“Da próxima vez que você lançar o olhar sobre a foz do rio Nilo, atente, pois é possível que veja o esplendor de novos deuses pairando no ar. Nas jangadas que cortam as águas, no sol que queima a pele, cada brisa de vento úmido é uma benção, toda benção é uma dádiva do Nilo, e o Nilo é a vida do Egito. Anote, escriba, seja justo, bela glória maior de Tot, faça justiça ao dom de Imhotep: aqueles que carregam o nome de nossa dádiva maior, os deuses do Nile irradiam a luz do Egito sobre solos distantes. Sobre São Paulo a sombra da Grande Pirâmide se abate, e pelo menos por uma noite nosso faraó reina também sobre aquele povo”.
Ah, sim, a saudade do grande Nile era gigantesca. Finalmente tínhamos uma nova chance de acompanhar uma apresentação dessa banda que revolucionou os conceitos do death metal, e desta vez, a cidade de São Paulo foi a única no Brasil a ser contemplada por um show do quarteto. A expectativa do bom público presente no Manifesto Bar era grande, mas, infelizmente um atraso chegou bem a tempo de esfriar os ânimos dos fãs: a banda entraria no palco com um atraso de trinta minutos. Levemente incomodados, mas prontamente restabelecidos pela visão de Karl Sanders (guitarra) e seus asseclas no palco, a gritaria se estendeu e virou um verdadeiro tufão de berros com o início de “Sacrifice Unto Sebek”, a única faixa do excelente “Annihilation of the Wicked” (2005). Será que ninguém avisou para os caras que este é um dos discos deles mais populares por aqui?
No fim das contas, nem deu tempo para reclamar, pois eles tinham cartas na manga para compensar isso: “Defiling the Gates of Ishtar” tratou de colocar o insuperável Black Seeds of Vengeance na jogada, e o peso intenso e poderoso fez muita gente ficar de boca seca, como se sentisse a areia do Egito se acumulando em sua garganta esquálida de tantos berros; não havia tempo para respirar, não havia o que pensar, os deuses estavam entre nós.
É claro que existia uma dúvida no ar, muitos de nós queríam conferir como afinal a banda soaria sem a presença do careca onipotente Dallas Toler-Wade, o cara que por vinte anos comandou os vocais e golpeou a guitarra nos shows do Nile, e que hoje segue firme com o ótimo death metal do Narcotic Wasteland. E, embora sempre sintamos falta dos velhos amigos, Brian Kingsland é um excelente vocalista, que soa matador em todas as suas partes, e ainda segura as pontas na guitarra como se tivesse nascido para tocar nesta banda. Ademais, Brad Perris divide bem os vocais e, sem dúvida executa suas partes no baixo com extrema maestria. Afinal, o Nile não é conhecido por fazer músicas simples, correto? Pois é, assim, com a banda afiada, “Kafir!” chegou separando a carne dos ossos dos presentes, e seguida por “Hittite Dung Incantation” fechou a dose do disco “Those Whom the Gods Detest” (2009).
Com um George Kollias esmigalhando a bateria como lhe é costumeiro, o momento mais esperado da noite chegava: primeiro, veio a maldita tríade do fabuloso “In Their Darkened Shrines” (2002): “Kheftiu Asar Butchiu” abriu a sequência, e “Sarcophagus” veio seguida da infernal “Unas Slayer of the Gods”.
Mas o melhor mesmo havia ficado para o final, com “Black Seeds of Vengeance”. Os deuses tinham terminado os seus afazeres. O faraó já não empunhava sua guitarra no palco. Os sacerdotes rumavam de volta para suas casas, exaustos pela prática intensa de seus ritos. Cabia também a este escriba voltar e relatar os atos dos deuses e dos homens. Mas por último, fica o aviso: da próxima vez que tiver a chance de olhar para a foz do Nilo, é melhor estar atento. Os deuses pairam ali. E eles não esperarão por você para sempre.