Se há quarenta anos a expectativa dos fãs era pela primeira passagem do Kiss no Brasil, ocorrida em junho de 1983, o sentimento agora foi o de alívio, pois a turnê pela América do Sul viveu cercada de dúvidas quanto à sua realização. No entanto, houve a melhora nos índices da pandemia. É, parece que os “deuses do rock” ouviram as nossas preces e recolocaram o mundo do entretenimento em sintonia. Assim, o megaevento, que havia sido adiado diversas vezes e estava agendado inicialmente para maio de 2020, foi enfim realizado em 30 de abril, quando, após shows em Porto Alegre/RS (26) e Curitiba/PR (28), o Allianz Parque, em São Paulo (SP), recebeu a “End of the Road World Tour” – o grupo americano ainda se apresenta em Ribeirão Preto (SP) neste domingo (1º de maio).
Antes do início, presenciamos e sentimos na pele a emoção do reencontro com os que nutrem a mesma paixão pela música pesada. Coisas simples e corriqueiras que não fazíamos há tempos, como cumprimentos com apertos de mão, abraços e beijos, enfim voltaram à realidade em um show de rock. E nada melhor que uma festa com o Kiss. Assim, após o som da clássica Rock and Roll (Led Zeppelin), o telão mostrou o agente Doc McGhee saindo do camarim e caminhando à frente de Paul Stanley (vocal e guitarra), Gene Simmons (vocal e baixo), Tommy Thayer (guitarra) e Eric Singer (bateria) rumo ao palco.
Com o enorme backdrop frontal com o logo prateado ainda presente, vem a apresentação mais famosa do rock: ‘Alright, São Paulo, You Wanted The Best, You Got The Best! The hottest band in the world… KISS!’. O backrop vai subindo e o espetáculo começa com os músicos em suas respectivas posições, suspensos no alto com palco com praticáveis na forma de “elevador”, entrando em cena ovacionados e com fortes explosões e efeitos pirotécnicos ao som de Detroit Rock City. Naquele instante, São Paulo se tornou “São Paulo Rock City”.
Com uma cenografia como sempre suntuosa e um palco com cores vibrantes, lotado de pirotecnia, muito fogo e um telão de LED de alta definição ao fundo e outros circulares na parte de cima do palco, a sequência, sem surpresas, foi a mesma dos shows da perna sul-americana da turnê, com Shout It Out Loud. Aí, novamente aquele filme vai passando em nossa mente… Estamos vendo o último show do Kiss no Brasil? A emoção é de arrepiar não só para quem foi a todos, desde 1983, pois, como o público da banda se renova, não foi difícil ver famílias inteiras curtindo o show – na entrada já se notava isso, com famílias inteiras levando seus filhos, sobrinhos e netos (vários maquiados) a um dos maiores espetáculos de entretenimento do rock’n’roll.
Paul então se comunicou com o público e disse estar contente por retornar ao Brasil: “Esta é a sétima vez que a gente vem ver vocês. São Paulo, vocês detonam!”. Depois, falou que a banda tinha muita coisa boa para tocar e pediu duas vezes para que os fãs gritassem e então fez mais um pedido: “Wild animals, make some noise!” (‘Animais selvagens, façam barulho’). De fato, quando Paul fala diretamente com os fãs nota-se que sua voz não é a mesma, fato que ocorre há tempos e que já tínhamos sentido no “Monsters of Rock” em 2015. Quem se importou com isso? Acredito que apenas quem não compareceu ao Allianz Parque. Então, Stanley disse que mandariam uma clássica do primeiro álbum e veio Deuce, que colocou Gene no centro dos holofotes. Thayer toma o centro do palco na hora do lendário solo de Ace Frehley, e a banda segue, mais ao final, com a conhecida coreografia da linha de frente.
Gene seguiu sob comando com uma música que remete diretamente à primeira turnê no Brasil, War Machine, do disco responsável por ter colocado muitos no rock/metal (e que, certamente, estavam presentes): Creatures of the Night (1982). Mantendo a grande interação, o público vibrou quando Paul iniciou Heaven’s On Fire, que remete diretamente ao Monsters of Rock de São Paulo, ocorrido em 1994, quando a banda encerrou o set com este clássico de Animalize (1984). A resposta do público, estimado em 65 mil pessoas segundo postagem de Paul Stanley nas redes sociais (outras fontes citaram 45 mil), foi impressionante e a cena do estádio inteiro batendo palmas arrepiou.
Então, como se o set tivesse sido baseado nessa premissa de fazer brasileiros recordarem os velhos tempos, nada mais natural que I Love It Loud, música que explodiu nas rádios brasileiras e que foi, pela única vez na carreira do grupo, apresentada duas vezes no mesmo show – sim, este fato ocorreu por aqui, no estádio do Morumbi, em 25 de junho de 1983. Muitos recordaram a bateria de canhão do saudoso Eric Carr, mas o outro Eric, Singer, esteve muito bem durante todo o set, registre-se. O telão frontal e os laterais mostraram o conhecido “Hey hey hey hey yeah” para todos cantarem junto. Além disso, foi nesta que Simmons fez o tradicional “ritual” e cuspiu fogo, deixando os fãs ainda mais animados.
“Que momento impressionante em São Paulo, que momento impressionante no Brasil”, disse Paul antes de pedir para todos cantarem o refrão da próxima. Assim, a banda mudou o panorama e rumou para Sonic Boom (2009), mandando Say Yeah. Esta, segundo Paul, fala sobre “como não devemos perder tempo e pensar demais nas coisas”. Voltando aos velhos tempos veio outra que Paul apresentou como um velho clássico do Kiss, Cold Gin, em que novamente Thayer se tornou o centro das atenções. O ex-Black ‘N Blue, que há 20 anos estreava na banda, mandou ver com seu solo na linha Ace, com direito a todos os efeitos e escalas que os fãs já decoraram há décadas. Fogo, fumaça na guitarra, tiros… Tudo isto antecedeu a clássica Lick It Up, outra que se tornou hino no Brasil e obteve grande resposta do público, que cantou-a de ponta a ponta. No meio dela, ainda mandaram um trecho de Won’t Get Fooled Again, do The Who. Os fãs não só aplaudiram como, de forma totalmente espontânea, passaram gritar “Kiss! Kiss! Kiss”. Paul agradeceu e então tivemos uma cena inusitada, quando um grilo pousou e ficou em seu microfone. Todo mundo riu e alguns até ficaram gritando “grilo, grilo, grilo”. O vocalista e guitarrista falou diretamente com o inseto: “Oi, qual é o seu nome?”. Depois, apresentou mais uma que a banda também se acostumou a tocar por aqui: Calling Dr. Love.
“São Paulo, nós queremos cantar para vocês… Esta se chama Tears Are Falling“. Aí foi a vez da festa dos fãs da fase do Kiss sem máscara nos anos 1980, incluindo este que vos escreve. Por sinal, esta foi a primeira vez que apresentaram este hit de Asylum (1985) de forma plugada, já que a única vez que tinham tocado-a por aqui foi de forma acústica num show exclusivo (VIP Meet & Greet) na Arena Anhembi, em 2012.
Se Tears Are Falling foi uma das inéditas no Brasil, a seguinte fez lembrar a turnê de reunião e o show no Autódromo de Interlagos em abril de 1999 – por sinal, até a garoa remeteu àquele show. “São Paulo, vamos transformar isto aqui em um circo psicótico!”, ordenou Stanley. Claro, era a vez de Psycho Circus, que abria as apresentações na “Psycho Circus World Tour” e também se tornou hino por aqui. O efeito da iluminação e as imagens dos painéis circulares superiores de LED deixaram o palco ainda mais colossal. Então veio o solo de Eric Singer, que se iniciou da mesma forma que o de Peter Criss em Alive! (1975). Os telões mostrando o close do baterista em suas paradas e a bateria subindo no praticável móvel deixaram os fãs alvoroçados. Paul foi ao microfone falando que tinha uma pergunta: “Vocês estão se sentindo bem?” – outro fato que se relaciona com Alive!. Então veio 100,000 Years e o solo de Gene, tendo o palco totalmente vermelho e, claro, com o tradicional momento em que vomita sangue. Momento propício e notório para God of Thunder, na qual o baixista e vocalista cantou do alto do palco após o praticável móvel deixá-lo no centro das atenções – imagine ver a cena de um estádio inteiro lá de cima?
Da mesma forma ocorreu quando todos os olhos e celulares se voltaram à Stanley, que teve seu tradicional “momento Tarzan” e passou por todo o público. Antes, ele falou que estava tudo muito bonito, mas que queria estar junto ao público. Então, mandou Love Gun e I Was Made for Lovin’ You tocando e cantando no pequeno palco localizado perto da home dos técnicos de som e dos iluminadores. A voz pode não ser a mesma, mas vitalidade e a performance de palco para um senhor de 70 anos de idade é comovente.
Black Diamond, com vocais divididos, também emocionou. Esta foi a última do set antes do encore. Os celulares acesos por todo o estádio deram um efeito extra antes da execução da balada Beth, que contou com Eric Singer no centro do palco tocando em um piano de cauda branco e, obviamente, cantando de uma forma similar a Peter Criss.
Caminhando para o final, a festa se tornou ainda mais divertida quando balões foram jogados ao público em Do You Love Me. O complemento veio com os papéis jogados na hora de Rock and Roll All Nite, que sempre dão um efeito interessante com a banda e os fãs celebrando mais uma conquista. As luzes do estádio então se acenderam ao som de God Gave Rock ‘n’ Roll to You II. Como falei, os “deuses do rock” estavam certos. Quem curtiu a última festa como se fosse ontem vai ter mais histórias para contar, inclusive os marinheiros de primeira viagem. Só nos resta levantar as mãos para o alto, bater palmas, vibrar e agradecer por ter visto mais uma aula de como fazer todo mundo se divertir e interagir durante duas horas. O rock está vivo. Sempre estará. Com o Kiss ativo ou não.
Repertório:
Detroit Rock City
Shout It Out Loud
Deuce
War Machine
Heaven’s on Fire
I Love It Loud
Say Yeah
Cold Gin
Solo Tommy Thayer
Lick It Up
Calling Dr. Love
Tears Are Falling
Psycho Circus
Solo Eric Singer
100,000 Years
Solo Gene Simmons
God of Thunder
Love Gun
I Was Made for Lovin’ You
Black Diamond
Encore:
Beth
Do You Love Me
Rock and Roll All Nite