Por Rogério SM
Fotos: Luiz Carlos Vieira
Noite de chuva intensa, raios e trovões. Camisetas pretas de bandas como Bathory, Mayhem, Gorgoroth, Emperor e outras. Coturnos, cintos de bala e até corpse paint. Palco com luzes vermelhas e muita fumaça. Tudo indicava mais uma típica noite de metal na cidade de São Paulo, se não fosse por um único detalhe: nenhum dos artistas envolvidos na apresentação segurava uma guitarra, muito menos elétrica. Distorção? Até houve, mas nada convencional. Ainda assim, o público aguardava ansiosamente pelo show. Poucos músicos conseguiriam essa façanha e um deles é justamente Mortiis. O lendário ex-baixista e letrista do grupo de black metal Emperor já havia entrado para a história da música pesada no início dos anos 1990, quando participou da hoje clássica demo-tape Wrath of the Tyrant, lançada pelo grupo norueguês em 1992. Mortiis saiu antes do primeiro full-length da banda, mas sua fama já havia se espalhado pelos quatro cantos do mundo quando o assunto era black metal. Poucos sabiam que ele também se tornaria um dos grandes nomes do que hoje se rotula como dungeon synth: melodias soturnas e de inspiração medieval, feitas com teclados e sintetizadores. Nada de guitarras distorcidas. Curiosamente, Mortiis não perdeu boa parte dos fãs que conquistou em seus tempos de Emperor. Em sua carreira solo, flertou também com outros estilos, como industrial, darkwave, ambient e até synthwave. Porém, foi com seus discos iniciais que chamou a atenção também fora do circuito metal, ainda que a maior parte de seus aficionados seja, de fato, de headbangers.
Assim, essa cobertura já seria diferente por si só. Ocorre que, em sua única apresentação no Brasil, ao lado do grupo russo Nytt Land, tudo que poderia dar errado, deu. Adianto, entretanto, que, como em uma aventura típica medieval, o final da jornada foi, pelo menos, de vitória. As apresentações, marcadas para uma quinta-feira, 6 de fevereiro, ocorreriam na casa House of Legends, localizada no bairro da Vila Madalena, em São Paulo. O Nytt Land se apresentaria às 20h, enquanto Mortiis subiria ao palco às 21h30. Infelizmente, naquele dia a capital paulista sofreu novamente com fortes chuvas, que causaram quedas de energia em diversos bairros da cidade, incluindo a Vila Madalena. Ao chegar ao House of Legends, tudo o que se via era um breu, com pessoas da produção correndo de um lado para o outro. Às 20h30, a luz ainda não havia retornado, e não parecia que voltaria tão cedo. Identifiquei uma pessoa da produção que tentava resolver o problema, e ela afirmou já ter acionado uma empresa de aluguel de geradores de energia. A previsão era que tudo estaria em ordem até, no máximo, 22h. Porém, mesmo com a chegada do gerador, a luz insistia em não voltar. Os técnicos da empresa fornecedora do gerador e parte da equipe de produção do show se esforçavam ao máximo, mas nada parecia funcionar. Músicos do Nytt Land e até o próprio Mortiis foram até a calçada para ver o que estava acontecendo. Às 22h30, ainda não havia certeza se os shows ocorreriam.
Porém, após muito esforço, enfim fez-se a luz! Já eram quase 23h, mas todos corriam para preparar o palco para o Nytt Land. Notei que as lâmpadas da casa ainda piscavam muito e temi pelo pior. Após alguns minutos, o Nytt Land finalmente subiu ao palco para começar seu show. A recepção dos fãs foi de alegria e alívio. O trio russo, que faz uma espécie de folk e ambient music, apressou-se para iniciar a apresentação. No entanto, a aventura ainda não havia terminado. Dois minutos depois de começarem a primeira música, nova queda de energia no palco. A casa ainda estava com luz, mas os equipamentos de som apresentavam problemas. Nova correria dos produtores, técnicos de som e da equipe do gerador. Mais uma vez, a dúvida se espalhou entre os presentes: haveria ou não as apresentações? Mortiis subiu e desceu as escadas do camarim até o palco umas duas vezes. O clima era de tensão e nervosismo. Felizmente, o esforço dos guerreiros compensou e a energia do palco foi restaurada. Sem perder tempo, o trio russo continuou com seu set, que consistia principalmente em músicas dos álbuns Ritual (2023) e Torem (2024). O som, que vinha de forma cristalina e alta na medida certa dos PAs, era diferente de tudo o que se espera de um grupo sem guitarras. Era pesado e até agressivo em certos momentos, especialmente por conta dos vocais de Natalya “Krauka” Pakhalenko e Anatoly Pakhalenko. Os dois utilizam uma mistura de distorção e gutural, que dava um toque completamente único para as canções épicas da Antiga Sibéria e do Velho Norte, inspiradas na natureza siberiana e em ritmos xamânicos. O público aplaudia e gritava ao final de cada música, e o trio não perdeu tempo com conversas, apresentando uma música após a outra quase sem intervalos.
Com a primeira “batalha” da noite vencida, foi a vez de terminar os preparativos para a guerra final. A equipe de Mortiis montou o palco em tempo recorde, colocando quatro backdrops e seu sintetizador/teclado estilizado no centro do palco. Pouco depois da meia-noite, Mortiis iniciava sua jornada final em terras brasileiras. O show fez parte da turnê de 30 anos do álbum Født Til Å Herske, lançado em 1994. A apresentação consistia nas duas músicas do disco, mas totalizando quase 50 minutos. O público, que a essa altura somava pouco mais de 50 pessoas, parecia não acreditar quando o lendário norueguês finalmente iniciou os primeiros acordes de Født Til Å Herske – Part 1. Já todo caracterizado no visual que o consagrou, a melodia inicial da canção, com todo o clima medieval e soturno, funcionou como uma onda de hipnose. Nada do tradicional barulho que o público costuma fazer em shows de rock e metal. A atmosfera era total, um clima de escuridão (dessa vez só da música) e fantasia, semelhante a uma viagem astral medieval.
Mortiis fazia pequenos movimentos teatrais com a cabeça enquanto permanecia imóvel atrás dos teclados. Na plateia, taças de vinho eram erguidas em sua homenagem. Quase sem intervalo, Mortiis já emendou a segunda (e última) música da noite, Født Til Å Herske – Part 2. O clima permaneceu totalmente atmosférico, soturno e hipnótico, com as melodias se repetindo sem parar e as variações de arranjos contribuindo para a imersão total do show. Os presentes se enfileiram na frente do palco enquanto, alguns filmando a apresentação com seus celulares, mas a maioria totalmente imersa na viagem sonora instrumental, exceto pelos minutos finais quando Mortiis pegou o microfone para declamar uma letra/poesia tendo a melodia hipnótica dos teclados como cama. E assim, pouco antes da 1h da manhã, Mortiis recolhia suas armas, celebrando a vitória que foi essa apresentação ao lado dos companheiros de guerra: produtores, técnicos e, claro, os fãs. Com uma breve saudação, o músico se retirou do palco, finalizando um show que parecia que não ocorreria. Mas, quem conseguiu ficar até o fim, viu o triunfo da perseverança em nome da arte.
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