Cerveja, thrash metal e hardcore. Na verdade, mais thrash metal e hardcore do que cerveja. Em síntese, foi isso que rolou no “Overload Beer Fest”. A ideia da produção de reunir dois nomes icônicos das poderosas escolas americana e alemã do thrash, respectivamente Overkill e Tankard, mais as bandas brasileiras Ratos de Porão, D.F.C., Surra e Blasthrash foi certeira. Proporcionar ao público a venda de cervejas artesanais então, não só foi condizente com o nome do evento, como foi uma sacada que veio a calhar para esse início de ano em que as altas temperaturas têm ultrapassado os 30°C. Pena que, para um festival que carrega ‘beer’ no nome e que tinha a favor do seu marketing os beberrões do Tankard como parte do cartaz, a quantidade de cerveja foi aquém da procura e deixou os apreciadores na mão em poucas horas. Às 14h as portas do Carioca Club já estavam abertas, entretanto, às 18h, ou seja, quando ainda restava pouco mais de cinco horas de festival, já não havia mais artesanais disponíveis para o público, que, por sinal, lotou a casa – segundo a Overload, foram vendidas quatro mil cervejas, um recorde do Carioca Club desde que passou a receber shows de rock/metal há pouco mais de dez anos. E, convenhamos, a Overload merece crédito, pois, humildemente, se desculpou nas redes sociais por ter “subestimado a sede” do público e afirmou que, com a lição aprendida, se esforçará para que a próxima edição seja ainda mais satisfatória. Agora vamos aos shows…
Pontualmente às 15h00, o Blasthrash inaugurou o “Overload Beer Fest” com a cortante Radiation Death, de seu segundo e mais “recente” álbum Violence Just For Fun (2008). No repertório havia músicas desse e do debut No Traces Left Behind (2005), entre outras. 21 anos de existência e o status de ser uma das bandas de thrash metal mais cultuadas do underground sul-americano explicam o apoio que o grupo teve do público, que começou tímido e em pequeno número, mas depois foi aumentando e se soltando. O circle pit rolou solto após as viscerais Radiation Death, Nudity on T.V. e Violence Just for Fun, quando o Blasthrash apresentou a nova Fake News, em que aproveitou para captar imagens para o videoclipe. Essa, aliás, possui uma parte cadenciada sinistra no decorrer – propícia para trilha de filme de terror – e guitarras gêmeas. A propósito, a nova dupla formada por Jhon França e Diego Rocha mostrou bom entrosamento com os veteranos Dario Viola (vocal), Diego Nogueira Sábio (baixo) e Rafael Sampaio (bateria).
Dois pontos interessantes do show aconteceram em Assassin, em que Sábio assumiu os vocais (função que exerce no Anthares) e Viola os backings, e na derradeira Possessed by Beer, que foi encerrada com trecho do hino Princess of the Night do Saxon, que inflamou o público. Encerro sobre o Blasthrash com um puxão de orelhas no grupo: Quando teremos um novo álbum?
Meia hora era o tempo que a equipe de palco dispunha para deixar tudo arrumado entre uma atração e outra. Ponto positivo para os profissionais, pois não houve atrasos. Assim sendo, às 16h00 o Surra já estava no palco. E era impressionante o peso que esse grupo santista estava sendo capaz de proporcionar através de seus únicos três integrantes, Leeo Mesquita (vocal e guitarra), Guilherme Elias (baixo e vocal) e Victor Miranda – todos ex-membros do Like A Texas Murder. Isso é fruto da experiência de uma banda que já fez mais de 250 shows por todo o Brasil, além de ter rodado por mais de dez países, tendo em seu currículo shows ao lado de Sepultura, Dead Fish, Claustrofobia, Garage Fuzz, Project 46, das internacionais D.R.I. e Dr. Living Dead, além dos próprios D.F.C. e Ratos de Porão, que em instantes também estremeceriam as estruturas do Carioca Club.
Em pouco tempo de palco, o trio descarregou seu hardcore com músicas velozes e agressivas de Tamo na Merda (2016), seu único ‘full lenght’ até o momento, e também de seus dois EPs, Bica na Cara (2012) e Ainda Somos Culpados (2018). A banda ganhou o público, embora muitos ali já fossem fãs de carteirinha e sabiam as letras de cor, tanto que em O Peso da Responsabilidade dois garotos subiram no palco para cantar com a banda. Já em 7 a 1 foi dada a largada para os stage divings que rolaram durante alguns shows. Destaque para a divisão dos vocais que havia em certos momentos entre Mesquita e Elias e também para Miranda, batera visceral e preciso. A banda saiu ovacionada, com Mesquita informando que se tudo der certo em abril tem disco novo do Surra na área.
Antes de a próxima atração dar continuidade ao evento, Leeo Mesquita retornou ao palco e fez as honrarias. Disse que o D.F.C. foi uma das bandas responsáveis por mudar sua vida – não à toa, o Surra homenageou o grupo brasiliense no EP Bica na Cara ao gravar Pau no Cu do Capitalismo em Posições Obscenas/Sou o Mesmo FxDxPx. E foi exatamente com Pau No Cu do Capitalismo… que Túlio (vocal), Miguel (guitarra), Leonardo (baixo) e Bruno (bateria) iniciaram a pancadaria. Foi um pandemônio na pista! 26 anos de estrada e discos clássicos como Igreja Quadrangular do Triângulo Redondo (1996), O Massacre da Guitarra Elétrica (2002), O Mal Que Vem Para Pior (2005), entre outros álbuns e afins, fizeram do Distrito Federal Caos nome forte do crossover brasileiro. Tendo como tônica músicas curtas, muitas com menos de um minuto de duração (!), o quarteto executou uma cacetada delas.
O ponto comum entre as bandas nacionais que tocaram no evento eram os discursos contra nosso atual presidente Jair Messias Bolsonaro, no entanto, Túlio foi o único que falou exatamente o que eu penso, ao apresentar uma das músicas: “independente de esquerda ou de direita, uma coisa acontece lá (em Brasília): Todos Eles te Odeiam!”. Túlio, que integrou outra ótima banda, o Possuído Pelo Cão (nome de uma música do D.F.C.), à todo instante ia se “hidratar” com cerveja e quando se pronunciava arrancava risos com suas tiradas engraçadas. E foi consciente ao pedir que as garotas no evento fossem respeitadas. Outro que chamou atenção foi Bruno, que teve uma performance cavalar. Pena que foi um show curto. Tivessem dado mais dez minutos para o D.F.C., teríamos tido, talvez, mais umas quinze músicas. Estou brincando, claro, mas não é de se duvidar!
A última atração nacional a se apresentar foi o Ratos de Porão, que na metade de 2018 viveu um grande momento, tocando no continente asiático pela primeira vez em sua carreira. Com a casa já lotada, João Gordo (vocal), Jão (guitarra), Juninho (baixo) e Boka (bateria) foram muito bem recebidos pelo público, assim que começaram o baile com Pensamentos de Trincheira, música de Cada Dia Mais Sujo e Agressivo (1987). Curiosamente, apesar de o ‘backdrop’ ilustrar a capa de Século Sinistro, mais recente álbum do Ratos, nada desse material foi tocado. A bola da vez foi o clássico Brasil, que em 2019 está completando 30 anos de seu lançamento. E dá-lhe clássicos desse que liricamente continua sendo atual no que diz respeito à política do país – o que não é nenhuma surpresa. Pedradas como Amazônia Nunca Mais, Lei do Silêncio, Crianças Sem Futuro, Farsa Nacionalista, Herança e Beber Até Morrer foram comemoradas pelos fãs e se uniram a outras pancadarias como Crocodila, Crucificados Pelo Sistema, Morrer, Herança, Crise Geral e etc…
Em termos de performance, se por um lado João Gordo hoje se movimenta menos no palco, até porque estamos falando de um cara de 54 anos de idade, Jão continua afiadíssimo na execução de seus riffs e Boka e Juninho seguem sendo uma das cozinhas mais afiadas do hardcore. Isso sem contar que, no caso do baixista, é sempre impressionante vê-lo saltar pelo palco. Voltando a falar de Brasil, Gordo antecipou que a partir de março o Ratos tocará o álbum na íntegra e que para isso só precisam ensaiá-lo. Espero não só conferir isso de perto, como também, quem sabe, um novo material de inéditas do Ratos de Porão, afinal, lá se vão cinco anos desde que Século Sinistro foi lançado.
Voltando ao evento, após o ótimo show do Ratos de Porão, as atenções se viraram para as atrações internacionais. E você já parou pra pensar que o “Overload Beer Fest” teve a proeza de, numa tacada só, trazer ao Brasil as duas bandas de thrash metal que mais gravaram discos na história? Se duvida disso, aponte-me outra que assim como o Overkill esteja chegando ao seu 19° álbum ou como o Tankard, que em 2017 lançou o seu 17° – ambos pela Nuclear Blast. Após a insólita El Condor Pasa (Simon & Garfunkel) rolar no som mecânico como introdução, os fanfarrões Andreas “Gerre” Geremia (vocal), Andreas “Andy” Gutjahr (guitarra), Frank Thorwarth (baixo) e Olaf Zissel (bateria) invadiram o palco tocando One Foot in the Grave, que dá nome ao mais recente álbum, lançado em 2017. Ao final dessa, o sempre divertido Gerre falou da satisfação de estar de volta ao Brasil após três anos – vale dizer que na noite anterior a banda tocou em Limeira (SP). Ao perguntar se todos estavam preparados para clássicos old school, ele e sua banda mandaram uma dobrarinha de quebrar pescoços: os hinos The Morning After e Zombie Attack, dos álbuns de mesmos nomes, lançados, respectivamente, em 1988 e 1986.
Durante a apresentação do Tankard, os seguranças tiveram bastante trabalho com os ‘thrash maniacs’ que subiam no palco pra se divertir em stage divings – e os homens de terno não foram nada simpáticos com alguns que pulavam no pit pra arriscar a escalada. Som bem mais alto do que o das bandas de abertura, calor insano e muito circle pit na pista, assim seguia o show do Tankard. Para aliviar o calor dos fãs, em alguns momentos Gerre pegava um balde e atirava gelo na plateia, enquanto que alguns sortudos pegavam as latas de cerveja que eram atiradas pelo generoso Frank. Falando em gelo, calor, cerveja e Gerre, não pense que o bonachão degustou de nossas louras geladas, pois o que se via era o frontman a todo instante indo ao canto do palco tomar Coca-Cola (!) – acredite se quiser. Senti falta de minha música favorita do Tankard, Under Friendly Fire, de Beast of Bourbon (2004), porém rolou várias outras ótimas como Die with a Beer in Your Hand, Minds on the Moon, Rectifier, Chemical Invasion, A Girl Called Cerveza e a excepcional (Empty) Tankard, que encerrou em alto nível a apresentação desse que é um dos poderosos representantes do chamado “The Big Teutonic 4”, que é completado pelo trio de ferro Sodom, Kreator e Destruction.
Finalmente, era chegada a hora de matar saudade do Overkill, que desde 2012 não retornava ao país. Estive presente em todas as cinco vezes que o grupo tocou em São Paulo e fui uma das 100 testemunhas que presenciaram o Overkill tocando no improvável CTN (Centro de Tradições Nordestinas) em sua última passagem pela cidade. O motivo de tão pouca gente foi a fraca divulgação. A espera teria sido menor se em 2015 os shows que a banda faria em São Paulo e Curitiba não tivessem sido cancelados. E parece sina, pois sempre acontece algo negativo com o Overkill no Brasil. Em uma das vezes que a banda esteve aqui, o guitarrista Derek Tailer se irritou com o espaço reduzido do palco da Clash Club e se retirou em algumas músicas. Em outra ocasião, o show acabou antes do esperado e gerou troca de farpas entre a equipe do Overkill e a produtora através da comunidade do evento no falecido Orkut. Como se não bastasse, em sua estreia no Brasil em 2001, o Overkill foi convidado a tocar no Espírito Santo, no “Festival de Alegre”, e dividiu palco com ninguém menos do que Ivete Sangalo, Capital Inicial e um desconhecido grupo de pagode chamado Garotos da Praia! E não seria agora que banda se livraria dessa maré de azar…
Bobby “Blitz” Ellsworth (vocal), Tailer e Dave Linsk (guitarras), D.D. Verni (baixo) e o estreante Jason Bittner (bateria – Shadows Fall / ex-Flotsam and Jetsam e Toxik) aguardaram a sinistra introdução mecânica e entraram arregaçando com Mean, Green, Killing Machine, música de seu mais recente álbum The Grinding Wheel (2017). Ás vésperas de lançar no próximo dia 22 o novo The Wings of War (que eu já tive o prazer de resenhar para a próxima edição da ROADIE CREW, e afirmo que é excelente!), o quinteto utilizou-se no palco de adereços ainda relacionados a The Grinding Wheel. Infelizmente, o som estava muito aquém dos outros shows: extremamente alto, guitarras abafadas e, em vários momentos, o microfone de Blitz com soava baixo – em dado momento o vocalista se submeteu a cantar no mic de apoio de Tailer. E não houve melhoras significativas. Por sua vez, os músicos deram o seu melhor e tiveram uma performance impecável. Tailer e Linsk totalmente consistentes nos riffs, dispunham do apoio de Verni, que considero um dos melhores baixistas de thrash metal de todos os tempos. Blitz é um frontman de qualidade irretocável, tanto em termos de voz, quanto de comunicação e também de presença de palco. Já Bittner mostrou que merece o posto que ocupa. O cara é um motor atrás de seu kit!
Pra uma banda com mais de trinta anos na estrada e tantos álbuns lançados, certamente é difícil escolher o repertório de um show. De minha parte, senti falta de pérolas como Necroshine, Powersurge, Horrorscope, E.vil N.ever D.ies, Thunderhead, The Years of Decay, Spiritual Void, Thanx for Nothing e tantas outras. Mas não dá pra reclamar de um set que nos brindou com as ótimas In Union We Stand, Rotten to the Core, Hello from the Gutter, Coma, Infectious, Wrecking Crew, Hammerhead, Elimination, além de algumas mais recentes, que também se tornaram fundamentais nos shows do Overkill, como Ironbound, Electric Rattlesnake e Goddamn Trouble. Para dar um gostinho do que virá no próximo álbum, o grupo mandou Head of a Pin, música de riffs instigantes. O final com o já esperado cover do The Subhumans para Fuck You, que tem o furioso refrão que diz ‘We don’t care what you say / Fuck you!’, ficou sensacional tendo a versão de Sonic Reducer do Dead Boys sendo intercalada. Ao som do tema original do lendário e antigo seriado Batman, o Overkill se despediu do público brasileiro antes de partir para o Paraguai. Espero que o Overkill não demore mais sete anos para tocar aqui e torço para que essa energia negativa que permeia a banda a cada vez que toca no Brasil não a acompanhe mais.
O pessoal da Overload merece elogios pelo cast coerente que ofereceu ao público, pelo cumprimento à risca do cronograma, pela escolha do horário de início e de encerramento do evento, que possibilitaram ao público que dependia de transporte público um retorno tranquilo para casa e, principalmente, pela sabedoria de reconhecer os erros que ocorreram e se desculpar pelos mesmos. Fico na expectativa de uma próxima edição, na certeza de que os organizadores farão de tudo para que os erros sejam sanados.