Quem acompanhou alguns shows da mais recente edição do Rock In Rio pode confirmar algo que muitos fãs já estão comentando há tempos: os antigos ídolos já não conseguem mais performar como antigamente. No caso, especialmente os antigos ídolos vocalistas. Ok, é uma afirmação até certo ponto óbvia e, de fato, não vem de hoje. Mas, o que há alguns anos era apenas questão de alcançar ou não determinada nota mais alta ou manter o drive original de algumas canções, hoje se tornou uma constatação mais pesarosa. Alguns mestres simplesmente não conseguem mais soar como nos velhos tempos, em nenhuma música. Especificamente (com brechas para argumentações contrárias, confesso) isso pode ser visto em shows de Def Leppard, Guns N’Roses, Bon Jovi e até mesmo Aerosmith. Roger Daltrey, do The Who, é a exceção que confirma a regra. Porém, o que ainda torna os shows desse grupos relevantes, além de possuírem sequencias de clássicos que animariam até defuntos, é o carisma desses vocalistas. Podemos até ser exigentes e dizer que Steven Tyler já não é mais o mesmo, ainda que continue cantando bem. Porém, sua performance parece inabalada. Mais do que isso: o magnetismo de sua apresentação é que continua intacto. Da lista citada, uns mais outros menos, temos no carisma o grande trunfo para a perda irreparável da voz que nunca mais voltará.
Nesse time, Ian Anderson é o que mais perdeu voz. Todas as canções da apresentação dessa terça-feira de Brasil x Chile foram feitas com tremendo esforço. Algumas, infelizmente, de maneira triste. E, ainda assim, o eterno vocalista, flautista e compositor do Jethro Tull consegue emocionar uma plateia também longe da empolgação dos grandes dias, mas notadamente devota. Porque, se foi o que mais perdeu voz, é talvez o que possui ainda mais doses de carisma para esbanjar. No mínimo, o mesmo que todos os gigantes da ativa. A pose de lorde inglês (escocês, no caso) e toda sua pompa e elegância, que substituem o estilo bêbado insano dos anos 1970, faz com que os presentes não consigam tirar os olhos dele nem por um segundo. Tudo bem, o fato de Florian Opahle (guitarra), Scott Hammond (bateria), John O’Hara (piano, acordeon e voz) e David Goodier (baixo e voz), banda que o acompanha nessa empreitada, possuírem presença de palco bem tímida ajuda bastante o público manter o foco no astro principal. Ainda assim, mesmo que estivessem lá os antigos companheiros (principalmente o guitarrista Martin Barre), os olhos do presentes continuariam sendo guiados por sua performance. Anderson é único e compensa uma voz falha por grandes doses de musicalidade.
Foi nesse clima agridoce que, um por um, os clássicos foram sendo executados, abrindo com uma versão de “Living In The Past” com arranjos mais contemporâneos, emendada na sequência com a vigorosa “Nothing Is Easy”. Após uma breve saudação, Anderson brinca que as duas músicas de abertura são de 1969 e agora apresentariam uma mais recente, de 1978, anunciando a excelente “Heavy Horses”. É aí que vem a primeira decepção da noite. No telão, a participação em playback da vocalista e violinista Unnur Birna Bjornsdottir. Unnur fez parte da rock opera apresentada por Anderson no ano passado, mas assim, pré-gravada e fora de contexto, foi simplesmente desnecessário e tirou um pouco da emoção da música.
Logo em seguida, porém, veio uma versão na medida de “Thick As A Brick”, com aproximadamente 10 minutos. Mesmo com o palco simples, cada música teve seu próprio vídeo no telão, o que ajudava a manter o dinamismo da apresentação, embora “Thick As A Brick” tenha sido interrompida na metade da música sem explicações. Após aplausos efusivos, Anderson brincou novamente (uma constante durante o show) de que, caso não parassem, havia o risco da banda tocar a música na íntegra.
Nesse clima de total descontração veio “Banker Bets, Banker Wins”, do ábum “Thick As A Brick 2”, lançado como um disco solo de Anderson em 2012. Outra clássica – literalmente – veio em seguida, com uma versão poderosa de “Boureé”, gravada pelo Tull no disco Stand Up. Nessa altura já tinha dado para ver que a escolha do teatro Bradesco havia sido mais do que acertada. Ainda que essencialmente um show de rock, com diversos momentos de peso (cortesia do guitarrista Opahle), o clima de elegância e esmero com que a banda executava as faixas foi bem apreciado com a plateia sentada. Sim, é estranho mesmo, mas a verdade é que funcionou e não tirou a energia do público, que comemorava cada clássico. Anderson, por sua vez, mantinha as danças e movimentos que sempre caracterizaram suas apresentações, por mais que sua voz já não estivesse mais lá. Foi assim com a excepcional “Farm On The Freeway”, do subestimado álbum “Crest Of A Knave”. Uma bela surpresa, assim como “Too Old To Rock N Roll, Too Young To Die”, com direito ao clipe original no telão, emocionando a todos os presentes.
Fechando a primeira parte do show, a mais do que especial “Songs From The Wood”, com ajuda de Goodier nos vocais – mostrando mais uma vez que a escolha do playback em “Heavy Horses” não foi a melhor. Intervalo de 15 minutos, com playback de Anderson sugerindo que visitássemos o stand de merchandising e comprássemos uma camiseta para um amigo. No retorno, nada de perder tempo: “Sweet Dreams” veio como um furacão nos PAs, com seu clipe terror/comédia no telão. Mais uma vez o guitarrista Florian Opahle garantiu um peso extra. Foi então que veio a parte menos impactante do show, com uma versão interessante, mas sem muita reação do público, de “Past Time In Good Company”, composição do Rei Henrique VIII da Inglaterra, o mesmo que decapitava suas esposas e serviu de inspiração para Rick Wakeman gravar seu álbum solo “The Six Wives Of Henry VIII”. Em seguida, veio “Fruits Of Frankenfield”, da rock opera de Anderson do ano passado.
A empolgação voltou com a antiga “Dharma For One”, única do álbum de estreia do Jethro Tull, “This Was”, presente no set. Anderson aproveitou e fez uma homenagem ao baterista original do grupo, Clive Bunker – mesmo com ele ainda vivo, brincou o vocalista. O solo apresentado pelo baterista Scott Hammond, porém, foi bem mais curto que aqueles registrados por Bunker nos tempos de banda, algo que também foi motivo de piadas por parte de Anderson.
Mantendo o clima lá em cima, Anderson & Cia. mandaram a excelente “A New Day Yesterday”, arrancando efusivos aplausos da plateia, que parecia hipnotizada com o vocalista e banda. Na sequencia, uma versão de “Toccata and Fugue in D Minor”, do compositor J.S. Bach – mais uma – e que serviu para o solo de Opahle, além de uma descansadinha necessária para o já septuagenário Anderson. “My God” foi executada com perfeição logo em seguida, mostrando que o fôlego de Anderson estava intacto para mandar ver em sua flauta. Fechando o set, a mais do que clássica “Aqualung” que, embora executada com perfeição, trouxe também a participação pré-gravada do vocalista Ryan O’Donnell dividindo as vozes principais. A exemplo de Unnur, O’Donnell também fez parte da rock opera de 2016, mas aqui se mostrou, novamente, fora de contexto. A palavra desnecessário nunca foi tão precisa. Além do mais, o solo de Opahle, ainda que interessante, fugiu muito do original. Uma pena. O Bis veio com a maravilhosa “Locomotive Breath”, encerrando uma noite para se aplaudir de pé, como foi o caso. Touché, Sir Anderson.