Não se pode afirmar que, quando a cortina de palco da Célula Showcase abriu, às 23h30 do último dia de abril de 2022, as cerca de 200 pessoas presentes tenham reconhecido que valeu a pena se vacinar e combater o negacionismo que marcou a pandemia de COVID-19 no Brasil. Se não fosse a falta de competência de governantes e a histeria coletiva negativa de parte da população, que tentaram desacreditar a ciência, talvez o público presente no tradicionalíssimo centro da música underground de Florianópolis teria vivido esta noite em março de 2021, quando a banda No One Spoke lançou Nine Mirrors, seu primeiro álbum.
Inicialmente, a previsão era que o metal extremo da Amuro seria o opening act. Mas uma inversão fez com que a atração principal aquecesse o público em uma noite do típico outono de Santa Catarina: sem o opressivo calor do verão, mas com a sensação térmica já insinuando que o rigoroso inverno do Sul do País está cada dia mais próximo de seu início. A introdução foi com os acordes da quase hipnotizante Final Breath, sétima faixa de Nine Mirrors, com seu envolvente ritmo lento e o instrumental que leva o ouvinte talvez para o Oriente Médio, talvez para uma noite nos desertos da África. Arranjos que somados à voz maravilhosa de Carla Domingues se mostraram uma excelente escolha para abrir os shows do quinteto catarinense.
Talvez tenha sido por acaso que Bridge To Sanity – uma das melhores do álbum – tenha sido escolhida para a sequência. Mas não dá para deixa de pensar que a primeira estrofe da letra represente tão bem a retomada de uma vida muito mais próxima do normal em tempos pandêmicos:
“Passing by through the corners of my mind
Revisiting all bad memories away
Hoping to just forget and leave behind
All the burden that I cannot carry on
I’m trying to convince myself
That all the worse has gone
And now the time has come to
Embrace all that I deserve”
(“Passando pelos cantos da minha mente
Revisitanto todas as memórias ruins
Na esperança de simplesmente esquecer e deixar tudo para trás
Todo o fardo que não consigo segurar
Estou tentando me convencer
Que o pior já passou
E agora chegou a hora de
Abraçar tudo o que mereço”).
Quando a bela Blue Way começou, a plateia estava totalmente sob o poder da banda. O entrosamento de Carla, Iva Giracca (violino), Gabriel Porto (bateria), Thiago Gonçalves (teclado), André Medeiros (guitarra e backing vocal) e Arthur Cipriani (baixo) era uma comprovação. Parecia que jamais existiu um lockdown e que eles voltavam triunfantes para Florianópolis após uma longa tour mundo afora. E logo veio a mais conhecida do repertório: Fear Of Regret. O fundo do palco virou “tela de cinema” e as imagens do videoclipe foram exibidas enquanto o grupo executava a música marcada pela emoção, com ares de épico. Chega a ser complicado apontar qual é o maior destaque: seriam os solos de Iva e Medeiros ou a interpretação inspiradíssima de Carla?
Passados pouco mais de 20 minutos, Sigh, primeiro single de Nine Mirrors, deixava claro que o álbum seria tocado na íntegra. Em seguida, Rise Again pôs a galera para pular. Para muitos, a surpresa veio na sequência, quando Carla chamou o percussionista Marcio Bicaco ao palco. Com ele, o grupo tocou a antológica Kashmir, clássico cuja versão o No One Spoke fez para Stairway To Brazil, o tributo de grupos nacionais para o imortal Led Zeppelin.
A reta final abriu com a calma, porém apoteótica, Trust Yourself. Uma boa preparação para Rainbow In The Dark, hino do saudoso Ronnie James Dio gravado pelo No One Spoke no trabalho de estreia tendo Rudy Sarzo – baixista da banda de Dio – como convidado especial. E então a Célula cantou e vibrou descontroladamente.
Milonga para Las Reinas fechou o set e a galera mostrou que ainda queria muito mais. O público, formado por fãs dos mais variados estilos da música pesada, foi um espetáculo à parte. Todos assistiram ao show em plena harmonia. Talvez pelo fato de o No One Spoke não negar as influências de Within Temptation e acomodar muito bem o lado clássico do violino com a voz de Carla, reconhecida cantora lírica, com o metal tradicional e até doses significativas de linhas mais pesadas. Algo que, ao vivo, se evidencia ainda mais.
Música extrema, poesia, literatura e psicanálise
E se alguém estranhou estas partes mais agressivas, logo entendeu o motivo. No segundo ato da noite, a Amuro tomou o palco com dois integrantes da No One Spoke. O que era um projeto de Cipriani, agora é banda oficial, com Porto na bateria. O black metal de forte influência dos noruegueses Mayhem e Satyricon, dos suecos Opeth e dos franceses do Alcest conta ainda com Daniel Rosick na guitarra.
Will To Death, Misanthropy e Mundane Eyes, do EP gravado em 2019 tendo o nome da banda como título, fizeram a alegria dos aficionados pelo metal extremo. Em todas, a técnica de Porto impressiona tanto quanto os vocais guturais e rasgados de Cipriani. Rosick, por sua vez, distribui uma coleção de bons riffs, como na recém-lançada Real e em Praga, single de 2020, ambas cantadas em português. Freezing Moon e Villain deram fim à noite. Talvez o mais bacana na obra da Amuro seja a distância das temáticas típicas do black metal. Ao invés de satanismo, eles bebem de fontes como o escritor H.P. Lovecraft, os poetas Augusto dos Anjos e Rainer Maria Rilke e o psicanalista Jacques Lacan. E, na arte, tudo o que contraria puristas, radicais, xiitas, reacionários e fascistas merece ser apreciado. Não esqueçam esse nome: Amuro.
Setlist No One Spoke
Final Breath
Bridge To Sanity
Blue Way
Fear Of Regret
Sigh
Kashmir (Led Zeppelin cover)
Rise Again
Trust Yourself
Raibow In The Dark (Dio cover)
Milonga de Las Reinas
Setlist Amuro
Will To Death
Misanthropy
Mundane Eyes
Real
Praga
Freezing Moon
Villain
ROADIE CREW agora tem um canal no Telegram!
Participe para receber e debater as principais notícias do mundo do metal