Por Antonio Carlos Monteiro
Fotos: Cristina Mochetti e Karina Mochetti
Assistir à sua banda do coração é sempre um evento especial. Assisti-la em outro país, o que permite verificar como as coisas funcionam por lá numa apresentação como essa, é um bônus que vale muito a pena aproveitar. Assim, depois de um bom tempo de planejamento, lá fomos nós para Vancouver, na costa oeste do Canadá, onde mora minha filha, assistir aos Rolling Stones.
Os vídeos disponíveis no YouTube de outros shows dessa turnê americana, que começou dia 28 de abril em Houston, no Texas, e se encerra dia 21 de julho em Ridgedale, no Missouri, mostravam uma banda em plena forma, a despeito de contar com dois octogenários e um quase lá na formação – justamente por isso, os shows tinham intervalo de pelo menos três dias entre si.
Como já dissemos, o fato de a apresentação acontecer em outro país dá oportunidade de observar alguns detalhes muito interessantes se comparados ao que ocorre no Brasil. O BC Place (estádio que sedia os jogos do time de futebol Vancouver Whitecaps, que disputa a MLS, e do BC Lions, time de futebol americano que é um dos principais da liga canadense do esporte) fica numa região de facílimo acesso, a apenas três quadras do metrô – ou seja, mais fácil de chegar, impossível. Uma vez lá dentro, deu pra ver que logística não é o forte dos canadenses em eventos desse porte. Comprar uma cerveja, um sanduíche ou ir ao banheiro era uma operação quase de guerra, tais as distâncias a serem percorridas e as poucas opções para compra de alimentação – acho que foi o único show em que fui na vida em que tomei apenas uma cerveja… O mesmo em relação ao merchandising. Apesar da fila organizadíssima e do enorme respeito dos canadenses em relação aos demais (nada de empurra-empurra ou de malandrão tentando furar fila), os poucos pontos de venda faziam com que filas quilométricas se formassem diante de cada um deles – nesse caso, o fato de termos chegado cedo favoreceu muito na hora de fazer estrago com o cartão de crédito…
Outro aspecto a ser levado em conta é que, ao contrário do que acontece no Brasil, a divisão dos lugares no gramado é diferente do que acontece por aqui. Diante do palco, com ingressos caríssimos, havia o “pit”, área a poucos metros da banda em que o pessoal ficava de pé, lutando por um lugar mais legal. Aquilo que chamamos de “pista comum” é igual, mas a tal “pista VIP” é com cadeiras numeradas – e, mais uma vez, o respeito era total. Se você levantasse, nenhum espertalhão sentava na sua cadeira. Lógico que o show a gente viu em pé, mas passar toda a espera sentado é bem mais confortável.
Por fim, uma outra constatação, que pode ser cruel, mas é totalmente real. Estamos falando dos Rolling Stones, ou seja de uma banda que já passou dos 60 anos de atividades. A consequência óbvia e natural disso: nunca vi tanta muleta, bengala e andador num show de rock… Sinal dos tempos.
Isto posto, lá fomos para nossos lugares na tal pista VIP (que dava direito a uma caixa repleta com uma infinidade de brindes da banda). A normalmente gelada Vancouver passava por uma onda de calor e o estádio, cujo teto pode ser fechado (e fica assim na maior parte do ano), estava aberto, deixando entrar o sol que nessa época do ano só diz tchau lá pelas 22h – e às 4h da manhã eis o bruto de volta!
A abertura ficou por conta de uma banda de Pittsburgh chamada Ghost Hounds. Experiente, o quinteto se fez engrossar por um tecladista, duas backing vocals (sensacionais, por sinal) e uma violonista, dando uma bela engrossada no som. O grupo faz uma mistura de rock, blues e country, mas para essa apresentação, de maneira inteligente, criou um setlist focado na parte mais rock de seu repertório, o que agradou em cheio à galera – estimada, segundo a imprensa local, em mais de 50 mil pessoas. Banda excelente e que merece ser conferida.
E pontualmente às 21h, Mick Jagger, Keith Richards e Ron Wood tomaram o palco de assalto com Start Me Up. Você já ouviu a expressão “entrar em campo com o jogo ganho”, né? Os Rolling Stones levaram isso a outro patamar: quase não dava pra ouvir a banda tal o alarido promovido pela multidão. Acompanhados por Darryl Jones (baixo), Steve Jordan (bateria), Chuck Leavell (teclado e espécie de maestro do negócio: é ele quem conta até quatro no início das músicas e até toca o cowbell na introdução de Honky Tonk Women), Matt Clifford (teclado), Karl Denson e Tim Ries (metais) e Bernard Flowley e a excepcional Chanel Haynes (backing vocals) emendaram outro hit, Let’s Spend the Night Together, para na sequência surpreender com a ótima e sempre subestimada Bitch (“quando você fala meu nome, eu babo que nem o cachorro do Pavlov”, diz o refrão – mais Stones impossível!).
A nova-que-já-virou-hit Angry (a primeira das quatro do novo disco, Hackney Diamonds, que seriam apresentadas na noite) continuou fazendo a galera chacoalhar o esqueleto (“porque você está zangada comigo?”, Jagger pergunta várias vezes na música), para em seguida ser a vez da escolhida da noite. Explicando: em cada show, a banda oferecia quatro canções para que os fãs selecionassem uma a ser apresentada. No caso de Vancouver, as opções eram Heartbreaker, Street Fighting Man, Out of Control e All Down the Line. Disputa difícil que sagrou vencedora Street Fighting Man – acabou sendo a primeira vez que a canção foi tocada nesta turnê. A balada White Horses veio na sequência e aí Keith Richards fez algo que não fazia há tempos: backing vocals, o que se repetiria em diversos outros temas do show.
Até a chatinha Mess it Up (disparado, a única música mala de Hackney Diamonds) acabou ficando bacana graças ao peso colocado pela banda. Aliás, aqui vale comentar as performances. Steve Jordan estreou na banda meio claudicante (também, substituir Charlie Watts não é exatamente uma tarefa simples), mas, com o tempo, achou seu lugar e seu estilo – não imita Charlie, mas respeita seu legado. Darryl Jones está com os Stones há 30 anos, não precisa provar mais nada pra ninguém. Ron Wood, depois que abandonou a bebida, vem se mostrando um guitarrista cada vez mais sólido (apesar de ainda ter uma das coleções de guitarras mais feias da história do rock), lembrando os tempos de Faces. Keith Richards também se renovou. Se na tour anterior cometeu várias gafes e chegou até a abrir mão de fazer o riff de Paint it Black, agora está atuando de novo na linha de frente, com sua guitarra bluesy muito alta, como a protagonista que deve sempre ser. Segundo ele, a artrose que o atormenta há anos dificulta o ato de tocar, mas, ainda de acordo com ele, “cada vez que fica difícil, a guitarra me mostra o caminho mais fácil para fazer o que eu preciso.” Diz aí: quem mais no planeta teria essa intimidade com o instrumento? Mas o inacreditável é mesmo Mick Jagger. O cara faz 81 anos no final de julho e parece ter metade disso. Movimenta-se de forma incessante, canta com afinação, potência e alcance irrepreensíveis e continua um mestre na comunicação com a plateia. Sem dúvida alguma, o vigor físico dele é algo que merece ser estudado.
Mais dois clássicos, Tumbling Dice e You Can’t Always Get what You Want, vieram em seguida, abrindo espaço para Mick apresentar a banda. Antes disso, cumprimentou a seleção canadense de futebol por ter se classificado para as semifinais da Copa América, elogiou o primeiro ministro Justin Trudeau, recebendo um mix de vaias e aplausos (segundo a biografia de Keith Richards, a mãe de Justin, Margaret, casada com o também ex-primeiro-ministro Pierre Trudeau, chegou a ter casos com Ron Wood e Mick Jagger nos anos 70) e se derramou em elogios a Vancouver: “Sabe quando você fica um tempão sem encontrar com uma namorada e quando a vê descobre que ainda a ama loucamente?”, proferiu ele, mencionando o fato de os Stones estarem há 18 anos sem tocar na cidade).
Quem conhece um show dos Rolling Stones sabe: depois de apresentar os músicos, Jagger vai descansar um pouco, passando para Keith Richards a missão de cantar um ou mais temas. No caso em questão, foram nada menos que três: Tell Me Straight (do último disco). Little T&A e Before They Make Me Run (“eu vou sair andando antes que eles me façam correr”, diz o refrão, lembrando a vida-guerra que o guitarrista teve com as autoridades).
Sympathy for the Devil , aquela que antigamente Jagger dizia que “sempre acontece algo estranho quando tocamos essa música”, foi interpretada num palco tomado pelo vermelho e uma animação bem interessante no telão. Mais um super hit, Honky Tonk Woman, foi seguida por uma bela supressa: Midnight Rambler, misto de rock e blues que vira um tour de force de nada menos de 12 minutos em que a banda aproveita e mostra porque é o principal nome da história do rock, com destaque ao solo de gaita de Jagger – isso poucas vezes é lembrado, mas o cara é um dos melhores gaitistas do mundo do rock. Sem dúvida, um dos pontos mais altos da noite.
Mas ponto alto do show mesmo veio em seguida: Gimme Shelter trouxe à frente do palco Chanel Haynes, uma baixinha que fica enorme quando abre a boca na frente do microfone. Espécie de Tina Turner em miniatura (Chanel chegou a protagonizar um musical contando a história da cantora), coube a ela a tremenda missão de substituir Lisa Fischer, que cantou com os Stones durante nada menos que 23 anos. A facilidade com que Chanel interpretou as linhas complicadas de Gimme Shelter foi um dos momentos mais emocionantes da noite, um verdadeiro show de potência e afinação. Quase deu pra dizer que não sentimos falta de Lisa – eu disse quase…
Paint it Black (primeira música dos Rolling Stones a atingir um bilhão de plays nas plataformas de streaming) contou com Richards fazendo o riff com precisão cirúrgica, emendada com Jumpin’ Jack Flash. Aí rolou aquele final fake que não engana nem minha vó e a banda voltou para outro momento de glória: Sweet Sounds of Heaven é o principal momento de Hackney Diamonds, com um verdadeiro show de Lady Gaga (digam o que quiserem, a moça faz um estilo que definitivamente não agrada, mas canta miseravelmente bem!). Chanel novamente se juntou a Jagger no centro do palco e deu mais um show – pena que a música vem sendo encurtada e o dueto (duelo?) vocal entre Mick e Chanel foi cortado.
O final não poderia ser outro: Satisfaction, fazendo com que a banda totalizasse 2 horas em cena, o que pouca gente faz hoje em dia, principalmente quando se está com 80 anos…
Dá pra dizer que algumas músicas fizeram falta, como Miss You e Brown Sugar (essa aparentemente não volta aos shows após ser acusada de ter letra politicamente incorreta), mas mesmo assim não há do que reclamar. Os Stones tocaram inúmeros clássicos, outros temas nem tão clássicos, mas tudo com uma maestria irretocável. Difícil dizer se eles vão aparecer por aqui ou mesmo se voltam a gravar e fazer uma outra tour. Mas, depois do que eu vi nessa noite, em se tratando desses caras eu não duvido mais de nada!
Setlist:
Start Me Up
Let’s Spend the Night Together
Bitch
Angry
Street Fighting Man
Wild Horses, Mess it Up
Tumbling Dice
You Can’t Always Get what You Want
Tell Me Straight (Keith Richards nos vocais)
Little T&A (Keith Richards nos vocais)
Before They Make Me Run (Keith Richards nos vocais)
Sympathy for the Devil
Honky Tonk Women
Midnight Rambler
Gimme Shelter
Paint it Black
Jumpin’ Jack Flash
Encore
Sweet Sounds of Heaven
(I Can’t Get No) Satisfaction