Coisas estranhas aconteceram na sexta-feira, 15 de fevereiro na Capital Paulista. Mas, convenhamos, nada que transparecesse logo de cara. Para começar, um dia de garoa, intercalado por pancadas fortes de chuva e até picos de sol intenso não é novidade para aqueles que residem na cidade. Sejamos sinceros, é parte da nossa rotina. Trânsito caótico, metrô lotado… Certo, qual é a novidade? Tudo dentro do padrão, não é verdade? Com a rotina diária de cidadão paulistano devidamente cumprida, chegamos ao Carioca Club ansiosos para ver aquela que prometia ser uma das noites mais interessantes do ano para aqueles que curtem folk metal, já que teríamos no mesmo palco talvez o maior nome brasileiro deste cenário, o mineiro Tuatha de Danann, e um dos grandes da Europa, o suíço Eluveitie.
Com as duas bandas lançando novos álbuns de estúdio em 2019, a celebração folk prometia muito. E, quase pontualmente, o Tuatha de Danann subiu ao palco para iniciar os trabalhos da noite. Com um público que ia ganhando volume a cada minuto que passava, os mineiros começaram a sua apresentação com uma das canções mais conhecidas do seu repertório, a ótima Believe: It’s True, do clássico absoluto Trova Di Danú (2004). E foi aí que as coisas estranhas, citadas no início deste texto, começaram a transparecer. Todos nós (ou a maioria de nós) já assistimos shows do Tuatha ao longo das últimas décadas, e sabemos o cuidado que eles dedicam para que realmente possamos ouvir todos os elementos de sua música vindo do palco. Afinal, eles não usam ‘playbacks’, o que ouvimos realmente está sendo executado por alguém. Neste caso, neste dia, o que mais chamou a atenção foi o que ‘não ouvimos’ na música do Tuatha. Num momento era a voz do vocalista Bruno Maia que não se ouvia, noutro era o baixo de Giovani Gomes. Até para a flauta do vocalista sobrou. Como todos conheciam a música, a plateia permaneceu cantando, mas era evidente a preocupação de Bruno. Alterando momentos com o microfone completamente abafado e outros de microfone totalmente inaudível, ele quase precisou de uma graduação em Libras para se comunicar com o público, sinalizando para todos os lados que não podia ser ouvido.
Confiantes de que as falhas seriam passageiras, banda e público entraram em perfeita comunhão para a execução de We’re Back, faixa de abertura de Dawn of a New Sun, álbum que deu nova vida ao Tuatha de Danann em 2015. Para nossa surpresa, o som não estava melhor, continuava oscilando. Agora era o público que parecia desenvolver habilidades para a Língua Brasileira de Sinais, tentando avisar a banda de que as coisas não tinham melhorado. Rhymes Against Humanity também veio nesta mesma toada, e a essa altura já sabíamos que a coisa não seria resolvida. Contando com a participação da vocalista/baixista da banda Nervosa, Fernanda Lira, o Tuatha tocou um dos seus maiores hinos, Tan Pinga ra Tan, de Tingaralatingadun (2001). Claro que as falhas não pouparam a Fernanda. Ela, que havia começado a cantar no microfone do guitarrista (que obviamente falhou) atravessou o palco simulando uma corrida desajeitada, até chegar ao microfone do baixista para continuar. E assim ela continuou, mantendo o bom humor, mesmo quando o banjo de Bruno Maia se mostrou absolutamente impossível de ser aproveitado.
Estava claro para todos que já assistiram a um show do Tuatha de Danann que aquilo não podia ser normal. Apesar de todos os problemas, os mineiros não abandonaram o palco, não recuaram e não diminuíram o ímpeto, provando que merecem o lugar que conquistaram no nosso cenário. Para encerrar, The Dance of the Little Ones e Finganforn, dois clássicos absolutos que fizeram valer toda a frustração pelo que deixamos de ouvir na noite. Dois dias depois, uma postagem de Bruno Maia na sua página no Facebook ajudou a elucidar o acontecido. Em um trecho, o vocalista do Tuatha de Danann diz: “tivemos uma discussão com a produção da banda [Eluveitie], em SP, com seu produtor. Coisas sobre passagem de som, de tempo de show e aí sim, a situação ficou ruim”. Mais adiante, ele segue: “Esperamos voltar a essas cidades em breve, só nós, e com bom tempo de passagem de som, pois em SP, não tivemos e o som estava péssimo”.
Sem saber de nada disso, a desconfiança fez a sua parte quando o Eluveitie tomou o palco e, como por milagre, o som estava bom. Bem, pelo menos isso, já que caso contrário seria muito pior. Aí, quando o assunto é a apresentação propriamente dita, não há o que reclamar dos suíços. Desde o primeiro momento, com Ategnatos, faixa que dá nome ao vindouro novo álbum da banda, que tem seu lançamento marcado para cinco de abril. Era visível que a plateia estava extremamente empolgada com a banda, que respondeu à altura com um início de apresentação incendiário, mostrando todos os elementos que compõe sua rica sonoridade. A tradicional mistura de instrumentos tradicionais do folk com aqueles que dão as cartas no metal ficou ainda mais evidente nas duas seguintes, King (Origins, 2014) e Nil (Everything Remains as It Never Was, 2010), dois antigos clássicos que receberam uma dose extra de força e energia com a nova formação.
Aliás, falando da atual formação, precisamos destacar algumas habilidades que ficaram muito evidentes na performance de 15 de fevereiro. Enquanto Omnos (Evocation I – The Arcane Dominion, 2009) destacava as linhas de Michalina Malisz, que se mostrou a pessoa certa para assumir o hurdy gurdy – posto que havia ficado vago desde a saída de Anna Murphy (atual Cellar Darling) em 2016 – Lvgvs (Evocation II – Pantheon, 2017) trouxe a gaita de fole de Matteo Sisti e o violino de Nicole Ansperger para os holofotes.
Mas, isto ainda era só o começo. O líder e principal mente criativa da banda, Chrigel Glanzmann, teve todos os olhares para si quando a enigmática Catvrix (outra de Evocation II – Pantheon) foi executada. Mas, quem se mostraria quase que como uma deidade diante do público foi a vocalista principal, Fabienne Erni, que basicamente suspendeu o ar e congelou o tempo durante sua belíssima performance solo em Artio, para este que vos escreve, o momento mais belo e significativo de toda essa passagem conturbada do Eluveitie pelo Brasil. Quando os demais integrantes reassumiram seus postos para a execução de Epona (quarta e última faixa da sequência do álbum de 2017 tocada nesta noite), sob uma intensa e apaixonada onda de aplausos e a ovação geral do público, Chrigel não deixou de comentar a situação: “Muito obrigado, São Paulo. Isso é incrível. Tenho certeza que ela mereceu isso”. E mereceu mesmo, disso não há nenhuma dúvida.
Terminada essa sequência, era hora de tocar alguns dos, digamos, ‘hits’ da banda. The Call Of The Mountains (Origins, 2014) foi muito celebrada, e A Rose For Epona (Helvetios, 2012) convenhamos, dispensa qualquer comentário, dado o brilhantismo da composição e a paixão demonstrada na sua execução. Kingdom Come Undone, seguida por Alesia (também de Helvetios) formaram uma sequência de arrepiar, e só mesmo uma música incrível como Inis Mona (Slania, 2008) poderia encerrar um show que ainda teve tantos destaques. Agradecendo muito os fãs, a banda se despediu dos paulistanos, com mais um show fenomenal.
Pouco depois do show, fomos surpreendidos com a notícia do cancelamento das demais apresentações do Eluveitie/Tuatha de Danann no Brasil, um fato no mínimo lamentável. Enquanto uma discussão digna de crianças birrentas rolava na internet, regada a deboche e todo aquele excesso de informação que nada explica e só gera constrangimento, ficamos ainda mais com a certeza de que o público foi o maior perdedor, já que ninguém pareceu levar em consideração a vontade daqueles que queriam realmente ver o(s) show(s) acontecer. É necessário lembrar que apresentações foram canceladas tanto pela banda quanto pela produtora. Em uma guerra sem heróis, só existem perdedores.