Por Luiz Tosi
Fotos: Roberto Sant’Anna
Menos de dois anos após sua última passagem pelo Brasil, o Dream Theater está de volta. Se naquele ano foram cinco shows em cinco capitais, desta vez a banda aproveitou a presença no Rock in Rio para fazer escala em São Paulo (SP) para uma única data solo em terras brasileiras – o giro pela América do Sul ainda passa por Buenos Aires (ARG) e Santiago (CHI).
Vale lembrar que o Rock in Rio em questão estava programado para de 2021 e acabou sendo adiado devido à COVID-19. Na ocasião, o novo álbum do Dream Theater, A View From the Top of the World, composto e gravado durante a pandemia, ainda não havia saído, o que só veio acontecer em outubro do mesmo ano. Portanto, sabe-se lá qual show teríamos visto naquele Rock in Rio, uma vez que a banda estava parada há dezessete meses e recém havia passado por aqui. Disco novo nas lojas e o Dream Theater ainda precisou esperar mais alguns meses para cair na estrada. Em entrevista ao Sonic Perspectives sobre o adiamento da turnê de 2021 para 2022, John Petrucci (guitarrista) chamou a decisão de “infeliz” e “não unânime”, tendo em vista que só ele e o baixista John Myung estavam dispostos a voltar à estrada, enquanto os outros três membros optavam por ficar em casa. Em resposta, ao The Metal Voice o vocalista James LaBrie foi direto ao ponto: “Havia três caras na banda que disseram, ‘Não! Nós não queremos fazer uma turnê.’. E havia dois outros que disseram, ‘Vamos fazer isso’. Foi isso o que aconteceu; uma votação majoritária que disse, ‘Não, não estamos prontos para sair'”. E falando em mudanças, o show, originalmente marcado para o Pavilhão Pacaembu, local com capacidade de até 9 mil pessoas, teve seu local alterado para o Tokio Marine Hall, que suporta até 4 mil. Talvez a alteração tenha ocorrido pelas recentes passagens da banda por aqui, pela presença no Rock in Rio (dois dias após e sempre lotado de paulistas), ou mesmo pela avalanche de shows que estamos recebendo, como o Iron Maiden na mesma semana – só para citar um. Porém, a realidade é que, na minha opinião, esse é mesmo o tamanho do Dream Theater. De todo modo, a casa estava lotada, como ocorre em todos os shows deles na cidade.
Às 21h, os telões iniciam a nossa viagem. No vídeo, feito em animação gráfica, um binóculo de mirante visualiza várias imagens relacionadas ao Dream Theater, uma clara referência à “Vista do Topo do Mundo” (A View From the Top of the World). As cenas foram intercaladas com algumas capas de álbuns da banda – apenas algumas delas, não todas. Muitos ficaram curiosos para saber, por exemplo, por que eles mostrariam a capa de Awake, mas não a de Images and Words, que, sem dúvida, é o álbum mais conhecido do grupo. Acontece que essa exibição foi, na verdade, um spoiler para o setlist: cada uma das capas mostradas corresponde a uma faixa do setlist (além do “AVFTTOTW”, naturalmente). Então, se a sua faixa favorita está em Scenes from a Memory, por exemplo, que pena, o vídeo do início a descartou de cara. Adoro como o Dream Theater consegue brincar bem com ‘easter eggs’, códigos (in)decifráveis e mensagens subliminares.
Durante a projeção, um por um, Mike Mangini, Myung, Jordan Rudess e Petrucci, entraram calmamente para começarem a primeira música, The Alien. Depois de uma introdução fascinante, James LaBrie surge para iniciar os vocais, encobertos pela reação do público. O que aconteceu nas próximas duas horas é de uma excelência musical difícil de colocar em palavras – algo que se tem que experimentar. Todos os cinco são lendas em seus próprios mundos – o carismático Rudess girando sua plataforma em diferentes ângulos, Myung em seu comportamento calmo e composto e Petrucci com seu timbre característico, mostrando porque ele é tão cultuado. LaBrie está em grande fase, com seus vocais quase impecáveis dominando o palco e, finalmente, Mangini, que, para a tristeza (desespero?) de alguns haters, completa onze anos na banda, e em plena forma. Destaco o seu novo kit de bateria, lindo e muito menos espalhafatoso do que o anterior.
The Alien, primeira faixa e single do último álbum, vencedora do Grammy de “Melhor Performance Metal” deste ano, foi uma ótima abertura, equilibrando a melodia do solo de abertura com o peso do metal e elementos prog crescentes. Assim que Mangini executou sua introdução característica, a segunda música foi reconhecida por todos. Tratava-se da clássica, grooveada e adorada 6:00, de Awake, a única pré-2000 no set (e consequentemente a única anterior à Rudess) e que arrancou muitos aplausos. Essa música foi ovacionada, relembrando a paixão dos brasileiros pelos anos 90 do Dream Theater. O som nas duas primeiras músicas estava um tanto embolado, mas foi logo corrigido.
Um breve alô de LaBrie para o público e voltamos ao presente com Awaken the Master, uma das melhores composições recentes da banda. Os primeiros três minutos são uma pequena suíte progressiva instrumental, com um riff sujo e ótimo groove, criando uma introdução intrincada e tecnicamente perfeita. Os vocais melódicos de LaBrie estão ótimos novamente. Por volta do segundo terço de música a banda entrega uma de suas seções instrumentais clássicas, com direito aos já esperados duetos entre Petrucci e Jordan. Aqui já dá para perceber como as músicas novas soam excelentes ao vivo – até melhor que no álbum, a meu ver.
Em seguida, um dos momentos mais emocionais da apresentação, com Endless Sacrifice. Ausente dos shows desde 2011 e escrita por Petrucci para sua esposa, ela fala sobre saudades e dos sacrifícios que ela faz por ele, como músico em constantes turnês. Me pareceu um tanto simbólico resgatarem essa faixa logo após dois anos em confinamento, afinal, mesmo que em outro contexto, a letra fala muito com nosso atual momento. A próxima, Bridges in the Sky, chamou a atenção pelo seu peso descomunal ao vivo, com Mangini resgatando um lado heavy-thrash dos seus tempos de Annihilator. Outro destaque foi a interpretação magistral e LaBrie criando uma atmosfera apoteótica. Impressiona como ele consegue compor e cantar linhas vocais agradáveis e fáceis – às vezes pop -, sobre uma base instrumental extremamente intricada e complexa. Gênio!
Mais um breve papo de LaBrie com o público, desta vez sobre a resiliência e espírito humanos; e então vem Invisible Monster, a terceira estreia ao vivo de faixas de “AVFTTOTW”. Mais uma boa escolha, com momentos em que LaBrie puxa palmas do público. Ainda assim, eu, particularmente, trocaria essa pela magistral Transcending Time, do mesmo álbum. Quando Invisible Monster fechou, Rudess manteve a música no piano, e rapidamente a transformou na introdução de About to Crash, outra grata surpresa que levou o público ao delírio com seu final emocionante onde Labrie comanda os fãs, balançando as mãos de um lado para outro. Mais uma emendada na outra e fomos direto para The Ministry of Lost Souls, descendo o clima para uma atmosfera mais introspectiva até fazer com que todos levitassem na emocionante parte final desse esse épico de quinze minutos. A essa altura o jogo estava ganho. Destaque também para a alegria de Petrucci ao longo dessa faixa.
Até aqui, foram oito músicas, cinco delas em torno da marca de dez minutos ou mais, mas isso era só uma amostra do que estava por vir: A View from the Top of the World (a música), uma a suíte com pouco mais de vinte minutos, o épico que encerra o disco. Myung falou em entrevista à Revolver Magazine sobre o quão difícil foi aprender e tocar essa faixa: “O que torna isso um desafio para mim é o aspecto da memorização. Por exemplo, há uma seção clássica de Mozart que acontece na segunda metade da música”. Nem pareceu, tamanha a perfeição com que foi executada. Realmente, eles fazem o difícil parecer fácil.
Fim da viagem e do set regular. Mas quem prestou a atenção no vídeo de introdução sabia que ainda faltava uma. E para minha alegria, seria do Black Clouds and Silver Linings”, meu álbum favorito do Dream Theater. E a escolha não poderia ser melhor: The Count of Tuscany. Mais dezenove minutos! Essa música se tornou uma das preferidas dos fãs (e minha), não só pela musicalidade, uma combinação bem dosada de progressivo, metal, rock melódico, acústico e até pop, mas também por causa de sua letra – uma piada sobre um encontro na vida real que Petrucci teve com um conde italiano, onde ele ficou um pouco assustado -, tornando-se uma música-meme, cheia de piadas internas entre os fãs. A combinação de letras idiotas e composições épicas contribui para uma jornada totalmente divertida, que encerra o show em alto astral. Perfeito!
O Dream Theater é conhecido por trabalhar muito bem seus shows, pensados e construídos sobre temas ou conceitos específicos; comemorações a fases da carreira e discos; criando medleys e suítes e evitando repetições e obviedades. Mas, dessa vez foram ainda mais longe e deram um verdadeiro presente para fãs de verdade. Veja só:
a) Músicas longas. Foram dez músicas em duas horas. Arredondando os segundos, foram duas faixas de vinte minutos, uma de quinze, duas de doze e duas de dez minutos cada, além de três na casa dos seis minutos. Surreal!
b) Faixas inéditas ou “esquecidas”. Foram quatro inéditas (as de “AVFTTOTW”), uma não tocada há treze anos, duas não tocadas há onze, uma há dez anos e mais duas não tocadas há sete.
c) Faixas raras ao vivo. Nenhuma das dez faixas figura entre as 22 mais tocadas ao vivo na história da banda (a primeira a aparecer é 6:00, em 23º lugar).
De fato, foi interessante ver o Dream Theater abandonar suas raízes e se concentrar principalmente nos lançamentos deste século. Isso só mostra o quão forte o catálogo deles realmente é, que eles não precisavam voltar às músicas mais antigas como muitas bandas de 40 anos fazem, para manter o público entretido. Tiveram a confiança de deixar Pull Me Under, Metropolis e até faixas do megasucesso Scenes from a Memory para trás, para entregar um set bastante eclético. Por outro lado, há cada vez menos espaço para improviso e para a espontaneidade. É tudo bem preciso, cronometrado e ensaiado, sem jams, covers, medleys ou algo diferente das versões de estúdio, como costumávamos ver em tempos passados. Mas, no final, isso não foi um problema, pois o setlist em si era fenomenal.
Enquanto a banda ainda era aplaudida no palco, o sentimento geral era de felicidade por uma enorme surpresa. Ao evitar faixas que os fãs provavelmente teriam visto dezenas de vezes, a banda criou uma experiência verdadeiramente única, imprevisível, eclética, e extremamente revigorante, provando que o DreamTheater ainda tem muitos anos pela frente!
SETLIST
- The Alien
- 6:00
- Awaken the Master
- Endless Sacrifice
- Bridges in the Sky
- Invisible Monster
- About to Crash
- The Ministry of Lost Souls
- A View From the Top of the World
- The Count of Tuscany
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