CRYPTOPSY | ATHEIST – São Paulo (SP)

21 de fevereiro de 2025 – Fabrique Club

Por Daniel Agapito

Fotos: Andre Santos

O tão querido death metal técnico, o tech death, já foi um dos estilos mais interessantes e mais inovadores do metal extremo, injetando uma dose de novidade em um gênero musical que parece estar reciclando ideias desde que começou. Porém, hoje em dia parece que ele está sumindo pouco a pouco: Necrophagist, Spawn of Possession, The Faceless, Neuraxis, Beneath the Massacre, todos acabaram. O que sobrou foram algumas bandas mais novas, como Obscura e Archspire, mas com um som bem diferente e ambas envoltas em polêmicas com membros, ou bandas que flertam mais com outros sons, como Cattle Decapitation e Gorguts. Dos grandes titãs mais antigos, dois permanecem firmes e fortes: Atheist, banda lendária, uma das primeiras a incorporar elementos progressivos e até do jazz no death metal, e Cryptopsy que, apesar de muitas mudanças de formação, segue lançando materiais de qualidade com consistência. Foi essa união de forças imparáveis que constituiu a turnê “Burnt to Pieces”, que veria o retorno do Atheist ao Brasil, que veio pela primeira vez em 2019, e a tão aguardada segunda apresentação do Cryptopsy, que estava ausente das terras verde-amarelas desde 2014. O show único em solo nacional ocorreu no Fabrique Clube, localizado no bairro da Barra Funda, na cidade de São Paulo.

Com chuva, trânsito e aquele caos generalizado da cidade, o Fabrique estava bem vazio na hora em que o Atheist estava marcado para subir. Não estava às moscas, de maneira alguma, mas para uma banda do nível deles, estava vazio. Ao som da clássica In the Flesh, a viajada faixa introdutória do The Wall, de outra lenda da música progressiva, Pink Floyd, Alex Haddad (guitarra), Jerry Witunsky (guitarra), Yoav Ruiz-Feingold (baixo) e Dylan Marks (bateria) se preparavam para subir no palco, que era banhado por um véu de luzes vermelhas. Com o icônico coro etéreo de No Truth, que fecha o genial Piece of Time, os músicos assumiram seus postos, e assim que a bateria entrou com o riff, o gente finíssima Kelly Shaefer, grande mente por trás da banda, apareceu junto, já puxando uma sequência de “ei, ei, eis”, levando diversos punhos ao ar. A partir do primeiro grito – que desta primeira vez foi feito por Yoav, que foi responsável por boa parte dos guturais mais “pesados” naquela noite – a energia virou, era um clima de festa gigantesco. O bate-cabeça só não era ininterrupto por causa da progressividade e dos aspectos técnicos das músicas.

Ainda não havia grandes rodas, mas seria chover no molhado dizer que o público estava animado, visto que já em On They Slay, segunda faixa e mais uma de Piece of Time, era comum ver fãs completamente maravilhados, vidrados no palco, apreciando a aula de técnica que estava sendo proferida naquela sexta-feira. Era sempre uma música atrás da outra, com pouco respiro, mas, antes de iniciar a terceira, o baixista fez um pedido simples: girando seu dedo indicador, pedindo uma roda, falou duas palavras que todos entenderam: “Rápido, cabrones!” O que veio a seguir foi Unholy War, uma verdadeira pedrada auditiva que deixa claro exatamente o que é o som do primeiro álbum (que se você não conhece, vá ouvir), um death metal old school furioso com boa dose de progressividade, compassos irregulares, linhas de bateria “tronchas”, riffs de baixo avassaladores e solos insanos.

Destacando uma veia mais descaradamente progressiva, foi executada uma dobradinha de Elements, álbum que nos serviços de streaming é bastante injustiçado, pois conta com uma mixagem complicada, para não dizer algo pior. Ao vivo, porém, dá para enxergar claramente a genialidade de Shaefer & Cia., que com músicas como Water e Mineral consegue incorporar passagens retiradas diretamente do jazz, até com riffs que beiram o flamenco, sem sacrificar a brutalidade de maneira alguma. Durante Water, Kelly até começou fazendo os fãs baterem palmas no ritmo, que pode ser algo comum em um show do Engenheiros do Hawaii, mas com certeza não é a coisa mais convencional no death metal – porém, funcionou. Vale destacar que na medida do possível o som do show estava perfeito, com todos os instrumentos estando completamente audíveis, nem muito altos nem muito baixos (menos o microfone, que às vezes dava algumas sumidas, mas nada que tenha prejudicado a experiência da apresentação.

Durante a fase “original” do Atheist, foram lançados três álbuns: o brilhante Piece of Time (1990), o inquestionavelmente perfeito Unquestionable Presence pouco mais de um ano depois e o mais experimental Elements em 1993. Este segundo só foi ser representado mais para o meio da noite, com Enthralled in Essence e Your Life’s Retribution sendo as primeiras duas faixas vindas de lá a terem espaço no repertório do show. Enthralled in Essence é basicamente o que o Death faria a partir de Human, que foi lançado um mês após Unquestionable. Prestes a introduzir Your Life’s Retribution, o vocalista convocou seu público a bater cabeça: “Cabeludos, carecas e pessoas de cabelo curto: batam cabeça, porra!” Algo que ficou mais que evidente nessa loucura toda foi a felicidade dos integrantes por estarem no Brasil: a dupla de guitarristas tocava sempre com um sorriso de orelha à orelha, o baixista corria de um lado para o outro, animando o público, e a cada duas músicas Shaefer dizia que a presença de cada um significava muito para eles e se desculpava pela demora para voltar.

Em um desses pequenos discursos, disse que desde a última vez que em pousaram na nação verde-amarela estava no ar que viriam de novo, entrando perfeitamente em Air. Esta música em especial tem algo que não consigo apontar exatamente, mas parece estar completamente à frente de seu tempo, até mais que o resto do catálogo. Não sei se é a introdução com uma linha melódica limpa lindíssima em palhetadas trêmolo que não ficaria perdida em um CD de alguma banda de post-black metal, as linhas de baixo destacadas, a batida simples, mas dançante, ou até o final, que pode parecer feito com sintetizadores, porém é um faixa completamente trabalhada na guitarra. Como já era de se esperar, veio mais uma de Elements, Fire, que, como o nome dá a entender, é um pouco mais “porrada”. Algo do vocal de Kelly lembra minimamente os primórdios do Metallica, mas de resto é o som do Atheist que conhecemos e amamos. No meio da música, o vocalista apareceu no palco com uma garrafa de Jägermeister e deu um gole, oferecendo-a e saudando os fãs logo no finalzinho. Sempre buscando uma transição coerente entre músicas, perguntou se os fãs paulistas eram espertos, logo antes de iniciar Brains.

No último bloco de sua performance, decidiram enfileirar um hit atrás do outro (como se o resto do repertório não fosse apenas músicas de peso). Depois de Kelly dizer que era apenas um americano burro que não falava português, conhecendo apenas “obrigado” (que já é mais do que o Eric Clapton, por exemplo), começaram com o primeiro disco, Room With a View e seu riff sinistro e arrepiante, sucedida por I Deny, do mesmo álbum e faixa que destaca muito a habilidade de Roger Patterson, baixista que teve morte prematura aos 22 anos por conta de um acidente de carro. Após introduzir Yoav Ruiz-Feingold, que hoje ocupa o posto e que, de acordo com Shaefer, é o melhor que passou pela banda desde Patterson, dedicou Deny ao seu finado companheiro. A energia era tanta que ao virar o microfone para o público cantar junto este caiu e o vocalista seguiu naturalmente, apenas dando uma risadinha.

Para fechar, veio uma trinca absurda, que nem precisa ser apresentada: Unquestionable Presence, Mother Man, música mais linda da história do metal extremo e maior obra prima dos nativos de Sarasota (na humilde opinião deste que vos escreve), e terminando o show com Piece of Time. Para quem não é muito fã deles, pense como se fosse o Judas Priest tocando Breaking the Law seguida de Another Thing Comin’ e fechando com Painkiller. Uma combinação absurda! Aqui, nem tento fazer jus à experiência com meras palavras, deixo o registro completo de Mother Man falar por si só…

Mais ou menos 20 minutos depois de o Atheist se despedir, sem pompas nem circunstâncias, o Cryptopsy subiu no palco, de luz apagada, sem o telão ligado. A única coisa que anunciou sua chegada foi o icônico riff inicial de Slit Your Guts. Diferente do som complicado que a “banda de abertura” apresentou, os headliners operam à base do peso e do caos, com 70 mil notas por segundo e bumbo parecendo uma metralhadora. Sabe aquele exemplo extremo do que é o death metal quando é mencionado em algum filme? Se não é algo na linha do Cannibal Corpse, é alguma bagunça ‘cryptopsesca’. Mesmo com apenas o baterista Flo Mounier sendo o único membro-fundador remanescente na formação, o som que conseguiram tirar foi bastante fidedigno aos CDs, majoritariamente por conta da habilidade sobrehumana do baterista. Aquele timbre de guitarra que soa como uma broca de furadeira no inferno, aquele baixo com afinação de berimbau, estava tudo ali, menos os vocais poderosos de Lord Worm, que se aposentou da música por problemas de saúde – mesmo assim, Matt McGachy, gêmeo perdido do Kenny Leckremo (H.E.A.T.) segura bem na voz.

Já tendo começado com ambos os pés na porta, logo com a maior música, seguiram com um dos destaques do álbum mais recente, o brutalíssimo As Gomorrah Burns, primeiro full-length da banda desde 2012. Apesar de ter sido lançado até que recentemente, o público se animou bastante, até abrindo uma roda significativamente grande dada a quantidade de pessoas presentes na casa. Como tem sido nos últimos tempos, o repertório dos canadenses foi focado no segundo álbum, None So Vile, que realmente os firmou como referência da brutalidade no estilo, e no mais recente, com algumas aparições de outros álbuns, mas majoritariamente negligenciando o resto do material pós-Lord Worm. Esta alternância entre álbuns seguiu com Graves of the Fathers, do disco de 1996.

Isso não quer dizer que deixaram completamente de contemplar o resto da fase McGachy, que é bastante inconsistente, diga-se de passagem, pois executaram Sire of Sin, da segunda parte da série de EPs The Book of Suffering. Conhecendo bem sua base de fãs, o vocalista perguntou: “Tem algum fã old school do Cryptopsy aí? Daqueles bem antigos mesmo! Esse disco saiu quando eu tinha só 10 anos de idade, vamos tocar algumas do Blasphemy Made Flesh!” O que veio foi um deslizamento bestial auditivo, com uma sequência mal educada de Open Face Surgery e Serial Messiah. Como era de se esperar, a roda, que já havia ficado mais singela, voltou com toda sua força, virando aquele famigerado liquidificador humano, aquele vórtice, desde o sample inicial da Open Face.

“Só posso dizer isso aqui no Brasil: essa próxima música é sobre algo que aconteceu aqui, essa é a Godless Deceiver, sobre um de vocês”, disse o carismático vocalista, com um sorriso de orelha a orelha. Terceira faixa de As Gomorrah Burns, conforme revelado por Kyle em entrevista à revista portuguesa LOUD! Magazine, a música fala sobre o caso de Fabiane Maria de Jesus, que morreu aos 33 anos após ser espancada por moradores de sua cidade, do Guarujá. As agressões vieram após uma página local nas redes sociais tê-la acusado de raptar crianças para rituais de magia negra – daí o nome Godless Deceiver (enganador sem deus). Adotando as palavras do próprio vocalista sobre o caso, “é assustador”.

Continuando a todo vapor, veio Benedictine Convulsions, mantendo a proposta da mistura de eras do Cryptopsy. Não dá para falar desse show sem tocar na presença de palco do vocalista. Tirando o icônico Corpsegrinder, não tem ninguém atualmente no metal que consiga fazer um windmill (ficar girando a cabeça feito animal) tão bem quanto McGachy. Ele e seus longos cabelos conseguem fazer vento como um ventilador industrial. Uma das grandes preocupações no ar era como soariam as músicas do novo álbum no show, pois, comparado ao resto da discografia, As Gomorrah Burns é perceptivelmente muito melhor produzido. Flayed the Swine acabou com essa dúvida, já que o quarteto conseguiu transmitir praticamente o mesmo som – o vocal ficou até um pouco melhor ao vivo – e incendiar o Fabrique com as faixas mais recentes.

Porém, não seria com as faixas mais recentes que realmente viria a animação, como foi demonstrado com a última dobradinha com Phobophile e Orgiastic Disembowelment. Tirando Slit Your Guts, certamente a joia da coroa do Cryptopsy, essas outras duas são provavelmente os pontos mais altos de None So Vile e sem dúvida foram dois dos pontos mais altos do show. O final foi um verdadeiro momento de catarse, aquela hora de deixar tudo na última roda da noite. Antes do último riff de Orgiastic, Kyle até chegou a gritar: “Vamos, é sua última chance!” Não poderia ter acabado de forma melhor. Àquela altura, até Kelly Shaefer estava na pista batendo cabeça ao som de Cryptopsy e atendendo aos fãs enlouquecidos.

Para fazer curta uma história longa, a Caveira Velha Produções e a Xaninho Discos não poderiam ter acertado mais com esta turnê, unindo dois dos maiores nomes do death metal técnico em um show pontual, em uma casa com estrutura, que começou cedo, terminou cedo e não teve falhas de som. O único ponto negativo da noite foi que realmente estava muito mais vazio do que merecia, mas isto pode ter acontecido por uma vasta gama de motivos, seja o fato de que o show foi anunciado relativamente em cima (final de dezembro) ou até a avalanche de shows internacionais que virão em março (mais shows do que dias no mês). Fora isso, não há nem um “a” para reclamar: o Atheist fez jus ao seu posto como uma das maiores lendas do metal extremo, demonstrando exatamente o porquê de terem inspirado um estilo inteiro, roubando a cena com um show digno de “headliner” – inclusive, eles têm mais tempo de estrada e possivelmente até mais “nome” que os headliners, o que causou estranhamento em relação à ordem dos shows em alguns fãs – e o Cryptopsy reforçou seu posto como um dos maiores nomes atuais do estilo, apesar das constantes trocas de formação. Agora só nos resta torcer para que nenhuma das duas bandas demore tanto para voltar ao Brasil.

Para os curiosos, não, o Atheist não tocou Samba BRIA. Absurdo, eu sei!

Setlist Atheist

No Truth

On They Slay

Unholy War

Water

Mineral

Enthralled in Essence

Your Life’s Retribution

Air

Fire

Brains

Room With a View

I Deny

Unquestionable Presence

Mother Man

Piece of Time

Setlist Cryptopsy

Slit Your Guts

Lascivious Undivine

Graves of the Fathers

Sire of Sin

Open Face Surgery

Serial Messiah

Godless Deceiver

Benedictine Convulsions

Flayed the Swine

Phobophile

Orgiastic Disembowelment

 

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