Ah, a diferença que faz aproveitar o aniversário de um clássico para tocá-lo na íntegra na nova turnê… Claro, também ajuda se esta nova turnê for a de divulgação de um disco que voltou a empolgar. Este poderia ser o resumo da mais recente passagem do Dream Theater pelo Rio de Janeiro, agora para apresentar Distance Over Time (2019) e comemorar os 20 anos de Metropolis Pt. 2: Scenes from a Memory (1999), aquele álbum que você pode dizer que é o favorito de nove entre dez fãs, criando um contraste entre o presente, com casa lotada e um passado recente – em 2016, na turnê do The Astonishing, disco duplo, conceitual e ruim que foi tocado de cabo a rabo. Na ocasião, o quinteto subiu ao palco do mesmo Vivo Rio e se deparou com um número razoável de lugares vazios numa pista com configuração de cadeiras, o que diminui consideravelmente a capacidade máxima do local (5.000 pessoas).
Águas passadas, de fato, porque desta vez James LaBrie (vocal), John Petrucci (guitarra), John Myung (baixo), Jordan Rudess (teclados) e Mike Mangini (bateria) contaram com a empolgação de véspera dos fãs. Há quase dez meses nas lojas, Distance Over Time provou ter caído no gosto geral logo com Untethered Angel, primeira canção e primeiro single do álbum mais recente, e a abertura da noite. Claro, não se espera que o público fique pulando alucinadamente ou abrindo rodas num shows do Dream Theater, uma vez que o ar dos fãs é de contemplação, muitos de queixo caído com a performance dos quatro instrumentistas, mas nada que impedisse um coro para acompanhar o tema levado por Petrucci e Rudess depois de os dois duelarem em solos de tirar o fôlego.
Obviamente, houve um aumento no êxtase quando começou a espetacular A Nightmare to Remember, com seus mais de 15 minutos de passagens pesadas, virtuosas e bonitas. Tudo separado ou junto, mas muito bem construído para nem de longe soar autoindulgente. O único senão veio de um sentimento que, como nunca antes desde 2010, aflorou nos shows do grupo por aqui: a falta de Mike Portnoy. Neste caso, por causa de seus backings vocals mais agressivos e pelos blast beats mais naturais na canção de Black Clouds & Silver Linings (2009). No geral, por causa da ocasião festiva. Mas vida que segue, porque o Dream Theater felizmente revisita o passado sem se esquecer do presente, representado a seguir por mais duas amostras de seu 14º trabalho de estúdio: a ótima Fall Into the Light, que contou mais uma vez com um corinho, e a excelente Barstool Warrior, que carrega com primor a veia mais comercial que o quinteto vez ou outra imprime à sua música – levando-se em consideração o que significa o acento pop no prog metal da banda.
E por falar em presente, é necessário fazer o registro: pode ter demorado dez anos, mas é agradavelmente impressionante como esta formação está mais solta no palco, principalmente porque movimentação nunca foi o forte aqui. Mesmo Petrucci, que está a cara do anão Gimli na adaptação cinematográfica da trilogia “O Senhor dos Anéis”, e LaBrie, agitando como se estivesse à frente de um grupo de thrash metal, se mostraram muito mais soltos. No entanto, nada se compara a Myung, que resolveu começar a bater cabeça e deveria patentear seu estilo bem peculiar de agitar, e Mangini, que passou o tempo todo interagindo e fazendo gracinhas com Rudess, além de finalmente estar sentando a porrada na bateria – aliás, haja braço para fazer isso com a configuração de seu novo kit, cheio de pratos muito suspensos, inclusive os contratempos.
Hora de mais uma velharia não tão velha assim na discografia da banda, e In the Presence of Enemies – Part I, de Systematic Chaos (2007), reforçou a influência de Rush que A Nightmare to Remember tinha trazido à tona, um traço que já não se faz mais tão presente no Dream Theater. Curiosamente, seu instrumental empolgou tanto quanto o da obra seguinte, a nova, pesada e excelente Pale Blue Dot, cujo mérito é conseguir impressionar quem achava que não poderia mais se impressionar com a técnica dos músicos – o que Mangini faz nela só não é inacreditável porque há testemunhas oculares espalhados pelo globo terrestre. Seis canções em aproximadamente uma hora antes dos 80 minutos que todos mais aguardavam…
Depois de um intervalo de 20 minutos, vieram o tique-taque do relógio, a narrativa “Close your eyes and begin to relax. (…)”, o violão de Petrucci e todos cantando com LaBrie a partir de “Safe in the light that surrounds me (…)”. Foi bonito de ver e ouvir, principalmente para quem não estava no Credicard Hall, em São Paulo, no dia 11 de dezembro de 2005. Mas a emoção era a mesma em cada fã que gastou Metropolis Pt. 2: Scenes From a Memory de tanto ouvir, como este escriba fez há duas décadas. Aí sim foi a hora de alguns arriscarem pular abraçados, como em Strange Déjà Vu; e de a maioria soltar a voz com vontade em Through My Words e Fatal Tragedy (a bênção, Pink Floyd!); e de todos babarem com a fusão de técnica e groove na sensacional Beyond This Life.
A lindíssima Through Her Eyes não teve os grandiosos vocais de Theresa Thomason nem mesmo em playback – ausência sentida também em The Spirit Carries on –, mas não seria isso que apagaria o brilho. E quem prestou atenção no telão pôde perceber a homenagem a grandes artistas que já nos deixaram, como Chris Cornell, Chris Squire, Keith Emerson, Randy Rhoads e Stevie Ray Vaughan, todos com os nomes em lápides – telão, aliás, que era o melhor detalhe de um palco bem produzido, ilustrando todas as músicas e enriquecendo a história envolvendo Nicholas, Victoria Page e os irmãos Julian e Edward Baynes. Uma breve pausa para LaBrie recordar o período de composição e gravação, lembrar que Metropolis Pt. 2: Scenes from a Memory foi a estreia de um ovacionado Rudess – “O cara entrou já fazendo o melhor disco da banda!”, disse, à minha frente, um fã ao amigo – e pedir que todos cantassem o título da música mais pesada do álbum, Home.
O vocalista foi muito bem atendido, inclusive com a plateia com os punhos no ar e fazendo coro no riff principal da canção. Mais uma vez, bonito de ver e ouvir, assim como o desfecho de um disco realmente fantástico. A instrumental The Dance of Eternity arrancou urros de satisfação de muitos presentes – o restante acompanhava com ar de incredulidade o que acontecia no palco –, e One Last Time conseguiu ser ainda mais emocionante que Through Her Eyes. The Spirit Carries on causou a comoção esperada, com milhares de vozes fazendo coro a LaBrie, antecipando um fim apoteótico com Finally Free. Tão apoteótico que o espírito da insanidade baixou em Mangini, que simplesmente destruiu tudo, no melhor dos sentidos, com aquelas ‘odd time signatures’ – ou polirritmias, como queiram – que fazem ateu acreditar na existência de alguma divindade.
Sob aplausos gerais, o quinteto saiu do palco enquanto o telão terminava de contar a história, até o “Open your eyes, Nicholas” que ampliou o som da ovação. O show poderia ter terminado aí que todos já iriam para casa 100% satisfeitos, mas ainda havia tempo para a saideira, que veio choca. At Wit’s End, a quinta música extraída de Distance Over Time, ficou com a missão de ser o anticlímax. Não que a música seja ruim, porque ela é tão boa quanto todo o restante do disco, então poderia ser Paralyzed, Room 137, S2N, Out of Reach ou até mesmo o ótimo bônus Viper King que o sentimento seria o mesmo: depois do espetáculo que foi a íntegra de Metropolis Pt. 2: Scenes from a Memory, encerrar com uma música nova foi dar vários passos para trás. Mas se no murmurinho da saída dava para ouvir os nomes de vários clássicos saindo da boca dos fãs, o sorriso no rosto de cada um era o sinal de que a noite já estava na memória.
Setlist
1. Untethered Angel
2. A Nightmare to Remember
3. Fall Into the Light
4. Barstool Warrior
5. In the Presence of Enemies – Part I
6. Pale Blue Dot
Intervalo
Metropolis Pt. 2: Scenes from a Memory
7. Regression
8. Overture 1928
9. Strange Déjà Vu
10. Through My Words
11. Fatal Tragedy
12. Beyond This Life
13. Through Her Eyes
14. Home
15. The Dance of Eternity
16. One Last Time
17. The Spirit Carries on
18. Finally Free
Bis
19. At Wit’s End