Celebrando trinta anos de uma carreira repleta de excelentes momentos, Gylve “Fenriz” Nagell e Ted “Nocturno Culto” Skjellum estão de volta com Arctic Thunder.
Quantas vezes você leitor já viu bandas justificando alterações sonoras não muito bem vindas pelos seus fãs com palavras como “pressão da gravadora”, “o produtor tinha outra visão”, ou “tentamos nos adequar a um cenário mudado”? Saiba que a conversa com Fenriz e Nocturno Culto, a dupla que comanda a máquina norueguesa Darkthrone nunca segue por esses caminhos. Extremamente conscientes de seu papel nas próprias mudanças, e nem um pouco arrependidos delas, a dupla nunca se esquivou do desejo de mudança, nem atirou a culpa aos quatro ventos quando foi criticada. “Eu encaro o Darkthrone como um apelo estético sombrio”, declarou Fenriz. “É isso que eu tenho percebido durante todos esses anos, que estamos apenas tentando fazer as coisas dentro do reino que nós criamos. Então é como uma puta pintura, queremos fazer a mesma coisa que está dentro da estética do Darkthrone”.
A maneira que essa pintura seria feita não seria, porém, autoplagiando seu próprio passado, ou temendo a mudança. No caso do Darkthrone, a mudança era a própria essência da arte, desde que ela não fugisse ou não negasse aquele antigo plano tão cuidadosamente elaborado. Partindo do death metal de seu primeiro disco, Soulside Journey (1991), passando pelo black metal de A Blaze In The Northern Sky (1992) até chegar ao black/speed/thrash de The Underground Resistance (2013), a ideia central sempre foi a mesma, celebrar e honrar o que de melhor e mais orgânico existia na cena heavy metal, independente de tendências, modismos ou correntes fonográficas de cada época. E foi justamente por isso que o grupo conseguiu tanto sucesso, e se mantém ativo e prolífico após trinta anos do início de sua jornada. “Nós nunca quisemos fazer algo ‘novo’, estamos apenas honrando os velhos pais”, declarou Fenriz, “a maior parte das minhas músicas no novo disco são o que eu queria ter feito em 1988, mas eu não era muito bom em fazer metal mais lento naquela época”.
O resultado foi uma banda rápida e intensa, o que se podia conferir tanto nas antigas demos quanto no debut, que além de velocidade, ainda trazia uma perícia técnica diferenciada, comumente ouvida nos discos clássicos da cena sueca de death metal. Apostar no black metal cru e tosco em seus próximos discos foi uma atitude ousada, e de genuína rebeldia, pois ia contra a corrente da época, em que as bandas de death metal se tornavam cada vez mais populares e mais técnicas. Assim, apostar na sonoridade forjada no passado por ícones como Hellhammer, Celtic Frost e Bathory já era, a sua maneira, honrar o legado dos ‘velhos pais’. Qual seria a novidade de Arctic Thunder, então? Nenhuma, em um sentido amplo. Apenas um olhar para o passado, agora com a habilidade necessária para cumprir antigos objetivos postergados: “apenas agora, depois de tantos anos de experiência, eu pude criar riffs melhores, e levadas de bateria melhores para esses riffs”, explica Fenriz, “eu tinha uma visão para Arctic Thunder, eu queria tornar o Darkthrone um pouco mais introvertido aqui”.
E como isso se deu? O vocalista, Ted “Nocturno Culto” Skjellum é enfático: “é muito óbvio que este disco é bem mais sinistro do que os anteriores, é obscuro, e é a primeira vez que faço todos os vocais para um disco em muitos anos”. Para os fãs do Darkthrone dos tempos da Unholy Trinity, e para aqueles que ouviam os discos do Sarke (onde Ted também é o vocalista) com uma lágrima escorrendo dos olhos, isso já bastava para tomar o novo disco do Darkthrone como uma promessa de vento fresco após anos do calor da experimentação. Mas o vocalista vai ainda mais longe, para a nossa felicidade: “quando soube que faria todos os vocais, eu pensei, tenho que fazer tudo certo no sentido de encaixar tudo nesse clima mais obscuro, com uma vibração mais black metal”. Isso mesmo, pode comemorar! Mesmo que de uma maneira diferente, o Darkthrone está de volta ao black metal, o gênero que o consagrou. Muito dessa ‘volta ao passado’ se deu com uma mudança, quando Gylve voltou para Kolbotn, a cerca de treze quilômetros ao sul da capital norueguesa.
De volta ao lugar onde o Darkthrone começou, não demorou para que o baterista conseguisse voltar também ao antigo local de ensaio da banda, um dos inúmeros abrigos antibombas construídos na região na época da Guerra Fria. O primeiro passo no resgate da ‘vibe’ oitentista do grupo estava dado. O próximo seria um mergulho na música da época, algo que Gylve sempre curtiu fazer: “quando eu decidi fazer um novo álbum (por volta do meio de 2015) eu tinha quatro álbuns em mente. O que não significa que eu sentei para ouvir os álbuns e tentei copiar alguma coisa, funcionou mais como um mapa”, declarou o baterista. Os quatro discos escolhidos foram Journey Into Mystery (Dream Death, 1987), Epicus Doomicus Metalicus (Candlemass, 1986), Mob Rules (Black Sabbath, 1981) e Within The Prophecy (Sacrilege, 1987). “Depois que tudo estava gravado, e o Ted me passou uma cópia do disco, eu percebi que nada do que eu tinha escrito lembrava o Candlemass”, continuou Gylve, “embora existam riffs nas minhas músicas que lembrarão os outros três. Tem algo também de Iron Maiden, Hellhammer, Autopsy, Necrophagia de 1987, até algo do Exodus antigo”.
Daí em diante, o processo seguia o rumo mais natural possível, “o riff surge como um estalo na minha cabeça, e então eu tenho que solfejar ele até alcançar minha guitarra e começar a tocar, ou então gravar no meu celular. Daí eu vou tocar esse riff e começo a criar outros que se encaixem”. E, usando esse procedimento, Gylve compôs quatro temas para o novo disco (Tundra Leech, Boreal Fiends, Arctic Thunder e The Wyoming Distance), um material bom e intenso, e principalmente, algo que é a cara do Darkthrone. “O que eu estou escrevendo é a música verdadeiramente original do Darkthrone, de volta às raízes”, algo que talvez nem ele mesmo consiga explicar. “Quem sabe como eu faço este processo funcionar, o que me inspira? Mas sou apenas eu e a guitarra, e toda aquela música que eu sempre ouvi, o que eu decido dispensar e aqueles pequenos aspectos que eu decido manter”. Gylve, que nunca comenta as faixas criadas por seu parceiro de Darkthrone (por motivos óbvios) e que é famoso por nunca sentar para discutir as letras que cria, é sempre muito prolífico ao explanar sobre outros aspectos do disco. Assim, ele não se mostrou arredio em explicar o conceito da capa, obtida a partir de seu próprio arquivo, de um acampamento que fez na floresta de Nordmarka, nos arredores de Oslo: “quando voltei daquela viagem, guardei aquela imagem, pois achei que ela se encaixava muito bem com o conceito do Darkthrone, e com o título do disco”. Arctic Thunder, aliás, era outra homenagem da banda aos grandes pais do passado, como já acontecera com Total Death (referência ao Kreator) e Sardonic Wrath, inspirado pela banda dinamarquesa DesExult.
A inspiração do novo título veio da própria Noruega, como Fenriz comenta: “eu era amigo dos caras do Red Harvest, e sabia que o nome anterior da banda era Arctic Thunder. Sempre achei que este era um ótimo nome para uma banda, então um dia eu perguntei para um deles, Thomas Brandt, se poderia usar o nome”. A reposta, claro, foi positiva, e com capa e título definidos, o antigo local de ensaio a disposição e toda aquela aura oitentista recuperada, o Darkthrone lançou um de seus melhores e mais completos álbuns, uma ode ao metal em sua essência, repleto de referências, mas também de uma originalidade despretensiosa muito evidente, uma prova cabal de que não é necessário se fechar para o mundo em nome do ideal eterno da originalidade. Para aqueles que duvidam disso, Fenriz sentencia: “Sempre acreditei que o que tornou algumas bandas antigas ruins foi que eles pararam de ouvir muitas outras bandas, e começaram a apenas focar em sua própria carreira. Foi aí que eles perderam o caminho”. E isso, felizmente, nunca acontecerá com o Darkthrone.