Formado em 2017 pela vocalista Gwyn Strang e pelo multi-instrumentista Sean Bilovecky, o Frayle não precisou de muito tempo para mostrar um trabalho único dentro do doom metal. E a mescla de influências pessoais com o clima pesado da pandemia do novo coronavírus deu vida a um dos melhores discos de 2022, “Skin & Sorrow” – apenas o segundo álbum da dupla, que antes soltou “1692”, em 2020, e o EP “The White Witch”, em 2018.
E foi a própria Gwyn que detalhou o processo criativo com Sean – ao vivo, a cozinha é formada por Jason Knotek (baixo) e Jon Vinson (bateria) – que serve de guia para a sonoridade do Frayle. Uma sonoridade que, tão inquieta quanto empolgante, vai ganhar uma nova paleta de cores no próximo disco. Sim, eles já estão trabalhando no próximo álbum, e Gwyn até adiantou o provável título. Confira o bate-papo e se prepare uma experiência musical singular.
Como você está? Como passou a pandemia?
Gwyn Strang: Estou bem, obrigada por perguntar! A pandemia foi bastante ruim para todos nós, e eu perdi alguns amigos e parentes, assim como muitas outras pessoas também perderam, mas conseguimos chegar ao outro lado. Agora, temos de nos apegar à esperança de termos conseguido passar por isso e ainda termos algum motivo para sorrir. E você, como passou?
Sobrevivi (risos). Obrigado por perguntar, também. O primeiro álbum, “1692”, saiu em fevereiro de 2020, e aí veio a pandemia, não houve turnês… Como você lidou com essa frustração?
Gwyn: A pandemia foi realmente desastrosa nesse sentido, especialmente para músicos e bandas que dependem exclusivamente da sua música para viver. Eu e Sean fazemos outras coisas para viver, e mesmo assim foi um choque, porque tínhamos algumas coisas planejadas que obviamente foram canceladas. Em tempos como esse, temos de ser criativos para alcançar as pessoas quando não podemos encontrá-las ao vivo, embora estar no palco seja a forma que preferimos de divulgar a nossa música. Fizemos algumas transmissões na internet e lançamos alguns vídeos, ou seja, nós nos mantivemos ocupados durante a pandemia para divulgar nossa música o tanto quanto fosse possível, mas foi realmente complicado não ter as turnês para divulgar o álbum.
Os lockdowns e todo o resto relacionado à pandemia influenciaram “Skin & Sorrow” de alguma maneira?
Gwyn: Ah, influenciaram 100%. Quando começamos a compor o disco, ele era mais pesado e seguia uma direção diferente, aí alguém muito próximo a mim morreu. Testemunhei o falecimento, tentei ajudar o máximo possível, então isso definitivamente impactou o restante do trabalho. Aliás, vem daí o nome “Skin & Sorrow”, porque quando passamos por algo assim, quando alguém muito próximo falece, nos sentimos exatamente como pele e tristeza. Sobra um buraco vazio. As músicas “Skin and Sorrow” e “Perfect Wound” foram escritas no dia seguinte a essa morte, então foram um fluxo de consciência, uma forma de expurgo. Até hoje, especialmente em algumas partes de “Perfect Wound”, eu consigo ouvir a dor na minha voz. Lembro-me do que estava sentindo quando escrevi aquelas letras, então ainda fico com os olhos marejados quando as escuto ou as canto.
Desconhecia essa história. Sinto muito. A razão da minha pergunta tem a ver com a descrição “canções de ninar em meio ao caos”, porque a música do Frayle traz um pouco de paz em tempos sombrios. Pode ser estranho, mas faz sentido para você?
Gwyn: Obrigada! E faz sentido, sim, porque é o meu principal objetivo. Enquanto artista, tudo o que você quer é transmitir seus sentimentos, e é preciso conseguir fazer isso de alguma forma. E dentro da enorme variedade de emoções, o objetivo é mostrar que, não importa quais sentimentos sejam, ainda há esperança. Sempre espero ser bem-sucedida nessa mensagem com as letras e as melodias.
Além de “canções de ninar em meio ao caos”, há outra definição para a música do Frayle que achei bem interessante: “Música para o céu noturno”. Como você explicaria isso?
Gwyn: É a esperança de que uma música o leve mentalmente para outros lugares, deixando o seu corpo onde está. Quando penso em coisas como salto quântico o meditação transcendental, penso também no céu à noite, porque é como um vazio escuro, só que ainda existem estrelas como símbolos de esperança. Então, é uma forma muito ampla de explicar como a música aflora nossos sentimentos.
A música de Frayle é recente para mim, e ainda estou impressionado em como a banda pode trazer algo novo e revitalizante para o heavy metal hoje em dia. Quando falamos de doom metal, as pessoas automaticamente pensam em nomes como Candlemass. Então, como foi para vocês criar uma música singular?
Gwyn: Sean e eu somos os principais compositores da banda, sendo que temos uma experiência musical bem diversa. Sean teve uma banda chamada Disengage, que era bem hard rock, e esse é o ponto de vista dele. Eu venho de um ponto de vista mais gótico e de grupos como Portishead. Sean tem uma biblioteca com milhares de riffs, enquanto eu tenho uma biblioteca de milhares de anotações de letras e melodias, e nós trabalhamos separadamente, não sentamos juntos para tocar ou para compor. Ouço o que ele fez e canto em cima, como se fosse uma faixa-esboço, e acredito que trabalhar dessa forma, separadamente, mantém nossas identidades nas músicas. Por alguma razão funciona, mas não sei exatamente por quê (risos).
E vocês têm um ambiente “cercado por antigos lagos e bosques que ecoam os uivos dos coiotes” em sua casa, em Cleveland, para escrever a música de Frayle. Seria diferente se você tivesse que criar sua arte em um estúdio comum?
Gwyn: Sabe o que é mais engraçado? Eu não tenho como responder isso porque até hoje só gravei nosso estúdio, na parte de cima de casa (risos). No entanto, sim, posso dizer que o ambiente definitivamente molda quem você é e o que você tem a dizer. Creio que muitas pessoas não querem pensar sobre isso, mas a forma como você vive ajuda a criar a pessoa que você é. Eu cresci numa cidade pequena no Canadá, construída sobre um pântano e com uma paisagem deslumbrante. Sempre tinha uma névoa ao redor, e acredito que isso ajudou a me moldar na pessoa que sou hoje. Não dava para evitar a melancolia ao caminhar pela cidade, porque havia toda aquela paisagem dos pântanos, a névoa, e isso definitivamente me impactou.
A música do Frayle é uma combinação única de beleza com elementos sombrios. E músicas como “Perfect Wound” me lembram a trilha sonora de Twin Peaks, especialmente imaginando a saudosa Julee Cruise seguindo um caminho mais pesado e denso…
Gwyn: Ah, você está 100% certo! Quando eu era criança, lembro de assistir a “Twin Peaks” e ouvir Julee Cruise, e sua voz era tão hipnotizante! Não gosto da ideia de uma voz perfeita, tipo Mariah Carey, porque eu quero emoção, quero algo que me permita olhar para as fendas, picos, vales, e Julee Cruise incorporava isso muito bem. Sua observação foi um grande elogio para mim. Muito obrigada!
Outro aspecto interessante no Frayle é o visual. A capa de “Skin & Sorrow” é muito bonita, e os videoclipes são muito legais. Como foi filmar “Bright Eyes” em Salém, Massachusetts?
Gwyn: A maioria dos nossos vídeos começa comigo pintando uma ideia com um pincel largo, e o Sean chega para mostrar que é preciso adicionar um toque mais saudável (risos). Mas em “Bright Eyes” foi o oposto, porque ele viu o perfil de uma patinadora de Salém no Instagram e disse: ‘Não seria muito foda termos alguém patinando por Salém no vídeo?’, e nós aproveitamos qualquer desculpa para visitar a cidade (risos) (N.R.: os julgamentos das bruxas de Salém, em 1692, fizeram com que o local ficasse conhecido como a Cidade das Bruxas). Como havíamos tocado em Boston e tínhamos alguns dias livres na agenda, fomos para Salém. Chegando lá, entramos em contato e perguntamos se teria interesse em patinar, e ela aceitou. Nós a encontramos na Casa das Bruxas, que está na cena de abertura do vídeo, e o imóvel casa pertencia a um dos juízes responsáveis pela queima de tantas pessoas na fogueira. Assim, pensamos que seria bastante pungente abrir o clipe com uma moça gótica passando de patins pela casa de alguém que sentenciou todas aquelas pessoas à morte. Foi um dedo do meio para toda essa história dos julgamentos por bruxaria.
Curiosamente, eu esperava por algo assustador, o que não foi o caso. O vídeo de “Treacle & Revenge” é mais assustador, especialmente quando você dá aquele grito (risos). De qualquer forma, acredito que nem era sua intenção em “Bright Eyes”…
Gwyn: Normalmente, nós tentamos nos afastar de tudo que mostre civilização, então mostramos florestas e lugares que criem uma atmosfera. Nunca havíamos feito nada que refletisse a vida moderna, logo, teria que ser algo grande quando fôssemos fazer (risos). Por isso, temos Salém e, também, Nova York, que é uma das maiores cidades dos Estados Unidos em termos de população. Isso deixou tudo mais interessante.
Como há uma diversidade na música do Frayle, separei algumas faixas de “Skin & Sorrow” para você falar sobre elas. São as minhas favoritas, na verdade, e começo com “Ipecac”, que tem um bela melodia vocal e é quase pop. Considerando os parâmetros da banda, é claro… (risos)
Gwyn: O riff principal foi escrito pelo Eric (Mzik), nosso ex-baixista, e Sean se apaixonou quando o ouviu. Disse que conseguia se imaginar dirigindo por uma estrada, com as janelas abertas e ouvindo isso no som do carro. Foi uma das primeiras músicas que compusemos, na leva anterior ao falecimento que contei a você, e eu queria algo com uma melodia num tom baixo, que causasse sensação de liberdade e satisfação, mas, ao mesmo tempo, é claro que as minhas letras não falam sobre alegria (risos). Neste caso, escrevi sobre como dei uma chance a alguém e esse alguém partiu o meu coração, provando que não merecia a oportunidade que recebeu.
A segunda é “Stars”, na qual a bateria tribal encorpa o elemento etéreo da música…
Gwyn: Ela foi, provavelmente, uma das últimas que compusemos. Estávamos nos aproximando mais desse lance tribal, como você bem ressaltou, por isso acredito que no próximo álbum, no qual já estamos trabalhando, vamos nos expandir musicalmente um pouco mais nesse sentido. “Stars” está no pacote das músicas que compusemos quando passei por aquela perda, que foi tão devastadora para mim que até mesmo as estrelas choravam. Foi a única forma de descrever a imensidão de tristeza que senti.
A próxima é “Sacrifant”, que tem uns riffs à la Black Sabbath que ameaçam deixar a música up-tempo, sendo que a melodia vocal faz um contraponto quanto a isso…
Gwyn: Sean compôs esse riff há muito tempo, quando estávamos voltando a fazer música, e é interessante você tê-lo mencionado, porque amávamos o riff, mas não achámos que era muito a cara da Frayle (risos). Eu não tinha, em termos de melodia, algo que pudesse ajudar a encaixá-lo no que nos sentíamos confortáveis em lançar com o nome da banda. Mas consegui criar uma melodia vocal, e os vocais no fim são provavelmente meus favoritos, porque são meio como os de um filme pornô (risos). “Sacrifant” é resultado de um dos momentos em que ficamos enrolando para fazer até conseguirmos pensar numa maneira que funcionasse e, claro, gostássemos do resultado.
Por último, mas não menos importante, a bela e hipnótica “Song for the Dead”…
Gwyn: Também está na fase pós-perda daquela pessoa que era muito querida para mim. O que creio ser interessante “Song for the Dead” são as melodias que chamamos de “Oh ah”, que são as melodias separadas que compus e que deveriam seguir perto uma da outra, mas que, na hora de gravar, pensei: ‘E se as sobrepusermos?’. Então, ao ouvir com atenção, é possível perceber duas melodias separadas tocando ao mesmo tempo, e isso é o que faz essa música ser tão interessante. Na verdade, eu e Sean sempre dizemos um ao outro que aquele trechinho da música é um dos nossos favoritos.
E também gostaria de falar sobre o cover de “Ring of Fire”, do Johnny Cash, porque vocês viraram a música de cabeça para baixo e colocaram o DNA do Frayle nela.
Gwyn: Geralmente, eu escolho as músicas para as quais faremos uma versão, porque se eu deixar na mão do Sean… (risos) Sou e sempre fui grande fã do Johnny Cash, e aquele disco de covers dele, com uma música do Nine Inch Nails, me faz chorar! É tão cheio de alma que eu quis fazer algo assim com uma das músicas dele. “Ring of Fire” pode parecer uma escolha óbvia, mas passamos muito tempo trabalhando nessa versão, afinal, originalmente ela tem uma sonoridade animada, então como a faríamos soar assustadora? Tivemos de tocar noutra afinação, mudamos completamente a melodia, e existem 21 faixas de vocais tocando ao mesmo tempo. Foi um trabalho extenso e demorado, mas espero que as pessoas gostem, porque foi feito com muito amor e respeito.
E há outro lado, porque a versão para “Bela Lugosi’s Dead”, do Bauhaus, ficou mais próxima da original…
Gwyn: Foi uma questão de necessidade. A música do Cash é mais animada, e desta vez foi o Sean quem escolheu “Bela Lugosi’s Dead”, e eu fiquei meio nervosa porque é uma música icônica. Ela carrega um significado imenso, que é o nascimento da cultura gótica e da música gótica, e acredito que não se deve brincar com algo assim. “Bela Lugosi’s Dead” é uma das minhas músicas favoritas da vida, a que me catapultou para a cultura gótica e abriu os meus olhos para tudo que é sombrio, assustador e bonito, então não precisava de muita coisa, mesmo, ao passo que “Ring of Fire” teve de ser totalmente reescrita para combinar com o Frayle. Ainda assim, inserimos pequenos detalhes nossos, como cantar a primeira estrofe mais sussurrada e fazer com que a música ficasse mais pesada a partir da segunda estrofe.
Você falou que já estão trabalhando no terceiro disco. O que mais pode adiantar?
Gwyn: Sim, estamos! E as coisas mudam, né? (risos) O “Skin & Sorrow” era para ser um álbum bem mais pesado, mas acabou virando um trabalho melancólico, e no momento estamos nos concentrando naquele lance mais tribal com a bateria. Acredito que o disco vai se chamar “Heretic”, mas só temos alguns esboços de músicas por enquanto. Não há nenhuma faixa realmente sólida, porque ainda estamos trabalhando o material.
Obrigado pela entrevista, Gwyn, e o espaço é todo seu.
Gwyn: Gostaria de agradecer a todos pela paciência devido ao atraso do disco e, claro, por ouvirem o disco. E obrigado a você por nos dar a oportunidade de falar sobre o nosso trabalho para o público do Brasil, porque admiramos muito o seu trabalho, também.