O transporte público de São Paulo tem suas surpresas. Quase nunca agradáveis, para dizer a verdade. Assim, aqueles que quiseram chegar ao Carioca Club de metrô e precisavam da conexão na estação República tiveram uma dessas surpresas. À frente do local do embarque, uma placa informava que a estação estaria fechada durante todo o dia. Bastou para que a velha frase de Antônio Fagundes em “Carga Pesada” ecoasse em nossas mentes: “É uma cilada, Bino.” Resultado: tivemos que encarar linha vermelha, azul e verde, para só então chegar na amarela e ter a chance de descer na estação Faria Lima, que fica bem próxima do local. No entanto, a certeza do espetáculo que se iniciaria às 19 horas amenizava a confusão e o cansaço extra gerado por esse ‘pequeno incidente’ no metrô.
A previsão se mostrou acertada. Sem poder contar com Moacyr Flores, Boris Fausto e Sérgio Buarque de Holanda, mas com Ale Dantas e Renato Domingos (guitarras), Paulo Chopps (baixo), João Pires (bateria) e Maurício Guimarães (vocal) em noite inspirada, a aula de História do Brasil em ritmo metálico começou com o Armahda, que fez valer o esforço para chegar cedo. Colocando fogo na plateia logo de cara com “Echoes from the River”, dotada de uma letra fantástica, instrumental elaborado e um refrão pegajoso cantado em uníssono, O início não poderia ter sido mais eficaz. O vocalista Maurício aproveitou para saudar os presentes, relembrando que em 2014 a banda estreou ao vivo neste mesmo Carioca Club (no feriado de 7 de setembro, dia da Independência do Brasil, ocasião em que abriram para o sueco Sabaton).
“The Iron Duke” veio na sequência, com sua letra baseada em Luís Alves de Lima e Silva, mais conhecido como Duque de Caxias, apelidado Duque de Ferro. “Last Farewell”, bela e emotiva, foi dedicada a todos que já foram exilados da história do Brasil, e foi seguida por “Spears of Freedom”, homenagem aos Lanceiros Negros, que lutaram na Revolução Farroupilha. Antes dela, rolou até um momento engraçado, com Maurício gritando “Chega de balada, nós estamos abrindo pro Grave Digger, porra!”. Depois ainda houve tempo para “Armahda”, “Canudos” (uma faixa extremamente cativante, que mistura heavy metal com ritmos nordestinos com primazia) e “Paiol em Chamas”, que encerrou a apresentação.
O sentimento geral era de que o Armahda mais do que apenas deu conta do recado, manteve o seu bom nome diante dos fãs, além de angariar novos, que ouviram pela primeira vez algumas de suas composições neste evento. Sendo parte do movimento denominado “Levante do Metal Nativo”, levado adiante por bandas que usam a História, o Folclore e a Cultura brasileira como base de suas composições, o Armahda era a banda certa para abrir o show da lendária banda alemã, que sempre gostou de utilizar temas Históricos em suas músicas. Ponto para a organização, que usou a cabeça e garantiu um espetáculo único para os presentes.
Levando adiante o ano letivo na capital paulista, era hora da segunda aula da noite, agora ministrada pelos experientes alemães do Grave Digger. Estes, sem poder contar com Ernst Nolte, Leopold von Ranke e Friedrich Meinecke deram início a aula de História Geral em heavy metal apostando fortemente na performance e nos clássicos executados pelos doutos professores Axel Ritt (guitarra), Marcus Kniep (teclado), Stefan Arnold (bateria), Jens Becker (baixo) e o PhD. Chris Boltendahl (vocal). A aula se iniciou com a viciante nova faixa que dá nome ao recém lançado décimo sétimo disco de inéditas, “Healed By Metal” (2017).
Demonstrando conhecer cada verso da canção, os fãs que lotaram o Carioca Club cantaram em altos decibéis a letra, e deixaram Boltendahl ainda mais inspirado do que de costume, o que se pôde perceber durante toda a apresentação. O ‘frontman’ alemão se mostrou mais solto, mais empolgado e mais ativo, algo incrível para um senhor de 55 anos que nunca fez sequer uma única apresentação mediana em solo brasileiro. Como tudo estava a favor da banda, mais uma do novo álbum, “Lawbreaker”, veio na sequência, abrindo as portas para o primeiro dos muitos clássicos da noite, “Witch Hunter”, do álbum homônimo de 1985.
Avançando onze anos no tempo, chegamos em “Tunes of War” (1996), um dos maiores clássicos da carreira do Grave Digger, com a emblemática “Killing Time”. Boltendahl ensaiou o coro com a plateia para “Ballad of a Hangman”, e brincou dizendo “isso está soando terrível!”. Diante dos risos gerais ele persistiu, até chegar ao resultado esperado, e os riffs precisos de Ritt ecoaram fortes durante toda a composição, muito bem recebida pelo público. “Season of the Witch” precedeu a clássica “Lionheart” (“Knights of the Cross”, 1998) e “The Round Table (Forever)”, primeira de “Excalibur” (1999) a aparecer na noite.
Se “Tattooed Rider” (“Return of the Ripper”, 2014) serviu para amenizar o clima após a sequência de clássicos, o clima voltou a esquentar e beirou a loucura com “The Dark of the Sun”, outra do icônico “Tunes of War”. Após “Hallelujah”, que o vocalista apresentou como uma de suas músicas favoritas, e “Morgane le Fay”, veio o único solo da noite, e até isso agradou. Restando apenas o tecladista Marcus Kniep no palco (devidamente trajado de ‘Ripper’ durante toda a apresentação), e com a iluminação reduzida a apenas um sutil tom de vermelho, ele fez um solo curto, macabro, condizente com a imagem de uma banda chamada Grave Digger. Realmente interessante e nada cansativo como costumam ser esses momentos em shows.
A banda voltou para o palco com “Excalibur”, e então foi a vez de “Rebellion (The Clans Are Marching)”, um clássico absoluto cantado em tão altos gritos que por vezes a voz de Boltendahl era abafada pelo público. Extasiante, incrível ver isso, realmente uma experiência que não será esquecida! Após essa catarse universal a banda saiu sorrateira do palco, apenas para esperar ser chamada de volta, e seguir detonando com “The Last Supper” e “Call For War”, quando novamente eles deram um tempinho para todos respirarem antes de voltar a berrar em hipnose metálica. O último ‘bis’ da noite veio com a linda “Highland Farewell” (“The Clans Will Rise Again”, 2010), e a suprema e obrigatória “Heavy Metal Breakdown”, do disco homônimo de estreia, lançado em 1984. O que se pode dizer de uma faixa como essa, vinda diretamente da era clássica do heavy metal, com linhas simples e eufóricas, letra no melhor estilo ‘metal é foda’ e Ritt mandando riffs e solos como um possesso? Simplesmente fantástico.
Se chegará o dia em que a lenda alemã chamada Grave Digger não terá casa cheia em São Paulo, ele ainda parece muito longe e quase impossível. A devoção extrema de seus fãs, a banda empolgada mesmo após tantas e tantas vezes em solo brasileiro, o repertório fantástico que percorre quatro décadas, tudo, absolutamente tudo fez dessa noite uma data memorável, daquelas que você guarda as fotos e anos mais tarde recorda com lágrimas metálicas nos olhos. Mas eu sou historiador, então talvez eu esteja vendo muito afetivamente o que Armahda e Grave Digger fizeram no Carioca Club. Talvez, mas o brilho nos olhos e o sorriso daqueles que deixavam a casa para voltar para suas casas não me deixam mentir. Nunca esqueceremos esta noite.
Setlist – Grave Digger:
Healed By Metal
Lawbreaker
Witch Hunter
Killing Time
Ballad of a Hangman
Season of the Witch
Lionheart
The Round Table (Forever)
Tattooed Rider
The Dark of the Sun
Hallelujah
Morgane le Fay
Excalibur
Rebellion (The Clans Are Marching)
The Last Supper
Call For War
Highland Farewell
Heavy Metal Breakdown