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HELLWAY TRAIN: A VOLTA DESENFREADA DOS ANOS 80

Explorando temas complexos de doenças psicológicas, o Hellway Train leva o ouvinte a uma jornada sinistra e complexa pela mente do ser humano

Por Daniel Agapito

Formado em meados de 2010 na cidade de Belo Horizonte, terra de grandes nomes como Sepultura e Sarcófago, o Hellway Train tem impressionado tanto fãs quantos críticos com sua sonoridade, que mistura elementos desde o bom e velho hard rock oitentista com a agressividade e temáticas complexas do metal extremo. Além de seu som distinto, o quarteto se diferencia também por sua estética, incorporando elementos da cultura BDSM e do fetichismo, criando um produto final inegavelmente interessante. Em quase uma década e meia de carreira, alguns músicos já passaram pelo line-up do Hellway Train, porém dois dos membros fundadores sempre permaneceram constantes: Vinícius Thram e Marc Hellway. A ROADIE CREW conversou com ambos, abordando desde a trajetória intensa de Borderline até seus shows eletrizantes com nomes como Accept e Exciter.

Hellway Train é uma banda nova, formada em 2010, mas que após cinco anos voltou à ativa em 2020. Qual foi a ideia por trás de tentar resgatar a sonoridade do hard rock oitentista?
Vinicius Thram: O hard rock oitentista sempre esteve presente nas nossas influências, tanto na estética quanto no som. Foi algo natural. Principalmente no início da formação do Hellway, eu e o Marc estávamos bastante imersos nesse tipo de som, então o entrosamento e a correspondência entre nós foram fáceis. Era um desejo comum trazer essa sonoridade, mas não necessariamente algo minimamente calculado. Era uma característica natural, com uma execução mais pesada que foi crescendo ao longo dos anos. Quando começamos a discutir o retorno da banda, definitivamente havia a vontade comum de fazer um som mais direcionado ao heavy metal clássico, mas com uma cara contemporânea e agregando outros elementos e vertentes do metal. O hard rock ainda continua presente, mas em aspectos mais pontuais, de suporte, e menos escancarado.

Foto: Iana Domingos

Sua sonoridade mistura um hard rock mais escuro, denso, com elementos de synthwave e até do metal extremo. Se tivesse que descrever seu som para alguém que nunca ouviu falar de vocês, como apresentaria?
Thram: Clássico e rebelde. Não fazemos um som estático, engessado ou inflexível. Trazemos sim muitas referências do metal britânico, principalmente, o que é muito associado quando se fala em heavy metal. Mas o que contribui, na minha opinião, para dar forma ao nosso trabalho é também dialogar com outros pontos no espectro do metal. Também ressaltamos muito a influência do metal brasileiro, pontualmente também buscando inspirações em outros estilos que fazem parte da nossa formação musical e artística.

O novo álbum aborda os limites da loucura e da sanidade, sendo uma jornada perturbadora e psicológica. Como diria que sua sonoridade – um hard rock anos 80 com pegada sinistra – complementa os temas apresentados em Borderline?
Thram: A possibilidade de nosso som agregar influências de outras vertentes do metal, o que adiciona um pouco dessa cara “sinistra” ao heavy metal como veículo principal, é também um traço da capacidade da mente humana de se manifestar de formas diversas, como apresentado em Borderline. Até o hard rock, que é repetidamente difundido como um estilo festeiro e de glamour, carrega uma manifestação eufórica ao mesmo tempo em que pode mascarar outras faces ocultas e mais densas. Borderline transita sonoramente por diferentes estilos e de mãos dadas com a narrativa psicológica retratada, da euforia à depressão, da mania à psicose, e outras. A parte musical acompanha a parte lírica e estética, com as faixas instrumentais também dialogando com a temática e a própria tracklist. Está tudo conectado.

Você mesmo chegou a dizer que vocês abordam “os universos da literatura (Machado de Assis, Foucault), cinema (Clive Barker’s Hellraiser), quadrinhos (Grant Morrisson’s Arkhan Asylum)”. Os universos do cinema e dos quadrinhos são retratados de maneira mais objetiva, já o literário, nem tanto. Como vocês incorporam elementos da literatura machadiana em sua música?
Marc Hellway: Ironia, acidez, crítica ao status quo, são alguns traços machadianos que eu carrego no processo criativo das letras. A maioria delas é concebida em inglês, mas isso não é generalizado e nem é uma regra. Muita coisa que utilizo nas letras vem de outras formulações e esboços literários meus, e nesse aspecto, Machado é uma das referências. O ‘Borderline’, em especial, carrega consigo o questionamento central que Machado propõe em O Alienista. O Arkhan Asylum é também a Casa de Orates. O debate entre o limite da loucura e da sanidade, perpassando pelas amarras, julgamentos e reducionismos moralistas da sociedade… Não é uma referência tão “gráica” como as do cinema e das HQs; eu colocaria como uma referência ontológica. Mas todos esses universos são veículos que traduzem esses debates.

Também é mencionada a conexão de todos os aspectos mencionados com o mundo do BDSM. Como esses componentes são inseridos?
Marc: No final dos anos 70, a estética BDSM se fundiu de forma definitiva ao universo do rock e do metal, então, para nós, é natural que essa referência seja visível. Mas o mundo do fetichismo tem sua própria profundidade, para além de uma expressão visual, sexual ou artística. É interessante que, embora traços estéticos do universo BDSM sejam cada vez mais aceitáveis socialmente, a substância desse universo segue sufocada pela hipocrisia e pelo moralismo. Eu vejo isso como uma força motriz do comportamento humano: o desgaste dialético entre uma proposta transgressora e uma reação sufocante (e castradora). Essa contradição insuportável da vida… o desejo versus a proibição.

Hell on Earth, por exemplo, trata de alguém que pode ser mandado de volta ao inferno e está aqui para infernizar a Terra, enquanto Gates to Arkham Asylum trata de um asilo. Poderia nos resumir a história completa do álbum?
Marc: O Borderline não é um disco conceitual que conta uma única história. Ele tem um conceito geral, abordando as questões psicológicas, as síndromes, transtornos. O tracklist tem uma ordem definida, onde buscamos referências em diversas síndromes e sintomas. Começa transitando por um espectro mais maníaco, com os excessos, a euforia, hipersexualidade, flertando com esses universos que citamos anteriormente. São músicas “pra cima”, como Hell on Earth, Born to Rock Hard, Bounded to Devour, etc. Hell on Earth é uma música sobre um padre que é sodomizado por um cenobita. É uma relação homossexual onde o padre, apesar das tentativas de exorcismo, está consumido pelo desejo. Uma abordagem parecida à que se vê em Hellraiser“A caixa. Você abriu, nós viemos”. O disco evolui para estados cada vez mais depressivos e destrutivos. Ghost Over the Night abre esse lado com “todos os dias o mundo dá voltas, apesar de toda a sua dor e tristeza”. Cold Town segue abordando o espectro da depressão. O Asilo Arkhan é uma alegoria muito conveniente para encerrar um disco que aborda tantas doenças psiquiátricas. É uma síntese do questionamento e da disputa social entre loucura e sanidade, com todos aqueles “vilões” do Batman “presos” (maníacos, bipolares, psicopatas, esquizofrênicos). Quem buscar a referência nos quadrinhos vai entender que, embora os “vilões” sejam os presos, o próprio Batman (enquanto representação da sanidade) vive uma relação simbiótica mutualista com os ditos “loucos”.

Lendo a letra de Claustrophobiac, faixa escrita durante a pandemia, já se percebe o começo de uma descida à insanidade: “We woke up in quarantine, by this time it felts like a dream, and then the shadows were talking, through the endless days of fear”. Lockdown Reborn (2020) pode ser considerada uma prequência, de certa forma, de Borderline, tratando da vida do mesmo personagem?
Marc: Eu me vejo muito nas letras do Hellway Train. Eu as escrevo e elas são, também, sobre mim, de certa forma. Claustrophobiac, sem a menor sombra de dúvida, é um prenúncio de muitas coisas que viemos a explorar no Borderline. Foi a última música do Lockdown Reborn e não à toa: nela já se vê um laboratório do que já estava sendo feito, em termos de som e de letras.

Out of the Cellar, de seu split Haunted Trip (2022), é claramente uma homenagem ao Ratt. O que tem a dizer sobre isso? Consideraria o Ratt uma grande influência no som da banda?
Marc: Ratt é uma banda muito especial para mim, e posso dizer que é uma das poucas unanimidades entre todos da banda. Sempre achei o Ratt a banda mais imunda daquela cena glam metal de Los Angeles, e foi a banda que rompeu o meu preconceito a esse tipo de som. A temática urbana, o ‘lifestyle’ perigoso, os trocadilhos sacanas nas letras… Temos sim uma influência imensa deles! Inclusive, esse som é realmente uma homenagem deliberada. Antes de ser lançado, nós o enviamos para o Stephen Pearcy, e ele escutou e adorou!

Vocês já dividiram palcos com grandes nomes (nacionais e internacionais) do estilo, Exciter, Accept, Evil Invaders, Flageladör e muitos outros. Como foram estas experiências de tocar ao lado de ídolos? Tem alguma história interessante que poderia compartilhar?
Vinicius: Eu vejo essas oportunidades como consequência do trabalho que temos feito. Obviamente, é realizador poder tocar e rodar por aí com aqueles que um dia estávamos escutando quando éramos adolescentes, e por quem temos grande admiração e respeito por toda a contribuição que já deixaram e nos influenciaram em algum aspecto… Além da diversão e construção dos laços de amizade. Mas há principalmente uma grande troca de experiências, sendo um aspecto importante de formação contínua e para o fortalecimento da cena como um todo. Isso reforça ainda mais que nossos ídolos e artistas que admiramos são gente como a gente, que também têm suas dificuldades e limitações nos seus locais de origem e na estrada, o que entalha de forma definitiva a importância da colaboração e apoio mútuo.

Onde vê o Hellway Train nos próximos dez anos? Em um futuro próximo, o que visa atingir?
Vinicius: Vemos a Hellway em constante transformação, mas podemos afirmar que será uma banda mais madura e com uma contribuição significativa para o metal. Não sabemos de fato o que o futuro nos reserva, mas não vivemos uma ilusão de glamour. Fazemos um trabalho sério e verdadeiro, buscando uma consolidação definitiva e relevante, que impacte a vida das pessoas e principalmente seja o empurrão e inspiração para as demais safras que virão. Por agora, continuamos com a divulgação do Borderline, lançando o álbum em mais formatos, com versões nacionais e estrangeiras, com uma tour de promoção pelas diversas regiões do país, expandindo-a em 2025. Paralelamente, já estamos trabalhando em material inédito para um futuro lançamento. Muito obrigado pelo espaço para este papo e por permitir que apresentemos um pouco mais do nosso trabalho. Stay f*ckin’ Heavy!

 

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