Se eu perguntasse, você seria capaz de dizer qual foi o disco que te transformou em um fã de heavy metal? Seria capaz de me dizer qual foi a obra que exerceu impacto tão profundo na sua forma de se relacionar com a música, que seria determinante para o seu gosto musical no passar dos anos? Tenho certeza que sim. Bem, eu também tenho algumas memórias, um monte delas, para ser franco. Mas, quando soube dessa apresentação do Brujeria em São Paulo, uma me veio mais nítida do que todas as demais: era 1993, e eu pela primeira vez botava os olhos na capa de Matando Güeros, disco de estreia do Brujeria. Embora tivesse mal passado dos dez anos de idade, eu já era colecionador de metal extremo, louvava o Obituary, o Unleashed e o Vulcano, enfim, aquilo não era nenhuma novidade para mim. Mas, dar de cara com aquela capa nas gôndolas da loja de CD’s, aquilo era muito pior do que tudo o que eu tinha visto até então, pois soava real. Claro que eu raspei até a última moeda do meu bolso para conseguir aquele disquinho. E sim, meu gosto musical ‘piorou’ muito depois daquilo, e não foram poucas as vezes que eu deixei de comprar lanche na escola para economizar a grana. Discos eram mais legais que comida, ainda mais aqueles que só eu parecia gostar. Agora, décadas depois, eu teria a chance de ouvir algumas daquelas canções ao vivo, e mais uma porrada de outras de igual brilho infernal. Sim, isso é algo especial.
Antes porém de ver o Brujeria, havia outra banda lendária, e outra daquelas que nos enche de memórias. Se em 1993 eu comecei a deixar de lanchar na escola para comprar discos, um dos que comprei dois anos mais tarde foi, justamente, o Black Force Domain, de uma então banda estreante do Brasil, o KRISIUN. É engraçado como a vida dá voltas, mas neste 22 de maio lá estava eu, diante do palco onde Krisiun e Brujeria detonariam a Capital Paulista. Com um misto de orgulho, saudosismo e ansiedade, ouvi a introdução que precedia a entrada do trio gaúcho mais famoso em todo o mundo, os irmãos Alex Camargo (baixo e voz), Max Kolesne (bateria) e Moyses Kolesne (guitarra). De agora em diante, não haveria mais espaço para saudosismo e memórias passadas. Agora era hora de porrada, e todos ali estavam mais do que preparados.
Começar o set com a insidiosa Ominous (Bloodshed, 2004) é sempre interessante, já que a pegada instrumental do início soa como uma convocação às hostes infernais, sempre dispostas diante do palco quando os gaúchos tocam. Logo de cara, a eterna constatação: eles estão tocando cada vez melhor, e impressiona a precisão com que Moyses esmerilha a guitarra. Os velhos clássicos não demoraram para a aparecer. Já na segunda música, Ravager colocava o insuperável Conquerors Of Armageddon (2000), e o Espaço 555 já começava a ficar pequeno para a multidão ensandecida que tomava a casa.
Southern Storm, disco que comemora seus dez anos justamente em 2018, não poderia ficar de fora da festa, certo? Assim, sua faixa mais conhecida, Combustion Inferno chegou cuspindo fogo, enquando Alex agradecia o público e oferecia algumas recordações do longo caminho trilhado pelo trio. O maior nome do death metal brasileiro da atualidade continuou sua apresentação oferecendo o que há de melhor na sua nova fase musical, com a sequência Blood of Lions (The Great Execution, 2011) e Ways of Barbarism (Forged In Fury, 2015), faixas que ganham mais força, peso e intensidade ao vivo. Da empolgação desse par de canções para o caos de Vengeance’s Revelation e Apocalyptic Victory (ambas de Apocalyptic Revelation, 1998) foram segundos, que precederam uma onda massiva de mosh tão intensa que ameaça tomar o palco.
Iniciando a última sequência do show, Alex mais uma vez saudou os presentes, elogiando a força e a união de uma cena que, a despeito de tantas opiniões contrárias, havia lotado o Espaço 555 em uma terça-feira que nem era e nem precedia feriado. Realmente, um feito e tanto do qual Krisiun e Brujeria sempre se orgulharão. Ace of Spades, clássico absoluto do hoje saudoso Motörhead foi a forma que a banda encontrou de homenagear os presentes e as suas próprias raízes, e emocionou pela devoção do público e da banda. Para fechar de vez os trabalhos, Hatred Inherit (Conquerors Of Armageddon, 2000), um solo de bateria que ameaçou soltar a obturação dentária dos presentes, e Kings of Killing, do lendário segundo álbum dos caras, Apocalyptic Revelation. Agora era esperar ansioso pelo Brujeria.
Pois bem, a espera foi grande (grande mesmo, pois tivemos de esperar toda a bateria do Brujeria ser montada, a passagem de som, etc), mas logo de cara, o BRUJERIA mostrou suas garras. Após serem anunciados por uma garotinha simpática e um pouco tímida que trajava o tradicional lenço no rosto, a banda chegou vomitando Cuiden a los Niños, a mais conhecida faixa de Brujerizmo, terceiro ‘full-length’ do grupo, lançado em 2000. Com uma resposta ensurdecedora, a canção foi rapidamente sucedida por La Lei de Plomo (Raza Odiada, 1995), El Desmadre e Colas de Rata, cada uma levando o público a uma forma diferente de colapso, e marcando definitivamente o repertório clássico do grupo na nossa mente.
Se até aí as coisas tinham sido intensas, a chegada das clássicas La Migra (Cruza la Frontera II) e Hechando Chingasos (Greñudos Locos II), ambas de Raza Odiada, foi algo completamente fora de controle. O ‘mosh’, que começou contido, foi evoluindo para uma área cada vez maior, com cada vez mais gente empurrando, socando e se divertindo, enquanto vez ou outra víamos alguém ‘surfando’ por cima da multidão. Uma insanidade sem limites, e uma mostra de força do público do metal extremo brasileiro, que ganha cada vez mais fôlego no passar dos anos. Viva Presidente Trump!, a mais bela ‘homenagem’ que o presidente dos Estados Unidos poderia receber, veio em seguida e, embora bem recebida, esfriou um pouco os ânimos da galera, que logo mostraria estar longe da exaustão.
Só então teríamos uma mostra ao vivo do mais recente álbum de estúdio do grupo, Pocho Aztlan (2016). O álbum que marcou o primeiro full-length do Brujeria em dezesseis anos, chegou forte com Ángel de la Frontera, com sua linda ‘mensagem de fé’. Satongo manteve Pocho Aztlan na jogada, e em seguida a banda passou o bastão para Matando Güeros (1993), com Desperado. Sim, agora eu estava plenamente feliz, e já nem me preocupava mais com o tempo que levei para ouvir essa música ao vivo. Enquanto Raza Odiada (Pito Wilson), Brujerizmo e Anti-Castro iam recebendo aquela reação que costumam causar nas pessoas, víamos com certa tristeza que o show ia caminhando para o seu final. Infelizmente o tempo passa, e até ‘greñudos locos’ precisam descansar de vez em quando, certo?
Com a passagem por São Paulo a poucos minutos do fim, ainda tínhamos muita lenha para queimar, e talvez com a certeza de que o fim do show estava próximo as forças tivessem sido reabastecidas. Mas, o certo é que Consejos Narcos – aquela tradicional faixa de Raza Odiada que costuma vir acompanhada das plaquinhas ‘Sí/No’ ao vivo – com seu ritmo mais cadenciado, esmurrou mais forte que Julio César Chávez, enquanto a veloz No Aceptan Imitaciones nos atropelou como um trem desgovernado. Por fim, Matando Güeros deu o tom final da apresentação, e relutantemente, íamos abandonando a casa de shows enquanto Marijuana tomava os alto-falantes. Para aqueles que estiveram no Espaço 555, não resta dúvida: o Brujeria fez o show mais brutal de 2018.