Segundo as palavras do nosso próprio entrevistado, Portugal certamente não é a nação que mais produz bandas de black metal no planeta, e imagino que também não seja a primeira que venha à sua mente quando mencionamos o estilo. Porém, à partir do momento em que você ouvir pela primeira vez qualquer um dos três registros já lançados pelo Gaerea, certamente você dará uma atenção extra para o cenário de Portugal, que antes já destacou bandas como Moonspell e Decayed. Com um EP e dois full-lengths lançados (o mais recente, Limbo, veio em 2020), eles já preparam o terceiro registro completo, Mirage, com lançamento marcado para 23 de setembro pela Season Of Mist. Enquanto aguarda o novo álbum e a nova entrevista, aproveite essa nossa conversa com o guitarrista fundador da banda, que, por razões que você conhecerá nessa entrevista, prefere ser chamado pelo nome do grupo que fundou.
Você ainda lembra qual foi a primeira banda de black metal que ouviu?
Gaerea: Sim, acho que a primeira ideia que tive sobre esse gênero veio do Ragnarok, a banda norueguesa, claro. Minha primeira banda mais séria já era uma banda de black metal, então à partir das conversas com outras pessoas meu conhecimento foi expandindo, mas acredito que a primeira foi mesmo o Ragnarok. Com o tempo fui gostando mais de bandas que apresentavam variações àquele estilo típico do black metal norueguês, conheci o Belphegor e a cena black da Áustria, bandas que tentavam coisas diferentes na Suécia, Polônia. Talvez eu me identifique mais com as variantes do estilo do que com aquele black típico da Noruega, o que é curioso quando pensamos que a minha primeira exposição foi com uma banda norueguesa.
Você coleciona discos?
Gaerea: Sim, mas nem tudo em vinil, sei que essa é a grande tendência hoje, mas não é assim que faço. Existe algo que busco nas bandas que compro em vinil, em geral são aquelas que tem uma identificação muito forte na sua música, e as outras ouço em streaming, compro o CD, essas coisas, minha coleção de discos não é algo gigante. Mas existem bandas especiais que procuro ter tudo em vinil, como Watain, Shining, Regarde Les Hommes Tomber, enfim, tem algumas bandas que são especiais para mim.
O que mais te atrai no black metal?
Gaerea: Principalmente a liberdade criativa sem qualquer tipo de barreiras que o black metal proporcionou no passado e ainda hoje proporciona para os músicos. Claro que poderíamos ter uma discussão de algumas horas sobre o quanto o black metal atual é diferente daquele que se fazia nos anos 90, mas acho que ele ainda é feito por indivíduos, por pessoas criativas que se deixam levar por inteiro por sua arte, o que acho muito bom. Veja bandas como Shining, Watain, Lifelover são bandas em que a arte simplesmente devora o indivíduo, e os músicos passam a ser mais e mais parte da música que praticam. Sinto que esse é o tipo de ascensão que todos os artistas desse estilo desejam alcançar, essa confusão saudável entre o artista e sua arte, o músico e aquilo que sua música representa. Esse é o estandarte que me fez seguir o estilo tão de perto e praticá-lo com a minha música.
Dentre todos os estilos, o black metal é provavelmente aquele que enfrenta maior resistência daqueles que não ouvem o estilo, e um dos que mais paixão desperta em seus fãs. Até por isso é comum os fãs e bandas se organizarem em grupos, como foi o Inner Circle na Noruega, e o Austrian Black Metal Syndicate, na Áustria. Você vê algo parecido em Portugal?
Gaerea: Não. E aqui eu vou falar como fã do estilo, e não como músico. O black metal, como estilo teve uma ascensão que eu considero normal no final dos anos 90, por conta de tudo que acontecia na época. A mídia especializada de toda a Europa falava muito sobre black metal, várias bandas do estilo estampavam capas de revistas importantes, e Portugal não ficou à parte disso, claro. Acho que o momento-chave para o black metal aqui em Portugal foi a vinda de Quorthon para cá, durante o ciclo de promoção dos primeiros discos do Bathory. Acho que esse evento vincou muito do que foi a cena portuguesa de metal extremo ao longo dos anos, o próprio Moonspell costuma dizer que foi no momento em que conheceram Quorthon numa loja de discos de Lisboa que decidiram formar a banda. A mesma coisa pode ser dita do Decayed e de outras duas ou três bandas daquela época, que moldaram o metal extremo português. A questão é que por aqui é sempre assim, nunca é um grande número de bandas, são sempre duas ou três, então não sinto que algo como o Austrian Black Metal Syndicate poderia acontecer por aqui. É muito limitado. Hoje, por exemplo: é claro que não somos a única banda black metal de Portugal, existem outras boas bandas daqui, mas está muito longe de ser um Inner Circle, e não acho que isso acontecerá um dia.
Onde você diria que está existindo um crescimento maior no cenário black nos dias atuais?
Gaerea: Eu acho que na Islândia. Esse fenômeno que vimos na Islândia a cerca de três ou quatro anos, isso só é possível porque você tem pessoas altamente criativas e que se ajudam muito. É bem comum você ver um músico que participa de várias bandas, que toca guitarra aqui e ali, baixo lá, e é vocalista em uma outra, isso é algo bem comum por lá, e também é uma marca daquilo que aconteceu na Noruega, Suécia e Finlândia décadas antes. E isso não é algo que você vê aqui em Portugal, principalmente nesse estilo. É uma coisa muito fechada, é típico de nós, talvez seja um respeito demasiado grande por aquilo que fazemos, e isso pode acabar tendo efeito contra nós, somos muito fechados e queremos mostrar apenas aquilo que acreditamos que as pessoas devem ver, mesmo àquelas pessoas que nos conhecem pessoalmente. Até essas pessoas têm um acesso limitado, é o nosso jeito de ser.
É por isso que o Gaerea optou por usar máscaras em seu material promocional, e não costuma divulgar o nome dos envolvidos com a banda?
Gaerea: Sim, de certa forma é isso também, mas existem outros motivos. Gosto que a música chame mais atenção do que os músicos, e em última instância, nem somos pessoas tão interessantes assim, que alguém fosse de fato se importar com quem somos individualmente. Não existe uma grande personalidade do metal internacional nessa banda, ninguém que desperte real interesse, e acho que isso é ótimo. Somos o Gaerea, e prefiro que sejamos conhecidos assim, simplesmente. Mas não é como se fizéssemos segredo sobre a nossa identidade, quem realmente quiser consegue encontrar essa informação facilmente. É como você disse, optamos por uma imagem mais discreta, mas não é nenhum segredo. É mais como uma metáfora. As pessoas não se interessam de verdade por nós, não se interessam de verdade por ninguém. Se realmente se importassem com os outros, viveríamos em um mundo muito melhor do que esse em que vivemos. É dessa forma que vemos a situação.
Perfeito. Quanto ao Gaerea, as coisas começaram a acontecer em 2016, com o lançamento do EP Gaerea. Em 2018, veio o primeiro álbum, Unsettling Whispers. O que pode nos contar sobre esses anos iniciais da banda?
Gaerea: Bem, o primeiro disco eu basicamente compus totalmente sozinho, uma vez que naquela época ainda não éramos uma banda propriamente dita, Gaerea era ainda um projeto musical meu, era uma experiência. Eu tinha algumas ideias, e algumas outras foram surgindo durante o processo. Com o tempo, algumas pessoas começaram a se juntar, encontramos o nosso vocalista, tivemos um bom produtor para o EP de estreia também (N.R: JB van der Wal, que trabalhou com Inquisitor, Soulburn, Tsjuder, Aborted e outros), então as coisas foram se desenvolvendo enquanto o tempo passava. Conseguimos um contrato naquela época, com a Everlasting Spew Records, pensamos em aceitar alguns convites para tocar ao vivo em Portugal e constituir verdadeiramente uma banda. Enfim, primeiro veio a ideia, depois houve o estúdio, houve a música e só depois houve a banda.
Toda a composição funcionou basicamente como uma ‘one-man-band’?
Gaerea: Sim, basicamente. O Gaerea não nasceu com um núcleo de composição muito grande, mesmo hoje a maior parte da composição é feita por no máximo duas pessoas. Claro que cada um coloca a sua personalidade na música, mas pronto, a composição mesmo é algo bem concentrado, não somos o tipo de banda que aluga uma sala de ensaio para que todos componham juntos, ficando ali a tramar até que saia uma música. Nunca fizemos isso, não é como funcionamos.
Bem, 2016 foi muito maior do que apenas o lançamento do EP para vocês.
Gaerea: Sim, foi o ano em que a ideia surgiu, e foi quando a coisa também foi crescendo e tomando outra forma, era um projeto meu, e conforme fomos gravando e tocando ao vivo fomos migrando para uma banda, 2016 e 2017 foram anos muito importantes para nós. Na verdade, naquele mesmo verão de 2017 (N.R: inverno para nós) queríamos voltar para o estúdio para gravar o primeiro álbum completo, foi um processo de crescimento, que envolve tempo e mudança de perspectivas também. Ainda hoje existem coisas que não estou disposto a fazer, mas se você falar comigo depois de algumas semanas, sou capaz de ter mudado de ideia e topar.
Nada de dramático, que representaria uma ruptura, certo?
Gaerea: Não, nada de tão grandes proporções. Enfim, existem coisas que às vezes me sinto um pouco relutante em fazer porque sinto que ainda não estamos em um determinado patamar, mas isso pode mudar com o tempo. Não somos uma banda de extremo ‘hype’, não foram muitas as pessoas que nos estenderam a mão para que alcançássemos logo de cara algo grande, sempre foi algo muito trabalhoso em cada etapa, sacrificamos muito para poder fazer isso, mas hoje estamos colhendo os frutos, então posso dizer que vale a pena pensar com cuidado.
Bem, o álbum Unsettling Whispers termina com a canção Catharsis, que denota em sua letra a queda do homem. Existe alguma conexão com o álbum mais recente, Limbo (2020)?
Gaerea: Sim, eu diria que Limbo é uma continuação direta e muito apropriada do Unsettling Whispers. Não vou me aprofundar muito no conceito porque sinto que é muito longo, mas como você disse, o álbum anterior termina com uma queda do homem, uma jornada pelo abismo por assim dizer, e To Ain, primeira faixa de Limbo, fala exatamente sobre esse momento da queda. Enfim, eu diria que o novo álbum é uma espécie de volta ao mundo de ficção que criamos em Unsettling Whispers, um mundo que apresenta muitos elementos da realidade que observamos na estrada, na nossa vida cotidiana. É um rever, é um reimaginar dessa mesma história com narração em primeira pessoa, enquanto no disco anterior a narrativa era em terceira pessoa. Antes era como um observador externo percebendo coisas que lhe eram estranhas, e agora o personagem está falando sobre aquilo que está de fato acontecendo com ele. Acho que essa mudança de perspectiva tem também a ver com as mudanças que envolveram a banda nesse período, não contamos com o mesmo line-up nos dois álbuns, eles foram gravados por formações diferentes, você sabe, a vida acontece, e tivemos que fazer mudanças para seguir em frente. É isso que você tem em Limbo, uma mudança de perspectiva com um mesmo tema.