Por Luiz Tosi
Fotos: Roberto Sant’Anna
Glenn Hughes é uma lenda do rock. Rodado e prolífico, o cantor e baixista de 72 anos tem dezenas de discos no seu currículo, seja como membro de bandas como Trapeze, Black Sabbath, Phenomena, Black Country Communion, California Breed e The Dead Daisies, ou como igualmente bem-sucedido artista solo. Entretanto, não importa o que grave e/ou com quem grave, Hughes, sempre referido como “A Voz do Rock”, será eternamente reverenciado pela sua breve, porém intensa passagem pelo Deep Purple. Foram pouco mais de três anos com a banda com a qual lançou três discos seminais e integrou duas formações diferentes, conhecidas como MKIII e MKIV, são eles as obras-primas Burn e Stormbringer, ambos de 1974, e Come Taste the Band, de 1975.
Obviamente, as faixas desses álbuns sempre estiveram presentes nos shows do cantor, mas 2023 traz um significado especial, pois completa-se meio século desde a entrada de Glenn Hughes no Purple, em meados de 1973. Para celebrar, Hughes anunciou, em fevereiro último a turnê especial “Glenn Hughes Performs Classic Deep Purple Live – Celebrating the 50th Anniversary of the Album Burn”. “Acho que ninguém no Deep Purple faria isso. Sinto a obrigação de fazer isso por vocês”, disse o músico na ocasião. Tecnicamente ele está certo. O tecladista Jon Lord e Tommy Bolin, guitarrista da MKIV, não estão mais entre nós. Ian Paice segue no Deep Purple, que renega categoricamente a fase 1973-1976, enquanto que os constantes problemas de saúde de David Coverdale parecem impedi-lo de fazer turnês novamente. Quanto a Ritchie Blackmore… Bem, esse ninguém sabe dizer o que pensa – acho que nem ele mesmo. Posto isso, Glenn Hughes é mesmo o único e último embaixador da era MKIII/IV do Purple.
Sobre o referido anúncio, a recepção para tal foi tão boa que o show do último sábado (11) em São Paulo, inicialmente agendado para o Carioca Club, foi realocado para a Vip Station, que tem o dobro da capacidade de público. Porém, deveria ter sido realocado para um lugar ainda maior, pois a casa estava exageradamente lotada. Para piorar, o sistema de ar-condicionado do VIP Station não deu conta: em um dos dias mais quentes do ano em São Paulo, o lugar virou uma verdadeira sauna. Na passagem pelo Brasil, Hughes ainda se apresentou em Limeira (SP), Florianópolis (SC), Brasília (DF), Belo Horizonte (MG), Porto Alegre (RS) e Rio de Janeiro (RJ), porém alegando estar acometido de uma forte gripe, cancelou o show de Curitiba (PR), que estava marcado para o dia 08.
A noite contou com a abertura dos paulistanos do Hammerhead Blues e dos ribeirão-pretanos do Red Water, respectivamente. Ambas apostam no classic rock, a primeira com uma abordagem mais grooveada, enquanto a segunda traz um acento um pouco mais hard rock. “O convite de abertura para Glenn Hughes foi uma das coisas mais legais que aconteceram nesses quase dez anos de banda”, disse Luiz Cardim, do Hammerhead Blues, à ROADIE CREW. “A obra dele faz parte de nosso DNA musical, pois crescemos ouvindo Deep Purple, Trapeze, Black Sabbath e várias outras obras que ele registrou. E que noite incrível… A galera foi calorosa, gostou do som. Muita gente veio trocar ideia depois do show. Por sinal, o batera do Glenn Hughes assistiu ao nosso show inteiro do lado do palco. Pediu até uma camiseta nossa para usar na tour”, concluiu o empolgado guitarrista.
Foi pouco depois das 21h que Glenn Hughes iniciou seu retorno triunfal a São Paulo. Com sua “juba” enorme, de óculos escuros, paletó preto brilhante e um enorme sorriso no rosto, o cantor demonstrou uma exuberância que só foi igualada pela sua voz. O show começou enlouquecendo o público com Stormbringer, uma das músicas símbolo de sua era no Deep Purple. Bastaram alguns segundos para ver que a voz de Glenn não só não perdeu nada ao longo dos anos, como em alguns momentos soou ainda mais forte. Após Stormbringer, embarcamos direto ao álbum homenageado da noite, com quatro faixas de Burn sendo executadas, começando pelas suingadas, dançantes e espetaculares Might Just Take Your Life e Sail Away. Breve pausa para cumprimentar o público e Glenn fez questão de destacar seu amor por São Paulo dizendo que sua primeira pergunta ao saber que a turnê passaria pelo Brasil foi, ‘quando seria o show na cidade?’ e emendou aquele clássico “não costumo dizer muito isso, mas vocês são a melhor plateia do planeta”. Pieguices à parte, dá para acreditar mesmo, pois Glenn é figura constante em São Paulo há quase trinta anos. Chegou até mesmo a gravar um disco por aqui, o ao vivo Glenn Hughes Live In South America, de 1999.
Ao introduzir You Fool No One, Hughes lembrou do famigerado episódio em que durante a execução da música Ritchie Blackmore ateou fogo no palco durante a apresentação do Purple no icônico festival “California Jam”, em 1974. Ao melhor estilo “Deep Purple Live”, todas as músicas foram executadas em versões estendidas, recheadas de solos, jams e improvisos, e You Fool No One passou de 20 minutos de duração, incluindo trechos de High Ball Shooter (do álbum Stormbringer), um longo solo de bateria e mais trechos de The Mule, do Deep Purple, antes de voltar para a música principal.
Ao longo do show, Glenn acertou todas as notas altas com perfeição e naturalidade impressionantes. Mas ele é muito mais do que apenas um vocalista incrível, ele é um frontman carismático e um extraordinário baixista. Sua banda, formada por Søren Andersen (guitarra), Bob Fridzema (teclados) e Ash Sheehan (bateria), entregou cada faixa brilhantemente, combinando técnica, musicalidade e espontaneidade, todos com tempo de sobra para brilhar com solos e momentos individuais de destaque. É raro ver uma banda de apoio de um grande artista que consiga reproduzir partes que não são originalmente suas, com personalidade e autenticidades próprias.
Antes da próxima, mais história. Agora sobre quando, cerca de 15 anos atrás, Glenn teria procurado John Lord e David Coverdale para conversas sobre uma eventual reunião do Deep Purple MKIII. Reunião que, segundo ele, não teria caminhado porque “ninguém teria conseguido falar com Blackmore pelo telefone”. E aí veio Mistreated, o blues rock de Burn, ovacionado e cantado em uníssono pelo público, criando um dos momentos mais emocionantes e grandiosos da noite.
Pausa na sequência Burn, porém não na emoção. As duas seguintes foram as representantes do delicioso Come Taste the Band, o terceiro, último e mais “funkeado” álbum de Hughes com o Purple. Gettin’ Tighter foi dedicada a Tommy Bolin, então guitarrista prodígio que substituiu Blackmore em 1975 e que morreu precocemente no ano seguinte, enquanto You Keep On Moving homenageou Jon Lord, tecladista fundador da banda, falecido em 2012. Fim do set regular!
Se normalmente os intervalos que antecedem um bis já são cercados de expectativas, esse foi ainda mais esperado, pois havia um enorme burburinho de que Chad Smith, baterista do Red Hot Chili Peppers, daria as caras no Vip Station. Até aí – diriam alguns -, nada demais, afinal Chad se tornou o “rei do rolê aleatório” durante a passagem dos Chili Peppers pelo Brasil. Protagonizando cenas bastante “pitorescas”, o carismático baterista americano foi de canja em bar tocando Legião Urbana no Rio e palhinha em show de um RHCP Cover em São Paulo, à uma inusitada aparição no meio da plateia em um show da dupla sertaneja Jorge e Mateus (!). Mas o que nem todos sabem é que Chad tem uma relação de amizade e parceria de mais de duas décadas com Glenn Hughes, tendo tocado em cinco dos seus álbuns de estúdio, além de alguns ao vivo. E como o Red Hot havia se apresentado na mesma São Paulo um dia antes (leia resenha do show aqui), nada mais natural que esse encontro acontecesse.
Anunciado como “meu baterista por cinco álbums”, Chad foi recebido com um barulho ensurdecedor. O baterista é fã declarado e apaixonado por Deep Purple, a ponto de, mesmo tocando numa das bandas mais bem sucedidas do planeta, encontrar espaço para ocupar o posto de “apenas baterista do Glenn Hughes”. Seu lado mais ‘hard rocker’ também pode ser conferido com a espetacular superbanda Chickenfoot e em seus dois discos com Ozzy Osbourne – Ordinary Man (onde é coautor de todas as faixas), de 2020, e Patient Number 9 (coautor de 9 das 13 faixas), de 2022.
As escolhidas para o final apoteótico foram Highway Star, a única da fase MKII (pré-Hughes) e a faixa-título do homenageado Burn. A performance dispensa comentários e elogios: Chad é um monstro e parece ter essas músicas tatuadas no cérebro, tamanha a leveza e fluidez com que as executa. No fim, o baterista literalmente quebrou tudo, arremessando a bateria para o alto, no melhor estilo rockstar!
Foram dez músicas em quase duas horas em uma noite de celebração e homenagens aos que se foram – Tommy Bolin e Jon Lord – e aos que ainda estão por aqui – Paice, Ritche, David e o próprio Glenn. O Deep Purple, que se apresentou por aqui em março, pode renegar uma das fases mais ricas e diversas da sua história, mas enquanto Glenn Hughes estiver na ativa, os MKIII e IV seguirão vivos, bem preservados e agora eternizados na alma de milhares de fãs brasileiros. Reverências ao mestre!
Setlist
- Stormbringer
- Might Just Take Your Life
- Sail Away
- You Fool No One / High Ball Shooter / Drum solo / The Mule
- Mistreated
- Gettin’ Tighter
- You Keep On Moving
- Highway Star (com Chad Smith)
- Burn (com Chad Smith)