É ambiciosa a proposta do vocalista MJX (cujo nome real é Marius Andre Jacobsen) e do guitarrista Rex (nascido Rune Dahlen). Eles montaram o Mayfire no verão europeu de 2019 em Frederikstad, cidade do condado de Viken, no sudoeste da Noruega, com o objetivo de unir música e cinema. A ideia era juntar influências do prog metal e a inspiração de obras de cineastas como James Cameron (“O Exterminador do Futuro” e “Aliens”), Denis Villeneuve (“Duna” e “Blade Runner 2049”) e George Lucas (“Star Wars”).
Sim, a intenção é levar uma experiência em áudio e vídeo se complementando, quer seja nos palcos, quer seja em plataformas de realidade virtual ou na tela de um computador ou de um smartphone. Obviamente, a indústria tenta encaixar o grupo em frases como “melodic heavy rock theatre” ou “modern, melodic & cinematic metal”. Mas, na prática, rótulos não importam. O que interessa é que o projeto é, sem dúvida alguma, excelente e ganhou repercussão positiva na mídia especializada internacional como nas revistas Rock Hard, Classic Rock, Metal Hammer e Rock It.
Ainda que as músicas não dependam dos vídeos para funcionar (mas, insisto, elas soam muito bem), experimentar as duas plataformas simultaneamente é uma experiência excelente. Mesmo que você seja mais radical, tradicionalista e não se encante com grupos modernos, aproveite que os videoclipes lançados até o momento estão disponíveis aqui nesta resenha da ROADIE CREW e veja/ouça por si mesmo. Sugiro também usar fones de ouvido, algo que vai aumentar a intensidade da experiência.
Thicker Than Water foi disponibilizada nas plataformas digitais em 1o de novembro de 2019. Ainda que seja uma bela canção, de início lento e cadenciado, com uma estrofe marcada por uma impactante aceleração do ritmo, foi apenas uma discreta amostra do que estava por vir. De contrato assinado com a gravadora grega ROAR! Rock Of Angels Records, a dupla trouxe Locke (guitarra base), Aiden (baixo) e Eros (bateria) para completar a banda e lançaram em novembro de 2023 Cloudscapes & Silhouettes.
Dream Theather, TesseracT e até Ghost e In Flames são facilmente percebidos como alguns dos guias musicais do Mayfire. Mas o som tem muito dos também noruegueses Leprous – cujo baterista Baard Kolstad faz, não por acaso, uma participação especial na faixa Shadows – e dos suecos do Evergrey.
Na parte das letras, o argumento fala sobre o “futuro, quando o mundo foi devastado pela guerra e pobreza durante décadas”. A trama envolve um tirano que tomou conta de tudo pelo meio da força e uma fação de “guerreiros das sombras” que tenta restaurar a ordem. Lendo os meandros das letras das canções nota-se que temas reais – como os possíveis reflexos futuros da tecnologia para nós meros humanos, inteligência artificial e realidade virtual – podem ser base para a estrutura lírica da obra de MJX e Rex. Tudo isso amplia ainda mais o caráter cinematográfico de Cloudscapes & Silhouettes.
Basta ouvir com atenção e contemplar as imagens para você se flagrar lembrando de muitos filmes e seriados de ficção científica que já “previram” vários futuros pós-apocalípticos que podem estar nos aguardando. A narração em The Fall, faixa calma e triste que abre o álbum, traduzida aqui é um exemplo:
“Alguns dizem que foi a superpopulação que iniciou tudo,
Alguns dizem que é a penas a natureza humana: o poder, a ganância
A procura sem fim por mais
Não importa quem estava errado ou certo
E a Terra foi devastada
E isso não interrompeu a natureza humana
Então, se você me perguntar
A queda era apenas uma questão de tempo”.
Outra dica está na pesada City Of Ruins:
“Imagino se nós fomos sempre assim
Palavras que você não quer ouvir
A Terra estava girando
Até que nós a quebramos
Agora nós nos perguntamos como
Como vamos salvá-la”.
Dentro de todas as influências musicais citadas acima, o Mayfire ainda não aparenta buscar construir o seu próprio estilo no prog metal. Os pioneiros Queensrÿche e Fates Warning não são o horizonte buscado pela banda, que mira na escola moderna do estilo: voz limpa e trechos de muita melodia, tudo intercalado com levadas pesadas de guitarra e bateria. São assim, por exemplo, a faixa-título, a excelente (e mais pesada) A Sense Of Pupose, City Of Ruins e Vinternatt. Mas não há aqui uma crítica negativa. Só o fato de tentar fazer algo fora do usual no sempre sisudo e engessado mundo metálico – no caso unir música e cinema – já vale o reconhecimento para os noruegueses.
E ainda é necessário falar de MJX, cujo timbre cativante e suas linhas vocais extremamente bem inseridas em cada uma das músicas são outro diferencial para o Mayfire. É mera questão de tempo para ele começar a disputar as categorias de “Melhor Vocalista” nas escolhas anuais que muitas revistas especializadas fazem anualmente. The Age Of Kings, que fecha o álbum, demonstra isso.
A faixa é a que, por sinal, tem mais cara de “trilha sonora”. É daquelas canções que complementam uma sequência final de um filme, marcando o desfecho de uma história, até o subir dos créditos na tela. Uma última constatação me faz ter cada vez mais certeza de que a modernidade nem sempre é algo ruim. A música pesada pode sim passar por mudanças, ampliar suas possibilidades e, deste jeito, ter uma aceitação melhor até por quem jamais acompanhou tudo o que forma a cena heavy metal desde que Iommi, Osbourne, Butler e Ward deram início a isso tudo em 1968.