“Me dei conta de que não havia garantia de que eu como músico ficaria rico, mas tudo bem. E nessa volta pra casa me lembro de prometer a mim mesmo que, independentemente do que acontecesse em termos de sucesso, eu faria música até o dia em que eu morresse”. E o jovem sonhador de apelido Frisbee cumpriu a promessa feita a si próprio enquanto voltava para casa dirigindo seu antigo e verde Ford Galaxie 500, de 1969, após mais um dia pesado de labuta no restaurante Ray’s Boathouse: Em 18 de maio de 2017, Chris Cornell realmente saiu de cena depois de fazer aquilo de que mais gostava. Após retornar de um show que fez com o Soundgarden, Cornell decidiu fechar as cortinas de sua vida e se enforcou em um quarto de hotel em Detroit. Ele deixou esposa e três filhos. Felizmente, a obra do icônico cantor está eternizada, bem como a sua história, contada nesse ótimo livro, Chris Cornell – A Biografia, lançado no Brasil pela editora Estética Torta, com (muito boa) tradução de Marcelo Vieira.
Filho de Seattle e fã das bandas de rock locais, o autor Corbin Reiff se viu motivado para esse livro pela indignação que sentiu ao perceber que existiam obras referentes a Alice in Chains, Pearl Jam, Nirvana e Kurt Cobain, porém absurdamente nada de relevante a respeito de Soundgarden ou de Chris Cornell. Para este projeto, Reiff dedicou três anos compilando muitas das entrevistas concedidas por Cornell ao longo de 30 anos e costurou a história amarrando tudo (de modo cronológico) com os diversos depoimentos colhidos com pessoas que conviveram com o dono de uma das vozes mais respeitadas, admiradas e emblemáticas da história do rock.
Chris Cornell – A Biografia traz ao conhecimento do leitor relatos bastante interessantes da história de Cornell – dentro, fora e antes da vida artística. É tocante, por exemplo, saber sobre o quão complicada se tornou a infância do saudoso cantor por decorrência de um ambiente familiar desestruturado. Nascido Christopher John Boyle, no dia 20 de julho de 1964, aos onze anos ele já havia flertado com as drogas. Os dramas internos de Cornell, incluindo a ausência do pai, se transformaram em fantasmas que o assombraram por toda a sua existência, como mostra a letra de Incessant Mace (originalmente intitulada No Warning). “É sobre um jovem que espera crescer nada parecido com o pai. Esse era o meu sentimento quando mais jovem. Na maior parte das vezes deu certo. Porém, há aspectos de sua estupidez que guardo dentro de mim e que não consigo evitar”, explicou Cornell ao anunciar a música do álbum Ultramega OK, do Soundgarden, no show feito em 2017, em Fort Myers, Flórida.
O leitor se deparará também com muitas curiosidades, como a sabida paixão de Chris Cornell pelos Beatles e surpreendentemente pelo Rush. Seu vício pelo som do trio canadense chegou ao ponto de em 1982, quando do lançamento de Signals, ele pegar o carro com seus amigos e ficar estacionado na porta da Tower Records desde a meia-noite com o intuito de ser um dos primeiros felizardos a comprar o novo disco da banda de Geddy Lee, Alex Lifeson e Neil Peart, baterista que mais lhe inspirou, antes de Cornell desistir dos tambores (principalmente quando viu a performance avassaladora de seu futuro parceiro de Soundgarden Matt Cameron, em show com a banda Feedback) e se transformar no talentoso frontman que foi.
“A maioria dos vocalistas não nasce canastrão como David Lee Roth. Somos mais como Joey Ramone: geeks estranhos que de alguma forma encontram seu lugar no mundo em cima do palco. Ninguém nunca disse uma palavra positiva para mim, nunca, em toda a minha vida, até que me ouviram tocar música” – CHRIS CORNELL.
E entrando justamente no lado artístico de Cornell, a biografia revela tudo o que rolava nos bastidores das bandas que fizeram parte de sua carreira, principalmente o Soundgarden, que, sabemos, sempre foi o seu verdadeiro lar. Os relatos do autor e de várias pessoas ilustres escancaram também o quão meticuloso e exigente Cornell era com tudo que se relacionava às músicas que gravava. Outro ponto positivo é a atenção de Reiff em contar a história de todos os outros músicos que fizeram parte do Soundgarden. Destaca-se aí a amizade entre Cornell e Kim Thayil, a pessoa que mais o incentivou a aprender guitarra, ensinando-lhe acordes e outras artimanhas guitarrísticas. E não pense que foi a partir do clássico Badmotorfinger, de 1991, que o Soundgarden começou a obter respeito. O álbum anterior, Louder Than Love, lançado dois anos antes, já havia “pirado o cabeção” de músicos notáveis, como Kirk Hammett e Axl Rose. O guitarrista do Metallica afirma ter sido inspirado pelo segundo álbum do Soundgarden quando compôs o riff principal de Enter Sandman; já o líder do Guns N’ Roses ficou abismado quando ouviu o ‘bolachão’: seu queixo caiu com o talento vocal de Cornell. Axl contou essa história em entrevista à Del James na época em que o Guns estava estourado mundialmente com seu álbum de estreia, o estrondoso Appetite For Destruction (1987). Sem perder tempo, a gravadora do Soundgarden utilizou o elogio de Axl nas publicidades que fez para promover sua banda cliente. Bingo! A ação de marketing deu super certo e ajudou a impulsionar o Soundgarden. Tempos depois, a banda acabou sendo convidada pelo próprio Axl para abrir a “Use Your Illusion Tour” do Guns N’ Roses.
No entanto, o choque comportamental entre esses dois grandes representantes do hard rock e do grunge, respectivamente, deixou Cornell desconfortável perante ao ego e a arrogância de Axl Rose, que impunha regras absurdas na turnê, entre elas exigir que o palco fosse demarcado, delimitando o espaço que os músicos do Soundgarden poderiam utilizar. E se você acha que Cornell atendeu tal exigência, se surpreenderá com o que lerá. Neste episódio, inclusive, é emocionante notar a simplicidade de Cornell, que, entediado com a balbúrdia que rolava nas festas nababescas promovidas por Axl e sua banda nos bastidores pós-shows, certa noite se escondeu junto ao ilustre convidado Joey Ramone (Ramones) embaixo de uma das mesas dos camarins da turnê para baterem papo sobre música e fugir daquilo tudo.
E por mais que o movimento grunge até hoje seja odiado por muitos que o apontam como responsável por “estragar” a década de 1990 e tirar do mainstream os holofotes que antes eram apontados principalmente para o hard rock e também para o thrash metal e para o heavy metal de modo geral, nesse aperitivo sobre a relação conflitante entre Soundgarden e Guns N’ Roses/Chris Cornell e Axl Rose cabe uma reflexão quanto a alguns estereótipos preconceituosos acerca daquela prolífica geração de bandas de Seattle. Enquanto o hard rock esteve no topo do sucesso no decorrer da década de 80, havia muita competição – às vezes nada amigáveis – entre as bandas – vide as famosas rixas entre o próprio Guns N’ Roses e o Mötley Crüe, por exemplo; já no caso dos principais grupos de Seattle, nota-se implicitamente no livro o senso de colaboração e irmandade entre eles. Um exemplo disso é a própria história do Temple of the Dog, projeto paralelo de Cornell, criado junto com músicos que na sequência formariam o Pearl Jam, além de Cameron, que curiosamente, algum tempo depois acabou indo parar na própria banda de Eddie Vedder e Cia. O Temple of the Dog foi uma homenagem de Cornell ao seu grande amigo Andrew Wood, vocalista das bandas Mother Love Bone e Malfunkshun, com quem ele morava e que no dia 19 de março de 1990 tirou a própria vida. A tragédia com o jovem de 24 anos obviamente afetou profundamente as emoções de Cornell. E como você poderá notar, ao invés de simplesmente competirem pelo sucesso, sempre que podiam os músicos daquela cena apoiavam uns aos outros e esse ambiente de amizade contrapunha o lado negativo do grunge, ressaltado principalmente pelos excessos de álcool e drogas e pelos recorrentes casos de depressão e de suicídios. Aliás, o livro não abre mão de mencionar o nome diversos dos músicos do movimento grunge que desistiram de viver. E prepare-se, pois a lista é grande, não fica apenas em Cornell, Wood e Kurt Cobain.
Há também nessa biografia um panorama bastante completo sobre a carreira solo de Cornell e seus álbuns irregulares, sua relação com a indústria cinematográfica, a trajetória impactante do Audioslave, banda que ele só aceitou fazer parte se as letras não focassem em política – como acontecia com o Rage Against the Machine, então ex-grupo de seus parceiros Tom Morello, Brad Wilk e Tim Commerford – e que iniciou em um momento turbulento de sua vida particular devido ao drama que enfrentava com o vício em drogas e álcool e pelo divórcio com sua primeira esposa e empresária Susan Silver. O clima estava tão pesado para Cornell pela dor emocional que vivia em paralelo ao início do Audioslave, que ele já poderia ter morrido naquela momento, dado que em certa ocasião em que estava altamente embriagado por não se sentir satisfeito com a vida de celebridade que vinha levando, ele saltou do 10° andar de um hotel. Talvez por uma intervenção divina, Cornell escapou da morte ao cair em segurança em um pinheiro.
Alguns outros pontos merecem destaque em Chris Cornell – A Biografia. Um deles é que toda a discografia de Cornell é comentada com riqueza de informações. Outro fator interessante é que o livro não foca apenas em Chris Cornell propriamente dito, mas também contextualiza o que foi a cena grunge em termos musicais e culturais. O leitor terá acesso a curiosidades sobre diversas músicas, tanto em termos líricos quanto técnicos. Outro atrativo nessa edição nacional de 432 páginas lançada pela Estética Torta é (como de costume) o acabamento premium impecável do livro, impresso em capa dura e com pintura preta trilateral.
Sobre os pontos negativos, eles são poucos e não tiram o brilho da leitura. O primeiro deles é compreensível, em se tratando de não ser uma biografia autorizada (embora com total apoio da família de Chris Cornell) não há fotos – algo que, apesar de ser sempre esperado, neste caso geraria burocracia e demandaria maior investimento ao autor. À reclamar mesmo, apenas o fato de que Corbin Reiff insistiu à exaustão sobre algo nada incomum para um artista no palco e que se torna altamente irrelevante de ler a respeito com tanta constância: o fato de Chris Cornell estar sempre tocando sem camisa no início da carreira (!?).
“Resumo da obra”: Chris Cornell – A Biografia é uma leitura imprescindível para os fãs do cantor, de suas bandas e do movimento grunge de modo geral. Também é altamente recomendada para quem mesmo não se considerando admirador do cantor e daquela onda de Seattle, tem a mente aberta e interesse em enriquecer seu conhecimento musical e cultural, compreendendo todas e quaisquer tipo de manifestações ligadas ao rock e às suas subdivisões.
Ficha Técnica:
Livro: Chris Cornell: A Biografia
Autor: Corbin Reiff
Tradutor: Marcelo Vieira
Formato: Capa Dura
Páginas: 432
Editora: Estética Torta
Links relacionados:
Site Oficial: https://esteticatorta.lojavirtualnuvem.com.br/
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