LUCIFER – LUCIFER III [8,0/10,0]

A intensa proliferação musical dos anos 70 definiu o que hoje entendemos como rock and roll e estabeleceu o alicerce para o heavy metal em suas diversas vertentes.

Os artistas daquele período causaram tanto impacto nas décadas subseqüentes que hoje vivenciamos um movimento dentro do ramo musical chamado “retro rock”, no qual os grupos atuais não se contentam mais em simplesmente olhar para trás e reverenciar o passado, na verdade, eles querem incorporar ao novo som produzido os mesmos detalhes e técnicas experimentadas há 50 anos atrás.

É aquele senso comum que sempre ouvimos: “a história é um ciclo”, e, portanto, uma hora ou outra ela vai se repetir. Rival Sons, Blues Pills e Children of the Sün são exemplos dessa nova geração de bandas que buscam uma releitura do passado.

Lucifer chega ao terceiro álbum de sua carreira em 2020

Por vezes esse estilo “vintage” também explora uma característica comum à época, no caso, a associação do rock ao ocultismo, imagem equivocadamente atribuída pela mídia ao Black Sabbath em razão das temáticas nos primeiros álbuns. Na verdade, Blue Öyster Cult e Pentagram foram as grandes referências neste assunto, mas também havia outras bandas que exploravam o tema de maneira mais sutil, caso do Led Zepellin, utilizando símbolos na arte gráfica de seus álbuns, bem como Jimmy Page, obcecado pelo “homem mais perverso do mundo”: Aleister Crowley.

Da mescla entre o antigo e o oculto surgiram excelentes grupos que revitalizaram a cena musical da última década, como Graveyard, Ghost, Kadavar, Witchcraft e, aquele que mais nos interessa no momento, Lucifer.

Capitaneada pela vocalista alemã Johanna Sardonis (por sinal, a única remanescente da formação inicial), a banda fez sua estreia com “Lucifer I” (2015), um belo registro de stoner rock influenciado por Black Sabbath, apresentando músicas pesadas e obscuras, sonoridade suja e, claro, fazendo referência às ciências ocultas e à simbologia egípcia (olho de Hórus e a cruz egípcia, para ser mais específico).  Estes, por sinal, acompanham a arte gráfica dos três trabalhos da banda.

“Lucifer II” (2018) significou uma mudança de ares, não apenas pela troca de quase todos os seus integrantes, mas pelo fato de que as músicas tornaram-se consideravelmente mais acessíveis ao público (“California Son” e “Dreamer”, por exemplo). Quanto aos novos membros, não há como deixar de destacar a entrada do multilatentoso e lendário Nicke Andersson (Entombed; The Hellacopters; Imperial State Electric) na bateria, que mesmo nas batidas mais simples consegue tirar um som incrível do instrumento.

“Lucifer III” (2020), que no Brasil ganhou uma caprichada versão da Hellion Records, é o lançamento mais recente da banda e representa uma continuidade do trabalho anterior, ou seja, um hard e stoner rock com momentos tímidos de doom e que respira o misticismo e o ocultismo dos anos 70, e evolui ao apresentar músicas ligeiramente menos pesadas e com melodias mais fáceis de serem assimiladas pelo ouvinte. Basta verificar os grudentos (porém, bons!) refrões em “Ghosts” e “Midnight Phantom” e “Stay Astray”.

Particularmente, vi com bons olhos o caminho escolhido pelo grupo, pois é preciso coragem para uma banda deixar seu som menos agressivo e mais focado na melodia. E antes que o fã mais conservador se assuste, já asseguro que o resultado final não foi um “Prequelle” do Ghost, pois este sim abusou do ritmo mais dançante e recheado de sintetizadores. Digamos que o resultado final foi algo mais parecido com o último álbum do Kadavar, “For the Dead Travel Fast” (2019).

Certo, o grupo mostrou personalidade nas pequenas mudanças, mas também não dá para ignorar que andou bem rente à linha tênue entre o sério e o cômico. Explico melhor.

A temática é sombria (assim como nos álbuns anteriores), e grande parte das músicas têm uma história de terror como pano de fundo, mas os exageros (ainda que propositais) retiram um pouco a seriedade do trabalho e permitem enquadrar várias faixas na trilha sonora de filmes trash de terror dos anos 80. Veja a tradução literal de alguns títulos das canções: “Fantasmas”, “Demônio Vestido em Couro”, “Fantasma da Meia Noite”, “Febre de Caixão”, “Olhos de Cemitério”, sem contar que na introdução da faixa-título o ouvinte é agraciado com o balido de um bode, animal que incorpora a imagem de Lúcifer. A sensação de clichê (agora em um viés positivo) é potencializada pela bela capa que retrata a banda encostada em um carro funerário parado dentro de um cemitério. Espreitando-os de perto, está a morte empunhando uma foice.

Apesar dos exageros que pontuei, sugiro que você se proponha a entrar neste clima fantasmagórico, pois vai perceber que letras e arte gráfica se encaixam muito bem e enriquecem a experiência de ouvir o álbum.

A produção de “Lucifer III” ficou a cargo do agora casal Nicke Platow Andersson e Johanna Platow Andersson, e o resultado deu profundidade ao baixo de Harald Göthblad, audível em todas as faixas sem precisar de muito esforço, além de deixar bem límpido o som das guitarras de Martin Nordin e Linus Björklund.

Johanna, por sua vez, é uma vocalista que sabe explorar o seu timbre grave e tem bons momentos no álbum, como em “Coffin Fever” e “Flanked by Snakes”, mas ainda assim não é uma voz marcante se comparada a Elin Larsson (Blues Pills) ou Jennie-Ann Smith (Avatarium). Outra questão é que sua origem alemã dá um forte sotaque na pronúncia das palavras em inglês, o que pode incomodar o ouvinte ou ajudá-lo a mergulhar ainda mais no clima “noir” ou “retrô” da banda.

O álbum começa muito bem com “Ghosts”, faixa com evidente cara de single. Ela não causa o impacto de “California Son” em “Lucifer II”, mas isso não tira seu mérito, pois tem uma boa batida e conta com um refrão meloso que provavelmente conseguirá atrair um novo público. A primeira reação que tive foi a de já ter ouvido esta música antes, e isso se confirmou quando percebi que o ritmo, principalmente até a chegada do refrão, lembra muito aquele desenvolvido pelo Jethro Tull em “Locomotive Breath”, décima faixa do clássico “Aqualung”, de 1971.

O clima de filme de terror toma mais forma quando ouvimos o lobo uivando no início de “Midnight Phantom”. Aqui, a banda reforça seu lado stoner e com guitarras mais proeminentes se comparado com “Ghosts”. Além disso, a faixa tem seu mérito pelas sutis e interessantes mudanças de tempo criadas por Nicke entre o verso, ponte e refrão.

“Leather Demon” diminui a intensidade do álbum e deixa o ambiente ainda mais sombrio quando a vocalista, quase sussurrando, nos convida a aguardar a chegada do demônio roqueiro vestido em roupas de couro (“A demon clad in leather/ A rocker, ritualized”). Como anteriormente dito, as faixas tem seus momentos previsíveis em relação às letras, e neste caso parece que a banda foi um pouco longe demais.

Continuando a trilha sonora dos cemitérios, “Coffin Fever” tem um ritmo mais arrastado e retrata a história de uma pessoa que foi enterrada e, por alguma razão, abre os olhos e retorna do além. Não preciso dizer que esta parte da música é bem macabra.  Meu destaque vai para a interpretação de Johanna no final da música, pois é um dos poucos momentos do álbum em que ela solta a voz, e a impressão deixada foi muito boa.

A faixa-título chega a ser um pouco cômica com o já mencionado balido de bode em seu início, sem contar a previsibilidade da letra, que inclui um pedido para dar as mãos a Lúcifer. O interessante é que a guitarra e a condução da bateria lembram bastante o som desenvolvido pelos suecos do Graveyard, especialmente “Ain’t Fit to Live Here”, do álbum “Hisingen Blues” (2011).

Saindo desse ambiente de pesadelos, cemitérios e assombrações, o álbum retorna à normalidade com a cadenciada “Pacific Blues”, na qual a banda nos leva a uma viagem por uma estrada vazia, poeirenta e preenchida apenas com o som de raios e tempestades. Com esta faixa, Lucifer entra no rol de artistas que exploram a temática viajante/errante, que vai, por exemplo, de Bruce Springsteen (“Stolen Car”) à tragédia pessoal de Neil Peart (Rush) em “Ghost Rider”.

  Mantendo o bom nível e a qualidade técnica, “Flanked by Snakes” é uma das melhores, senão a melhor, música do álbum. Seu início é complexo, mas logo a melodia se desenvolve com uma bela harmonia entre a voz e os demais instrumentos, culminando, ao final, em um refrão que tem a ajuda (suave, quase imperceptível) dos teclados. Bem, como se trata de um álbum do Lucifer, é esperada alguma referência à cultura egípcia. Neste caso, isso se deu na letra, que retrata Cleópatra cercada justamente pelos animais que lhe tiraram a vida: as cobras.

Infelizmente, as duas músicas que encerram o trabalho, “Stay Astray” e “Cemetery Eyes”, esta última uma quase-balada, não conseguiram manter o mesmo nível de energia que a banda apresentou nas sete faixas anteriores. Talvez tenha faltado um pouco de inspiração, principalmente se compararmos com o fechamento do álbum anterior, pois “Aton” e “Faux Pharaoh” são verdadeiras pedradas no ouvido e deixam o ouvinte querendo mais. E não é essa a sensação que temos com as escolhas para terminar “Lucifer III”.

Exageros e clichês à parte, a proposta da banda em desenvolver um stoner/occult rock ligeiramente mais simples e com ênfase na melodia fizeram as músicas fluírem muito bem e os integrantes mostram entrosamento apesar do pouco tempo que tocam juntos, lembrando que os 6 anos de existência do grupo não impediram a alta rotatividade de seus membros.

O “velho Lucifer” está aí: temas de horror, referências egípcias e à música dos anos 70, vocais sombrios de Johanna Platow Andersson e título do álbum em continuação numérica aos anteriores (III…até que número chegaremos?). Enfim, stoner/occult rock de qualidade.

A nova face que nos foi apresentada é tímida, porém, promissora, e isso nos leva à seguinte pergunta: o grupo terá coragem para continuar uma gradativa evolução do som? A resposta certamente virá no próximo álbum.

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