Por Daniel Agapito
Fotos: Belmilson Santos
Para aqueles que não conhecem muito do estilo, o black metal é aquele subgênero frio, áspero, inacessível, de gravações horríveis e com um público composto de satanistas que queimam igreja, todos pintados de corpse paint. Bom, este segmento certamente existe. Os Mayhems, Darkrhrones e Enthroneds da vida fazem um sucesso danado até hoje, apesar de não queimarem mais igrejas. Porém, esta não é a regra, já que existem várias bandas diferenciadas, inclusive algumas que lançaram material novo este ano (os discos de Ihsahn, Borknagar e Lamentari estão o fino). Outra banda de primeiro escalão do black metal norueguês que foge bastante desse estereótipo é o próprio Enslaved, que já ostenta uma carreira de 33 anos e 16 discos, sendo um dos maiores nomes do chamado “folk black metal”.
Formada em 1991 por Ivar Bjørnson e Grutle Kjellson, os nórdicos ficaram conhecidos não só por suas composições inovadoras, mesclando elementos do black metal com o metal progressivo e o viking metal, mas também por suas performances intensas ao vivo. Esta não seria a primeira vez do grupo em terras tupiniquins, tendo passado por aqui pela última vez há 5 atrás, promovendo o álbum E. Desde então, foram lançados mais dois discos, Utgard, bem no meio da pandemia, e Heimdal, em março do ano passado. Bjørnson descreve o novo trabalho como uma “continuação natural” do anterior, “mergulhando ainda mais na mitologia nórdica”, trazendo à tona o guardião místico do mesmo nome (Heimdal).
Pouco tempo depois do horário marcado das 21h, o quinteto de Bergen subiu no palco, iniciando os serviços com Kingdom. E que música, hein? A quarta faixa do novo álbum define exatamente o que é a sonoridade do Enslaved: um black metal que consegue misturar perfeitamente um som brutal com melodias e atmosferas verdadeiramente lindas. É até estranho dizer isso de shows no Fabrique, mas o som estava até baixo, com apenas a bateria estourando em raras ocasiões, mas isso não afetou de maneira alguma a experiência. Eles tem um som muito complexo em estúdio, com camadas e camadas de guitarra, diversos efeitos, vozes limpas e rasgadas; tudo indicava que seria impossível reproduzir essa mesma experiência ao vivo. O que rolou foi exatamente o contrário, conseguiram transmitir perfeitamente a energia dos CDs no palco.
A energia dos integrantes no palco também era algo a ser estudado pela NASA. Ivar Bjørnson era literalmente um viking no palco. O cara é gigante, deve ter quase uns dois metros, usa barba gigante e uns cabelos longos trancados, ambos brancos como a neve. Parecia que Odin havia descido de Valhalla para agraciar o Fabrique Club com sua presença. Arve Isdal, guitarrista, é o tempo todo ligado no 220. Ele já começou o show sem camisa, ficou correndo pelo palco, e solava que era uma beleza. Ivar Sandøy, o gênio na bateria, é a alma da banda, ele não só toca perfeitamente, com a precisão de um relógio suíço, mas também se encarrega de todos os vocais limpos – e que voz linda que o homem tem! Grutle Kjellson não precisa de introdução alguma, ele é um monstro no baixo, e os guturais dele vinham realmente do fundo da alma.
Fora isso, o vocalista também interagia com os fãs perfeitamente. Após uma avalanche de aplausos no final de Kingdom, começou a conversar: “Obrigado! Vocês não têm que ser educados assim, podem gritar o quanto quiser. Estamos em um show de rock, não em um almoço executivo do governo. Podem berrar!” Com a resposta calorosa de uma casa relativamente cheia, seguiu em frente e introduziu Homebound, destaque de Utgard (2020). O público dos shows de black metal (e, por extensão, o público dos shows de prog) são um fenômeno interessante. É muito difícil ver roda, ver aquele bate cabeça enfurecido – é muito mais fácil assistir um monte de cabeludos olhando fixamente para o palco com os braços cruzados (não julgo, faço igual). Para os fãs de outros gêneros, pode parecer estranho, mas no caso do Enslaved, todos estavam curtindo, realmente vidrados na habilidade técnica do grupo e admirando a aula que estava rolando na frente deles.
Impressionado com a chuva de aplausos, o vocalista soltou um “seus maníacos! É incrível fazer shows por aqui…” logo antes de chamar Forest Dweller, que é sobre o próprio guardião. Mesmo as músicas todas ficando na faixa dos 6-7 minutos, com algumas até passando dos 8, o show era tão tecnicamente impressionante – e tão dinâmico – que nem parecia que o tempo passava. Seguindo com as faixas do disco novo, Congelia, épica de 8 minutos, foi a próxima, deixando o público ainda mais em transe.
”Querem que toquemos mais uma, ou querem que a gente dance rumba? Por que não os dois?” Este questionamento um tanto peculiar foi proposto pelo vocalista. Infelizmente, não dançaram, só tocaram. Mas, pra compensar, meteram simplesmente The Dead Stare, que tem um peso absurdo. Os guturais de Kjellson nessa música em especial são incríveis, irretocáveis. Ela consegue ao mesmo tempo ser linda e pesada. O público já estava na mão do vocalista a essa altura, com todo mundo cantando os icônicos “hey hey hey” e levantando as mãos para o alto. Parecia uma experiência espiritual ver os caras ao vivo, era como se os deuses nórdicos descessem de Valhalla e Ragnarok acontecesse na nossa frente. Sei que já usei essa mesma analogia mais uma vez, mas o show é tão poderoso que não tem outro jeito de descrever.
Com a batida constante do bumbo e os fãs batendo palma, os intergantes levantaram suas mãos em Y, como se estivessem recebendo alguma energia mística. Os cantos em norueguês ao som de uma casa dominada por palmas fizeram com que a introdução de Havenless fosse ainda mais especial. Só essa música já valeu o show. A energia incrível dos fãs, a força dos riffs, a voz melodiosa incrível do baterista, a habilidade de Grute com seu pequeno sintetizador de mesa… O melhor de tudo era que os 5 membros estavam tocando com um sorriso no rosto, claramente se divertindo. Era uma energia contagiante, algo realmente mágico. Foi de longe a parte mais linda do show, estavam todos em sintonia, fãs, banda, todos.
Equilibraram uma mais nova com Fenris, de Frost, de 1994, até zoando que o tecladista não tinha como tê-la composto porque ele tinha 2 anos de idade (ele é de 1992, mais novo que o grupo). Håkon Vinje (teclados) pode até ser um neném no contexto da banda, mas toca demais. A finesse que ele tem nos dedos é invejável: ora planavam sobre as teclas como pássaros majestosos, ora batiam forte como martelos. O contraste das faixas mais antigas do Enskaved com as mais novas é bem interessante, dado que as mais antigas usam menos os sintetizadores e são mais tradicionalmente brutais, mais tradicionalmente black metal, dando uma diferenciada no setlist. Tendo despendido quantidades absurdas de energia batendo cabeça, a banda inteira (menos o baterista) saiu do palco, com ele até brincando que seria o último a sair. Apesar disso, continuou brincando com os fãs, pedindo para que continuassem a fazer barulho até ele chegar em sua bateria, onde fez um solo absurdo. Se tem algo que os fãs de prog merecem estar de parabéns é o senso coletivo de ritmo deles. No solo de Sandøy, todos bateram palmas sincronizados, ficando perfeitamente mais rápido quando o percussionista aumentou a velocidade.
Voltaram ao palco tocando a forte Isa, que apesar do nome, se assemelha mais a um chamado macabro do que a um apelido carinhoso para alguma Isabela. Pegaram o embalo do solo que já tinha animado a galera e jogaram a bola para a frente. Ela é um pouco mais curta, mais contida, nem chegando a bater os 4 minutos, mas é a mais tocada em shows, de acordo com o setlist.fm. Ao som de gritos de “one more song, one more song”, fecharam com Allfáðr Oðinn, que na gravação original, da demo de 1992, realmente se encaixa na descrição estereotipada do black metal que fiz no começo – parece que foi gravada dentro de um forno. Mesmo assim, sempre foi possível notar a ambição dos noruegueses, desde o primeiro disco, não tendo medo de misturar elementos de outros gêneros. Ao vivo, já é outra história, o som fica animal. Por alguma razão, a casa estava até esvaziando nessa hora.
Ao todo, fizeram uma apresentação incrível, que foi ao mesmo tempo cativante, tecnicamente impressionante e, de modo geral, linda. Mostraram claramente a que vieram e deixaram claro porque que são uma das maiores bandas do black metal da atualidade, mesmo sendo algo bem diferente. Fica até difícil de achar algo para comparar esse show, foi uma experiência extremamente diferente, mas extremamente bem-produzida. O som estava bom, a luz estava complicada em certas horas, mas deu para ver tranquilo, e o som, meu Deus o som, incrível!
Da próxima, Grute tem que voltar sozinho só pra dançar rumba. Ficou devendo essa.
Enslaved – setlist
Kingdom
Homebound
Forest Dweller
Congelia
The Dead Stare
Havenless
Fenris
Solo de bateria
Isa
Allfáðr Oðinn
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