentimentos sobre o passado, justamente por conta disso que você disse, de certa forma nós tocamos a vida das pessoas com nossa música. Não seria certo transformar tudo em um tabu ou em um motivo para dividir as pessoas. Eu quero que todos aqueles que se divertiram conosco no passado, ouvindo o álbum ou assistindo a um show, guardem essa boa lembrança que tiveram. Eu guardo no meu coração a alegria de cada show, a felicidade de cada fã que vi do palco.
Isso é ótimo. Bem, antes você comentou que já tinha organizado sua comunidade no Patreon, então suponho que já tinha colecionado algumas ideias musicais, ao menos para o que se tornou o primeiro álbum.
Charlotte: Sim, eu tinha algumas ideias para canções que já circulavam na minha cabeça há muito tempo, e essa era uma das razões para querer tanto esse projeto, eu precisava de uma vitrine para todas essas ideias que estavam se acumulando. Então, várias músicas daquele primeiro álbum são baseadas em ideias que tive antes. Algumas músicas eu só tinha de antemão um verso e o refrão, algumas estavam já registradas em fase de demo, outras ainda eu tinha só esse riff ou uma pequena seção instrumental que eu achava interessante e então construí algo a partir dela. Quer dizer, não havia nada realmente pronto de antemão, não completo, mas existia sim um conjunto de ideias que guiaram o trabalho, e ainda bem que foi assim. No segundo álbum não, ele foi mais ‘espontâneo’, por assim dizer.
O título dos álbuns é bem legal, e tem uma relação bem direta com o que está fazendo, certo?
Charlotte: Sim, eu também gostei muito desse título, Tales From Six Feet Under. Bem, Six Feet Under é o nome do meu estúdio pessoal, é onde trabalhei em todas essas músicas, então é algo bem pessoal para mim, assim como todo o resto desses álbuns. Nunca antes tive a chance de fazer algo tão íntimo assim na música.
Bem, você já adiantou que a principal diferença entre os dois álbuns é a ‘espontaneidade’ do segundo. Como isso funcionou para você?
Charlotte: Em vários sentidos, esse novo álbum é muito parecido com o anterior. Acho que ambos têm uma ambientação parecida, uma liberdade musical parecida, e ambos são formados por músicas que coloquei no meu Patreon. A maneira como trabalhei dessa vez é que todo mês eu sento e começo a trabalhar em uma canção que depois lanço lá, então começo do zero todo mês, o que é muito revigorante para a criatividade. Por conta disso, não preciso pensar em como cada música vai se encaixar em um contexto maior, em um álbum. Eu só faço uma música e disponibilizo, uma por vez, totalmente independente do passado ou do futuro. De certa maneira isso quebra a coesão do todo, e era exatamente isso que queria aqui, não era para funcionar como uma banda ou como um álbum do modelo tradicional, e ao trabalhar dessa maneira, acho que encontrei uma possível forma para que o álbum seja eclético. Quando você está trabalhando conscientemente em um álbum e pensando sobre ele, fica mais tentado a fazer algo que soe uniforme, pois é assim que deve ser, o álbum deve ser variado, desde que mantenha uma orientação, tal que não confunda o ouvinte ou não entre em choque com o estilo da banda. Não tem nada disso aqui, não penso como em um álbum, não tenho que me prender ao som de uma banda, e as pessoas que me acompanham no Patreon não vão ficar confusas com os caminhos que tomo, pois eles me conhecem e apostam nisso, literalmente incentivam isso com o seu apoio! E, como estou começando do zero todo mês, é muito fácil permitir que a música seja o que ela quer ser em vez de forçar ela em uma direção.
Conhecendo suas referências, imagino que compor assim deva ser uma sensação libertadora para você.
Charlotte: Sim, é uma experiência incrível, de verdade! A parte boa de ter uma banda ao seu lado é que todos têm suas próprias ideias, então você acaba com muito mais material em mãos, é mais fácil chegar no volume que você precisa para lançar um álbum, por exemplo. E, claro, todos têm seus próprios pontos fortes, que podem compensar alguma eventual deficiência sua. O problema é que todos tem que se comprometer demais em alguns momentos, pois escrever uma música pode ser muito pessoal, você pode estar mergulhando diretamente em si mesmo, e colocar isso nas mãos de outras pessoas é um enorme desafio, para ambas as partes. Acaba sendo muita pressão, e por isso também existe tanto estresse. Quando comecei a organizar esse projeto solo, tive que aprender muitas coisas que antes não sabia fazer. Tive que aprender a lidar com coisas que não sabia lidar antes. Quando tenho um bloqueio criativo, não tem ninguém para me estender a mão e tomar as rédeas. É desafiador, mas sempre gostei dessa sensação de começar algo do zero e levar adiante até o fim. Estou realmente feliz com o que estou fazendo hoje, pois estou livre para fazer o que quiser, e isso é ótimo!