Não é segredo para ninguém que o heavy metal nunca foi o queridinho da música ‘mainstream’, e todo mundo sabe quanta luta foi necessária para tornar aquele patinho feio do rock em um gênero viçoso e grandioso, hoje já um senhor de respeito, no alto dos seus cinquenta anos. Para que toda essa transformação acontecesse, foi fundamental que novas bandas surgissem, e com elas, novas propostas musicais. Do hard rock ao heavy metal, e dali em diante uma miríade tão grande de subgêneros que fica até difícil dizer, o metal é hoje incontestável, tem um público consumidor fiel, e desafia tudo aquilo que se apregoa com sentenças como ‘fim da indústria musical’, ‘fim da mídia física’, etc.
Lembre-se, para que tudo isso acontecesse foi necessário que novas bandas surgissem quase que diariamente, foi preciso que a fórmula fosse renovada e reinventada milhares de vezes, e foi necessário que ficássemos de olhos abertos para aquilo que vinha surgindo nas sarjetas do ‘underground’. Houve um dia em que o FLOTSAM AND JETSAM era apenas um nanico na sarjeta do underground, e que este nome não despertava mais do que estranheza em quem ouvia falar. Ainda bem que esses dias ficaram para trás.
Nascido em 1981 em Phoenix, Arizona, como PARADOX, a banda rapidamente mudou seu nome para DREDLOX, então para DOGZ, e finalmente para FLOTSAM AND JETSAM, em 1984. O estranho nome vinha de termos normalmente usados pelos marinheiros, ‘flotsam’ significando simplesmente os destroços de um navio ou de sua carga encontrados flutuando ou arrastados pelas ondas do mar; e ‘jetsam’ aqueles detritos que são intencionalmente arremessados ao mar pela tripulação. ‘Flotsam’ & ‘Jetsam’ trazem intrínseca a ideia de sobras, de algo sem valor, algo que não merece ser mantido ou levado à sério – uma piada interna quase que do mesmo teor daquela banda que se intitulou ‘sujos, podres e imbecis’, e que o leitor já deve ter lembrado de quem se trata.
A ‘zoeira’ autopromovida, porém, nunca seria levada em consideração quando tratamos de música. O FLOTSAM AND JETSAM sempre teve os seus trunfos, sempre teve algo que os destacava entre o então crescente cenário thrash. Como de costume nas bandas do gênero, eles contavam com uma dupla de guitarristas competente e segura em Edward Carlson e Michael Gilbert, mas eles ainda tinham algo mais: Eric Andrew Knutson, ou simplesmente Eric A.K. é um vocalista muito acima da média, que realmente é capaz de cantar tanto linhas suaves e melódicas quando aquelas mais rasgadas e agressivas. E era justamente aí que residia o grande trunfo da banda do Arizona, eles tinham enormes possibilidades criativas, todo um horizonte que se estendia do heavy tradicional, passando pelo speed, e finalmente desembocando no thrash. Eles não demorariam a fazer uso de todos esses recursos.
Com um começo complicado, a banda passou por toda aquela troca de nomes que você conferiu acima, trocou algumas vezes de formação, mas finalmente estava pronta para seguir por caminhos mais seguros. A primeira demo, Iron Tears, chegou em 1985, mesmo ano em que lançaram Metal Shock. Nelas, ao lado do trio mencionado, a banda contava com Kelly David-Smith na bateria, e Jason Newsted no baixo. Tudo parecia seguro, firme, pronto para resistir aos anos que viriam em seguida. E, se dependesse de composições como Hammerhead, as coisas realmente resistiriam. Eles começaram a chamar a atenção aos poucos, tocaram ao vivo ao lado de gente como ARMORED SAINT, EXCITER e MEGADETH, e então, o que parecia o melhor de tudo: ganharam um lugar na coletânea Speed Metal Hell e na lendária Metal Massacre, a vida começava a mudar, o mundo começava a se abrir.
A confirmação disso veio logo em seguida. Os meninos rapidamente assinaram um contrato com a Metal Blade, e pouco depois eles estavam na Califórnia, onde seu primeiro álbum era gravado em diversos estúdios, ao lado do ‘todo poderoso’ produtor Brian Slagel (CIRITH UNGOL, FATES WARNING, TROUBLE, VOIVOD, SLAYER e muitos outros) e do engenheiro de som Bill Metoyer (ARMORED SAINT, SACRED REICH, D.R.I., SADUS e muitos outros). O resultado dessa parceria viria com o nome Doomsday For The Deceiver, e seria lançado em 4 de julho de 1986.
De cara, o álbum mostrava toda aquela versatilidade que comentamos antes. O alcance vocal de Eric A.K. não faria os fãs de metal melódico molharem a cama, mas era muito diferente daquela limitação que comumente ouvíamos na época, e davam um brilho extra para composições como as conhecidas Hammerhead e Iron Tears. Outra que arranca o seu espaço com unhas e dentes é Fade To Black, com simples e ótimos riffs.
Porém, se você quer um mergulho mais fundo e aprazível, caia de cabeça nas longas Metalshock (com um início acústico de arrepiar, e que destaca ainda mais o trabalho de Newsted e Eric A.K.) e Doomsday for The Deceiver (ahm, eu já falei sobre início acústico de arrepiar? Bem, desta vez fique atento a guitarra-solo, que coisa linda!), duas peças de qualidade única, que ficaram para sempre marcada no repertório da banda. A repercussão foi ótima, muitos elogios foram publicados em diversas revistas especializadas, e as turnês começaram a se suceder. MEGADETH, POSSESSED, DARK ANGEL, CELTIC FROST, SACRED REICH, SLAYER, todas as bandas que mereciam ser vistas ao vivo tocaram ao lado do FLOTSAM AND JETSAM, que a essa altura já começava a ver que os dias difíceis não haviam terminado.
Jason Newsted deixou a banda logo após o lançamento do álbum (deixando-os sem um dos seus principais compositores), para assumir o posto de baixista do METALLICA, vaga aberta com a morte do ótimo Cliff Burton. Além de ótimas músicas, Doomsday For The Deceiver também ficou marcado como o único álbum completo do grupo a trazer na capa a figura do Flotzilla, uma espécie de ‘mascote’ da banda, e que só voltaria a aparecer no mais recente disco de estúdio deles, The End Of Chaos, de 2019.
No fim, o FLOTSAM AND JETSAM vivia aquele que acreditava ser o seu melhor momento, mas precisaria superar a perda de um dos seus principais compositores. Como superar a grandiosidade de Doomsday For The Deceiver sem uma das suas principais forças criativas? Bem, eles responderiam essa pergunta com No Place For Disgrace. Mas essa já é outra história.