O início da turnê do músico Roger Waters no Brasil mostrou uma produção grandiosa, um telão gigantesco de setenta metros de largura por catorze de altura, muitas cores, luzes e psicodelia, ou seja, o que já era de se esperar. Waters sempre foi um músico que se preocupou muito com o visual dos shows, desde o início do Pink Floyd. Hoje, suas apresentações são reconhecidas como experiências sensoriais imersivas com produção audiovisual de última geração e som quádruplo de tirar o fôlego. São as quatro torres de som pelo estádio, com funcionamento independente e efeito de profundidade, que te colocam “dentro” da música, não diante dela.
A turnê batizada de Us + Them já está rodando o mundo desde o ano passado e o set list conta com músicas dos álbuns The Dark Side of the Moon (1973), Wish You Were Here (1975), Animals (1977) e The Wall (1979), quatro clássicos da carreira do Pink Floyd, além de algumas músicas de seu disco de estúdio mais recente, Is This The Life We Really Want?, um álbum/manifesto a favor dos direitos humanos.
A primeira parte do show começa logicamente com muita euforia. Roger Waters inicia com as faixas Speak to Me, Breathe, One of These Days e Time. Ou seja, uma sequência forte de clássicos e que consegue prender a atenção de todos. A atuação das vocalistas Jess Wolfe e Holly Laessig foi ótima, principalmente em The Great Gig in the Sky, que foi outro momento de arrepiar. E poder ver e escutar – com toda essa qualidade de som e imagem – a música Welcome to the Machine foi um dos grandes momentos do show, que obviamente dá uma esfriada com a sequência de músicas do seu álbum solo. São músicas legais, mas os fãs estavam em busca dos clássicos dos anos 70. Por isso Waters retorna com a ótima Wish You Were Here, cantada, como sempre, por todos, The Happiest Days of Our Lives e a eletrizante Another Brick in the Wall Part 2 & 3, executada com perfeição, com o som quádruplo em ação e mais as crianças que entram em ação, vestindo macacões laranja tipo de presidiário com um número no peito e capuzes nas cabeças. Todos cantam a letra e seguem uma coreografia que protesta contra professores opressores. Em determinado momento, eles tiram esses capuzes, depois os macacões e aparecem com camisetas pretas com a inscrição ‘resist’ (resista). O delírio foi geral e então vem o intervalo de vinte minutos.
Eu já havia assistindo esse show em outubro do ano passado na cidade de Vancouver (CAN). Sabia que no intervalo ele usa o telão para protestar contra problemas de todo o mundo, desde não jogar lixo no oceano até Mark Zuckerberg, do Facebook, passando por Benjamin Netanyahu, políticas militares e a união nada sagrada entre religião e estado. E parte para frases que pedem que as pessoas resistam às guerras, à corrupção, aos neofacistas etc. E em determinado momento o telão apresenta uma lista de governantes de alguns países e pede resistência a eles. Como o show é no Brasil, além de Donald Trump (EUA), Marine Le Pen (França) e Putin (Rússia), lá estava Bolsonaro. Obviamente que as reações começaram imediatamente. Gritos de “fora PT” e “ele não” ecoaram no estádio.
Por conta disso, o retorno para a segunda parte do show foi mais tenso do que o normal. Primeiro por que é nesse momento que a usina termelétrica Battersea, que está na capa de Animals, aparece de forma espetacular no telão junto com um som estremecedor em um efeito sensacional, com direito até a quatro chaminés cenográficas que soltam fumaça. E segundo por conta do clima causado por conta das mensagens no telão.
Em seguida, emendou músicas que, se não fosse por essa turnê, não sei se muitos fãs teriam a oportunidade de escutar ao vivo, como Dogs e Pigs (Three Different Ones). Foi um momento único do show, aquele em que Pink Floyd e Roger Waters atacam de forma incisiva os porcos que governam o mundo. E em Pigs… ele concentra sua crítica em Donald Trump, com imagens ridicularizando o presidente americano durante quase toda a execução da música. Em defesa do feminismo, dos refugiados e do meio ambiente, uma garrafal frase em português: “Trump é um porco.” Vale ressaltar que essa turnê atravessou os Estados Unidos dessa mesma forma.
Ainda em Pigs o porco inflável entra em cena voando por cima da pista. Algumas frases escritas nele eram “as crianças não têm culpa”, “respeitem as mulheres” e “mantenha-se humano”.
Money e Us and Them chegam com força total, sendo que essa última, sempre que executada, é de emocionar. Roger Waters toca mais uma faixa do seu mais recente álbum solo, Smell the Roses, e então parte para as faixas que fecham The Dark Side of the Moon, Brain Damage e Eclipse, essa última com um jogo de lasers projeta o prisma da capa do clássico álbum em cima dos fãs na pista. São músicas marcantes que fecham o show antes do bis. Mas Roger Waters ainda jogou no telão a frase “ele não”, provocando uma forte onda de vaias e xingamentos. O músico ficou parado no palco por um bom tempo sem dizer nada.
“Sou contra o ressurgimento do fascismo. E acredito nos direitos humanos. Prefiro estar num lugar em que o líder não acredita que a ditadura é uma coisa boa. Lembro das ditaduras da América do Sul e foi feio”, disse ele. No discurso ainda falou que “eu sabia que isso ia acontecer porque em São Paulo, e na América do Sul em geral, vocês têm a fama de ter muito amor no coração”, agradecendo o público mesmo ainda sob algumas vaias.
O show deve continuar! E então ele executa as faixas Mother e Comfortably Numb, a música do solo mais bonito de todos os tempos! E que serviu também para unir novamente todos os presentes que cantavam e curtiam cada trecho desse clássico absoluto.
Era esperado que ele colocasse sua posição no Brasil, assim como fez em todo o mundo durante sua turnê, referindo-se a outros políticos. E que bom que ele tem, em nosso país, essa liberdade de expressar sua opinião, seja ela certa ou errada no ponto de vista de cada um. Mesmo assim, poderia ter sido mais bem assessorado, já que estamos vivendo um momento delicado em nosso país há anos com tamanha corrupção que gerou a maior crise econômica que já atravessamos.
No segundo dia o show manteve o mesmo setlist e ele não exibiu mais a “#elenão”. O clima foi mais ameno e mais voltado para o show, mesmo mantendo no intervalo a crítica aos que ele considerada neofacistas no telão.
Tudo que puder ser feito nesse momento para não exaltar os ânimos melhor. E os candidatos devem dar exemplos contundentes nesse sentido.