A última passagem de Glenn Hughes pelo Brasil nem havia esfriado quando foi anunciada uma nova turnê por aqui. Mas responda com sinceridade: você reclamaria se o baixista e vocalista tocasse na sua cidade ano sim, ano também? Claro, pode rolar um cansaço no público graças à saturação, mas o show não tem erro. Em um resumo frio, é música de qualidade muito bem executada. Se você estiver presente, sairá com a certeza de que é bem mais do que isso – nem precisou executar “Heavy”, primeira faixa de trabalho do novo álbum, “Resonate”, que chega às lojas em novembro. Porque foi isso, música de qualidade muito bem executada, que Hughes, o guitarrista Soren Andersen (guitarra) e o excelente Pontus Engborg (bateria) mostraram no Teatro Rival – diga-se de passagem, local bem melhor e mais confortável que o Teatro Odisseia, palco da data carioca em 2015.
Responsável pelo aquecimento, o Seu Roque cumpriu o seu papel se levarmos em consideração uma baixa exigência em relação à banda de abertura. Flavio Anunciação (baixo e vocal), Neube Brigagão (guitarra) e Diego Denucci (bateria) se transformaram num quarteto com a participação especial do tecladista Bruno Sá, mas ficaram devendo. As músicas próprias têm lá alguns momentos instrumentais interessantes, apesar de um clima de Rock brasileiro dos anos 80 que não agrega, e não necessariamente porque as letras são em português. Mas o problema mesmo foram os covers. “White Room”, do Cream, teve problemas de andamento, enquanto “Perfect Strangers”, do Deep Purple, não ficou nada legal na voz de Anunciação. Não mesmo.
Hora da atração principal, hora de a pista ficar tomada. Por questões de segurança, a casa passou a comportar 450 pagantes desde a tragédia na Boate Kiss, em Santa Maria (RS), em 2013. O resultado disso é que o local, mesmo com todos os ingressos vendidos, permite ao público curtir o show sem dois corpos tentando ocupar o mesmo lugar no espaço – a rigor, o único porém será sempre o palco mais baixo que o normal, uma vez que o Teatro Rival foi planejado para a configuração com mesas e cadeiras. Ruim quando o fã quer ver os dedos passeando pelo braço da guitarra durante um solo, mas e daí? Os centímetros a menos não esconderam a presença hipnótica de Hughes.
As primeiras notas de “Way Back To The Bone”, clássico do Trapeze que deu início ao show, forneceram de cara o principal combustível da noite: groove. Muito groove. E com pitadas de Soul e Funk um Hard Rock vigoroso, que teve em “Muscle And Blood” a primeira surpresa em relação à apresentação do ano anterior. E não foi a única pinçada de “Hughes/Thrall”, álbum feito com o guitarrista Pat Thrall e lançado em 1982. Com seu agradável acento mais Pop e um show à parte de Hughes, “First Step Of Love” também deu o ar da graça. Entre as duas, “Orion” provou mais uma vez que fica ainda melhor ao vivo, com uma levada irresistível puxada por um baita riff, e “Touch My Life”, mais uma do Trapeze, deu sequência ao ritmo contagiante.
Com direito a um errinho no começo, “Stormbringer” começou a saciar a interminável fome por algo do Deep Purple, por mais que todos os presentes soubessem que não faltariam clássicos para representar a banda inglesa. E vale destacar o respeito de Andersen ao trabalho original de Richie Blackmore, principalmente no timbre. E apesar de uma presença de palco bem menos expressiva que a de Doug Aldrich, o sueco saiu-se bem na difícil missão de ocupar o posto do guitarrista que hoje está no The Dead Daisies. “Esta foi a primeira música que escrevi. Tinha 17 anos, foi na cozinha da casa minha avó numa época em que meu cabelo chegava até a bunda”, disse Hughes ao anunciar “Medusa”, a terceira surpresa da noite.
E a canção do Trapeze foi um prato cheio para a garganta de ouro do baixista. Que outro vocalista de sua geração – Hughes tem 64 anos – encontra-se tão bem? Pense bem. De fato, nenhum. E não custa lembrar que estamos falando também de um excelente instrumentista. O pacote completo pôde ser sentido na pesada “Can’t Stop The Flood”, de sua carreira solo, e em “One Last Soul”, e no refrão da ótima “One Last Soul”, retirada do catálogo do Black Country Communion. “Escrevi esta música com David Coverdale para o álbum ‘Burn’, mas só a gravamos em ‘Come Taste The Band’. Gostaria de dedicá-la a Jon Lord e Tommy Bolin.” Assim, a belíssima “You Keep On Moving” foi ovacionada desde o início. Foi a quarta e última novidade no set.
Dá para entender por que “Soul Mover” não sai do repertório. É uma das melhores músicas da história solo de Hughes, mas só isso não bastaria. O fato de que ela caiu no gosto dos fãs é o que faz a diferença. Tirando o óbvio – como os clássicos do Deep Purple –, foi uma das duas canções que fizeram a plateia cantar com vontade. A outra veio logo no bis: “Black Country”, outra do grupo ao lado de Joe Bonamassa, Derek Sherinian e Jason Bonham. As vozes em ‘I’m a messenger, this is my prophecy. I’m going back to the Black Country’ apenas acompanharam o frenesi causado com aquele riff espetacular de baixo.
Mas o show não era apenas de Hughes. Engborg, que vinha espancando o kit com técnica e precisão impressionantes, colocou sua pegada ainda com mais vontade a serviço de “Black Country” e, claro, do que veio em seguida para fechar a noite. Sim, “Burn”. Não importa quantas vezes você ouça essa joia. Não importa saber que o lugar dela está guardado para fechar o show. Sabe o craque que fica com a missão de cobrar o pênalti decisivo? E “Burn”, e a catarse ao som do antológico riff se compara à comemoração de um título. Combustível para Hughes entregar mais uma performance nervosa e mandar todos de volta para casa em paz, com amor e um sorriso no rosto. Pode voltar ano que vem. Tem até o novo disco como desculpa.
1. Way Back To The Bone
2. Muscle And Blood
3. Orion
4. Touch My Life
5. First Step Of Love
6. Stormbringer
7. Medusa
8. Can’t Stop The Flood
9. One Last Soul
10. You Keep On Moving
11. Soul Mover
Bis
12. Black Country
13. Burn