Os últimos dois finais de semanas foram inesquecíveis para os fãs paulistanos do Sepultura. No dia 27 de outubro (sábado), a formação atual da lendária banda brasileira se apresentou na Áudio, já na reta final da turnê mundial do bem sucedido Machine Messiah (2017). Sete dias depois, foi a vez de os icônicos Max e Iggor Cavalera retornarem ao Brasil para celebrar dois clássicos álbuns que forjaram com sua ex-banda: os mundialmente influentes e respeitados Beneath the Remains (1989) e Arise (1991). A ocasião histórica atraiu uma legião de fãs dos irmãos, que lotaram à Tropical Butantã. E nem a noite chuvosa e de fortíssima ventania – o que acarretou em queda de energia nas redondezas, que estavam perigosas para se andar -, e muito menos a mudança para o horário de verão (que aconteceria à meia-noite), afastaram o público. Apesar da baixa temperatura na capital, dentro da casa o calor beirava o insuportável. A falta de energia, que se estendeu durante toda a noite, resultou no não funcionamento dos aparelhos de ar condicionado, porém não interferiu na realização do evento, que contou ainda com a abertura de Endrah, Deaf Kids e Ultra Violent.
Oriunda de Guarapuava (PR), a Ultra Violent foi quem deu início aos trabalhos. A banda garantiu sua participação após vencer um concurso online que era baseado em votação popular, concorrendo com outras catorze bandas, entre mais de 300 pré-selecionadas. O grupo, que em 2018 está completando 10 anos de existência, apresentou um thrash/core de responsa, cantado em português e baseado em muito peso fundamentado em andamentos arrastados, que valorizavam mais a cadência do que a velocidade. Na primeira música, Ansiedade, o microfone de Guilherme Rocha (vocal e guitarra) esteve bastante alto, mas a partir da segunda, I.N.E.R.T.E., tudo se ajeitou.
Ao longo de curtos vinte e cinco minutos, o trio agiu certo ao abrir mão de falas ou discursos e passou bem seu recado através de fortes composições, que encontram nos riffs de Rocha e nos arranjos precisos do batera Rafael Pelete os seus pontos fortes. A cadenciada Um Passo Para Trás, de riffs hipnóticos, a citada I.N.E.R.T.E., com clara influência de Pantera, sob linhas grooveadas de Rudy Alves (baixo) e corrosivas de guitarra, e a moderna Centoenoventa, um metalcore que no decorrer ganhou belo clima com a pausa para o dedilhado denso e o curto e eficiente solo que surgiram, foram os destaques. Apesar de ter lançado um EP homônimo no ano de 2010 e alguns singles subsequentes, as novas músicas tocadas no show mostraram que já está na hora de os integrantes do Ultra Violent pensarem em um novo material de estúdio.
Em apenas 15 minutos, a equipe de palco deixou tudo pronto para os cariocas do Deaf Kids, que pouco antes das 21hs entraram em ação, proporcionando um clima desnorteante, que dava a impressão de estarmos diante da boca do inferno. Com o palco todo esfumaçado e intensa iluminação avermelhada, os experientes Dovglas Leal (guitarra e voz), Marcelo dos Santos (baixo) e Mariano de Melo (bateria) deram início com uma breve introdução, que culminou na caótica Limbo, música presente no split dividido em 2012 com a banda Timekiller, que reside no Vietnã. Com bastante rodagem pelo Brasil e algumas turnês europeias na bagagem, o que se viu do Deaf Kids foi uma apresentação fascinante. Quem assim como eu e até mesmo como o próprio Iggor Cavalera pira com sonoridades criativamente ‘non sense’, curtiu o experimentalismo da banda, que abrange influências de d-beat, punk, crust, metal industrial e afins alternativos e underground.
Fazendo um trocadinho com o nome de uma das músicas tocadas pelo grupo de Volta Redonda, essa ‘espiral de loucura’ que é o som do Deaf Kids chamou a atenção até mesmo de quem não conhecia o seu trabalho. E apesar de causar estranhamento em alguns, o grupo ganhou o respeito do público ao executar músicas densas e viajantes, quase que instrumentais, construídas em cima de acordes pesados, dissonantes e diretos, e também em multiefeitos explorados por Leal tanto na guitarra, quanto em alguns vocais que eram inseridos por ele. Tudo isso resultava em uma atmosfera alucinógena. O set foi baseado, em sua maioria, no álbum Configuração do Lamento, que o grupo lançou no ano passado. Foi uma apresentação que vale destacar não só a performance de Leal, que tocava praticamente virado de lado, ora agitando, ora se abaixando pra comandar os efeitos em sua pedaleira, como também a de Mariano, que executava levadas criativas na batera.
Sem atrasos no cronograma, o Endrah levou apenas dez minutos para entrar em ação. “Prata da casa”, por isso bastante conhecido do público paulistano, o veterano grupo, que em suas fileiras já teve no vocal e na guitarra base ninguém menos do que Billy Graziadei do Biohazard e também Fernando Schaefer (Worst, ex-Korzus / Treta / Rodox / Pavilhão 9 / Paura) na bateria, chegou agitando com seu thrash/death metal fortemente enraizado no hardcore. Se na primeira música, Worms of Envy, tudo parecia estar soando bem para os integrantes, para o público nada se ouvia do microfone do vocalista californiano que atende por Relentless. Com algumas manifestações da plateia em prol da banda, tudo foi resolvido durante o decorrer da música. Sem entender nada, os músicos ficaram surpresos vendo a reação dos headbangers, que na verdade estavam comemorando a resolução da falha técnica.
A massa sonora despejada impiedosamente por meia dúzia de temas enfatizava o autointitulado álbum de estreia do Endrah, datado de 2006. A banda conquistou o público tanto musicalmente, quanto também pela presença de palco agressiva do grandalhão Relentless e pela qualidade técnica dos tarimbados César Covero (guitarra – Voodoopriest / ex-Nervochaos), Adriano Vilela (baixo – ex-Trator / Domained / Infects Humanity) e Henrique Pucci (bateria – Noturnall / ex-Project 46 e Paura). Os vocais furiosos de Relentless, os riffs e solos nervosos de Covero, as marteladas de Pucci e as linhas encorpadas de Vilela, que se destacou em Price Out of Paradise (do EP Shoot, Shovel, Shut Up, de 2016), em partes que lembravam o saudoso Death de seus álbuns mais intrincados, não deixaram pedra sobre pedra. Em Turns Blue, o público correspondeu ao pedido de mosh pit do frontman, mas foi na nova Your Life Deleted e em 61 Rounds que o bicho realmente pegou na pista. O Endrah foi visceral e instigou os ânimos da plateia, deixando-a com sangue nos olhos para o que viria a seguir.
A partir daí, o show mais aguardado da noite demorou quase uma hora para começar. O calor era tanto, que durante o show do Endrah a produção resolveu abrir as duas portas laterais, para que ventilasse na casa. Eis que, por volta das 23h20, a famosa introdução que abre o álbum Beneath the Remains começou a ecoar nos falantes. A histeria foi geral, principalmente quando Max & Iggor Cavalera surgiram tocando a música que dá nome ao clássico álbum (com direito à paradinha mortal no decorrer). A pista se tornou um caos e ferveu ainda mais na sequência, assim que Max começou a narrar: ‘andando nessas ruas sujas’. Todos sacaram que era um gancho para o hino Inner Self e atenderam quando, estupefato com a recepção do público, Max apontou o microfone para que os fãs cantassem as primeiras estrofes. É impossível tentar descrever aqui o que se tornou o local naquele momento, especialmente na segunda parte da música, quando a banda parou e Max organizou a pista para o que chamou de “destruição”, antes de concluir o carro-chefe de Beneath the Remains.
Max e Iggor – que pra minha satisfação vestia uma camisa do Palmeiras, que horas antes havia vencido por 3 x 2 o clássico contra o Santos, disparando na liderança do Campeonato Brasileiro, faltando apenas seis rodadas para o encerramento da temporada de 2018 – estão muito bem amparados pelos mesmos músicos que acompanham o frontman em seu Soulfly. Se quando no Sepultura Max tinha em Andreas Kisser o par perfeito para a guitarra, não dá pra dizer menos do talentoso Marc Rizzo, seu fiel escudeiro há muitos anos. Quanto ao ex-Havok Mike Leon, provavelmente ele seja o tipo de baixista que Max Cavalera sempre sonhou em ter ao seu lado. O cara agita muito e toca um absurdo! Em Stronger Than Hate, por exemplo, Leon aproveitou a conhecida parte em que o baixo faz uma breve “firula” e mandou logo um solo, sendo bastante aplaudido. Ver os irmãos tocando a trinca seguinte formada por Mass Hypnosis, Slaves of Pain, que Max a apresentou dizendo que foi uma das primeiras músicas compostas para Beneath…, e Primitive Future, foi de cair lágrimas. Simplesmente emocionante!
Passada essa primeira parte do show, em que as músicas foram tocadas numa pegada violenta e ainda mais velozes do que estamos acostumados ouvir nas versões originais de estúdio, era chegada a hora de celebrar agora o álbum que desde que foi lançado em 1991, tenho pra mim como o melhor disco do Sepultura: o inquestionável Arise. Foi de arrepiar quando Max, Iggor, Marc e Mike deixaram o palco e no som mecânico começou a rolar a introdução da própria Arise, a qual Max deu a deixa ao declamar: ‘under a pale grey sky / we shall arise’. E se as músicas de Beneath já estavam sendo tocadas de maneira acelerada, essa então nem se fala… Em Dead Embryonic Cells o chão literalmente tremeu, com todo mundo que estava na pista e nos camarotes pulando.
E só melhorava: Desperate Cry, Altered State, que ganhou um final mais extenso, com uma atmosfera obscura ao melhor estilo Black Sabbath, tendo Max encerrando-a deitado no chão, Infected Voice… Cada uma com sua respectiva introdução sendo disparada no som ambiente. É importante ressaltar que nenhum dos dois álbuns têm sido tocados na íntegra. O que é uma pena, pois acho difícil termos outra oportunidade de vermos os Cavalera tocando Sarcastic Existence, Hungry e Lobotomy de Beneath the Remains e Murder, Meaningless Movements, Subtraction (uma de minhas favoritas do Sepultura) e Under Siege (Regnum Irae) de Arise. Para concluir o que restava de Arise no set, foi a vez de Orgasmatron, inesquecível cover que fez tanto sucesso no Brasil com o Sepultura, que na época chegou a tocar nas principais rádios especializadas do país. Foi legal que no meio dessa Max abandonou a guitarra e passou a cantar sob uma iluminação toda verde, remetendo ao que acontecia com Lemmy nos shows do Motörhead. Apesar de o objetivo do show ter sido concluído, com os dois álbuns do Sepultura tendo sido parcialmente revisitados, a banda só se retirou do palco após mandar outro cover do Motörhead, dessa vez para o hino Ace of Spades, com Max ainda apenas ao microfone.
Ao reassumir seu kit, Iggor, que no auge do Sepultura era comumente apontando por muitos como o melhor baterista do mundo, foi ovacionado. E ele inflamou de vez o público quando deu início à uma das introduções mais aclamadas da história do thrash metal, sendo acompanhado por seus companheiros na bombástica Raining Blood. Mas a música pertencente ao Slayer foi abruptamente interrompida para dar lugar a Troops of Doom, uma das mais respeitadas do Sepultura – presente no lendário Morbid Visions, debut lançado há 32 anos. Na sequência, foi a vez de o quarteto avançar no tempo e relembrar do impactante Chaos A.D. (1993), álbum que cravou o nome do Sepultura entre as principais bandas do metal mundial. E não houve quem não agitasse com Refuse/Resist. Após rápida e estratégica saída do palco, Max Cavalera retornou também trajando uma camiseta do nosso Verdão e, evidenciando assim as suas ‘raízes’ palestrinas, anunciou a imortal Roots Bloody Roots, do álbum que influenciou toda uma nova geração de bandas, representantes dos novos estilos que surgiram a partir de então, como o metalcore e o new metal, por exemplo. Falo de Roots, álbum que marcou a despedida de Max no Sepultura.
Para o encerramento, uma reprise estilo medley com trechos de Arise, Beneath the Remains e Dead Embryonic Cells. Um final apoteótico, com direito até a beijo da mãe Vania Cavalera (que assistia da lateral do palco) em seu filho Iggor.
Passado tanto tempo desde que Iggor e, principalmente seu irmão, saíram do Sepultura, ainda existe muita polêmica em relação aos fãs. Porém, quem esteve na Tropical Butantã para prestigiar os Cavalera, certamente nutre muito respeito por eles – muitos também (inclusive este repórter), pela formação atual do Sepultura. Sem medo de errar, arrisco a dizer que quem compareceu à esse show, certamente o apontará como um dos melhores que aconteceram em São Paulo em 2018. Digo isso não apenas pelo fator técnico, mas também pela questão emocional. Se os fãs mais velhos da dupla puderam matar a saudade de ver Max e Iggor tocando clássicos que há muito tempo não presenciavam ao vivo, os mais novos tiveram a chance de sentir um pouco da emoção que sentíamos quando esses caras tinham o mundo do metal em suas mãos.
MAX AND IGGOR – Setlist:
Beneath the Remains
Inner Self
Stronger Than Hate
Mass Hypnosis
Slaves of Pain
Primitive Future
Arise
Dead Embryonic Cells
Desperate Cry
Altered State
Infected Voice
Orgasmatron (cover do Motörhead)
Ace of Spades (cover do Motörhead)
Troops of Doom
Refuse/Resist
Roots Bloody Roots
Arise / Beneath the Remains
ENDRAH – Setlist:
Worms of Envy
Turns Blue
Priced Out of Paradise
A Lot of Blood
Your Life Deleted
61 Rounds
DEAF KIDS
Limbo
As Mesmas Ferramentas, Os Mesmos Rituais
In My Flesh
Templo do Caos
You’re Mine
Propagação
Pés Atados
Lâmina Cortante
Espiral da Loucura
ULTRA VIOLENT – Set list:
Intro
Ansiedade
Um Passo Para Trás
I.N.E.R.T.E.
Centoenoventa
Lama de Sangue
Quem É Você?