Toda forma de arte tem alguma função, se coloca no direito e no dever de cumprir algum papel, de mexer com as emoções. Pode chocar, revolucionar, modificar uma era, mudar o estilo de uma sociedade ou comunidade ou, no mínimo, atingir o âmago de um indivíduo. E até salvar vidas. Foi assim que Da Vinci, Shakespeare, Mozart, Michael Jackson, Fellini, Saramago, Gabriel Garcia Marquez, Tarsila e tantos outros construíram seus impérios em suas respectivas áreas e épocas e influenciaram os pensamentos de sociedades ao redor do mundo. Num momento em que o visual e o áudio se completam, Roger Waters pisou no palco do Mineirão, em Belo Horizonte, no dia 21 de outubro, um domingo à noite, a fim de não apenas fazer valer essa tradição como também fundir sua música, nascida nos anos 60 e que transpassou as décadas, com cinema e teatro para incitar as pessoas a refletirem sobre assuntos vigentes, sobretudo no cenário político global. Nem que para isso fosse preciso transformar o público num barril de pólvora – que, felizmente, não explodiu. E, independentemente se as pessoas concordam ou não com os pensamentos dele, mister Roger Waters fez história. E sejamos francos: ele não é um músico qualquer.
Antes de tudo, um questionamento. O que você faria se chegasse – ou já tiver chegado – aos 75 anos, com dinheiro, fama e a possibilidade de visitar qualquer cidade? Deleitar-se em Berlim ou simplesmente sentar na varandinha de um hotel em Barcelona tomando um vinho poderiam ser algumas alternativas, bem como curtir os netos e bisnetos – quem sabe! Mas Roger Waters não. Mesmo com sete décadas e meia de vida, o eterno baixista e cérebro do Pink Floyd não se rendeu à aposentadoria e desde sempre se prontificou em levar sua mensagem a todos os cantos do planeta. A turnê Us + Them, que já havia passado por São Paulo, Brasília e Salvador, chegou à capital mineira novamente para causar alvoroço e arrancar lágrimas de cerca de 50 mil fãs.
Pontualmente às 21h, começava o espetáculo – que viria a ter pouco mais de três horas de duração – bem ao estilo do ícone do rock psicodélico. Durante 20 minutos, o telão enfatizava uma mulher sentada (que poderia ser qualquer um) avistando o mar – e aí você começa a “viajar” e se preparar para o início apoteótico de Breathe, de The Dark Side of the Moon (1973), seguida por mais duas do emblemático álbum: Time fez o público explodir em êxtase, com belo trabalho do guitarrista Jonathan Wilson, enquanto The Great Gig in the Sky hipnotizava os súditos ali presentes graças ao fantástico dueto das cantoras Holly Laessig e Jess Wolfe.
Depois que Welcome do the Machine – a primeira de Wish You Were Here (1975) – foi executada, Waters emplacou uma trinca de seu mais recente disco solo, Is This the Life We Really Want? (2017). Déjà Vu, The Last Refugee e Picture That foram recebidas com menos aplausos, mas isso porque a maior parte do público queria ouvir mesmo eram os sucessos do Floyd. No entanto, diga-se de passagem, essa tríade foi executada com grande perfeição, abrindo caminho para um dos pontos altos da apresentação: a emocional Wish You Were Here, a deixa para muitos abraços e beijos de casais apaixonados.
Até aquele momento, o espetáculo já primava por grande qualidade visual, incluindo um show de cores. Mas nada que se comparasse ao que viesse a seguir, com peças da antológica ópera rock The Wall (1979) – The Happiest Days of Our Lives e as partes II e III de Another Brick in the Wall – e todo seu conteúdo político, incluído nas letras, no teatro exibido por crianças e palavras e frases no telão, o que dividiu em dois o mar de humanos na pista e nas arquibancadas.
De um lado, gritos de “ele não” – em referência à campanha contra o presidenciável Jair Bolsonaro, um dos alvos de Roger Waters na turnê. Do outro, vaias. Bem, como já ressaltado no início deste texto, o baixista – que também tocou guitarra e violão no concerto – cumpriu seu objetivo de provocar os mais diferentes tipos de emoção em seus aficionados, concordassem ou não com sua visão política. Aliás, o telão com nomes de “neofacistas” eleitos por Waters, como o norte-americano Donald Trump, a francesa Marine Le Pen e o húngaro Viktor Orbán, trazia novamente a inscrição “ponto de vista político censurado”. Quem conhece a história, sabe que se trata de mais uma crítica de Waters aos eleitores de Bolsonaro, o que resultou em xingamentos entre fãs e alguns princípios de conflitos – como disse, o barril quase explodiu.
Veio então uma pausa de cerca de 20 minutos para várias frases políticas no telão e críticas a líderes mundiais. Enquanto isso, uma nota curiosa e ao mesmo tempo negativa. Um vendedor ambulante foi flagrado comercializando água e cerveja com preços mais caros do que o proposto. Do lado de fora do isopor os valores expostos eram R$ 6 para a água – mas o comerciante estava cobrando R$ 8 – e R$ 12 a cerveja, três reais a menos que o exigido por ele. E olha que o valor “correto” já estava um absurdo, assim como o preço para adquirir um copo do show – era preciso comprar de uma só vez três copos de cerveja, cada um a R$ 12, ou seja, o copo “premiado” saía a R$ 36.
Depois do intervalo, emergiu-se uma nova cidade cinematográfica, com as chaminés da capa de Animals (1977) e o icônico porco voador passando por cima do público. E mais dois clássicos, oriundos desse disco, para abrilhantar ainda mais a noite: Dogs – com aquele épico solo, um dos mais lindos da história do Floyd – e Pigs (Three Different Ones) – e imagens cômicas e escrachadas de Donald Trump. A seguir, Money e mais alfinetadas nos políticos mundiais.
O show se aproximava do final, com mais um espetáculo de cores em Us and Them e Brain Damage, mais duas pérolas de Dark Side, e Smell the Roses, outra do último álbum solo do multi-instrumentista. Coube a Comfortably Numb a última anestesia musical, em uma exibição que já entrou para história do Mineirão em todos os sentidos. Vida longa a esse verdadeiro mito chamado Roger Waters!