Por Daniel Agapito
Fotos: Andre Santos
Se você pedir para alguém de fora do universo do rock definir o que é um show de punk, a descrição deles não deve ser muito diferente do que foi o The Casualties no Hangar. Casa antiga, tradicionalíssima, mas com aquele aspecto bastante punk, bem bruto, rústico, duro, com manchas milenares de cerveja estampadas no chão de concreto. Em relação à banda em si, parecem personagens satíricos de filme americano, mas do melhor jeito possível, concentrando a essência do street punk de maneira divertida, com moicanos coloridos gigantescos e uma presença de palco enérgica, mas sem deixar de lado as causas centrais do street punk em si, a união da classe trabalhadora e uma rebelião contra as pretensões artísticas da primeira onda do punk.
Inspirados pelos grandes nomes do estilo, como GBH, Discharge e The Exploited (que inclusive esteve aqui no Brasil recentemente, em passagem conturbada e marcada pelos males súbitos do vocalista Wattie Buchan), os Casualties se tornaram uma das figuras emblemáticas do revival do gênero, ocorrido no final dos anos 90 e começo dos 2000, que trouxe também bandas como Rancid e Voice of a Generation. A apresentação daquele sábado seria a primeira em terras tupiniquins em mais de 10 anos, tendo aparecido em nosso país pela última vez em 2014, quando tocaram no finado Inferno Club. No dia anterior, estavam agendados para tocar em Curitiba, mas por conta das condições climáticas tiveram complicações com seu voo e cancelaram a apresentação – tanto a data de São Paulo quanto o encerramento da turnê (que já havia passado por El Salvador, Guatemala, Colômbia, Argentina e Uruguai) em Belo Horizonte seguiram de pé.
Os serviços estavam marcados para começar relativamente tarde, com as portas abrindo apenas às 21h, mas não seria à toa, pois os lendários canadenses do Comeback Kid já haviam apresentado seu hardcore melódico eletrizante na casa numa matinê que havia começado por volta das 17h. Chegando no local, que até pouco tempo era situado perto de um dos grandes focos da cracolândia, você via realmente todo tipo de fã, desde jovens portadores de cabelos coloridos exuberantes, com coletes pretos cheios de espinhos e patches, aos “tios” de cabelo branco que, mesmo assim, não deixaram de se animar por um segundo.
Meia hora após a abertura do Hangar, especialistas recomendaram o uso de máscara e pediram para evitar o consumo excessivo, já que quem assumia o palco para esquentar o público antes dos nova-iorquinos era o Agrotóxico, veterano da cena paulista de hardcore com mais de 30 anos de estrada. Após uma breve introdução instrumental, que já começou a mostrar os primeiros indícios de roda da noite, vieram logo com o pé na porta, tocando uma música que não só trouxe críticas sociais rápidas e diretas, mas também descreveu bem o sentimento do próprio show deles, Eles Não Vão Parar. Continuando com o clima lá em cima, vieram com Zona Ocupada, e a roda já dominava a frente do palco, chegando a transbordar no palco em si, com um fã de moicano vermelho aparecendo por lá para dar uns pulos. Havia pouco tempo para respirar entre uma música e outra, era pedrada atrás de pedrada. Chegaram a emendar As Ruas São Nossas, Neoliberalismo em Ataque Frontal, Números de Guerra e G7 em um medley só, para loucura de todos os presentes – nessa última até voaram algumas cervejas.
As faixas de peso continuaram vindo sem dó alguma com Lobotomia Geral e a pra lá de enérgica Fim do Mundo, com direito a um belo spray de água nos fãs proferido pelo baixista; quem disse que punk não toma banho? Passada Inimigo Real, o mesmo fã que já havia subido no palco no começo do show voltou para agradecer o público, dando destaque às mulheres e à nova geração do punk, mas foi breve, pois “não queria arrastar no show punk dos irmãos”. Assim que soaram as últimas notas de Pesadelo, o baixista veio anunciar Bom Dia Bagdá, dizendo algo infelizmente muito real: “Essa música a gente fez em 2003 e a situação geopolítica só piorou. Lá atrás era Bagdá, agora é Teerã, sem falar da Faixa de Gaza…” Para fechar, trouxeram uma dobradinha de Marcas da Revolução e A Beira do Caos, ambas tendo seus refrãos cantados a plenos pulmões por um grupo de devotos na beira do palco. No geral, fizeram um set bastante sólido, mostrando a profundidade do seu repertório, mas sendo breves o bastante, fazendo um set de exatamente 45 minutos.
Passados 15 minutos do horário originalmente marcado (atraso que complicou a vida de quem dependia do transporte público para voltar para casa), havia chegado a hora dos headliners, e do jeito que a galera estava se animando, não seria surpresa se realmente tivéssemos algumas ‘casualties’ (vítimas) deixadas na roda. Depois da longa passagem de som, as luzes da casa se apagaram, e de todas as músicas que poderiam soar, foram os sintetizadores icônicos de The Final Countdown que dominaram o sistema de PA por alguns segundos, antes de serem substituídos pela mais apropriada Blitzkrieg Bop, que viu a entrada dos integrantes do Casualties, David Rodriguez (vocal), Jake Kolatis (guitarra), Doug Wellmon (baixo) e Marc “Meggers” Eggers (bateria). Vale ressaltar que esta formação é bem diferente da última que havia vindo para cá, notavelmente não tendo a presença do vocalista (e único membro original remanescente à época) Jorge Herrera e do baixista Ricky Lopez, que saíram em 2017 e 2022 respectivamente.
Com membros originais ou não, uma coisa era óbvia: independentemente de qualquer mudança no line-up, a energia absurda era a mesma de sempre, demonstrada logo de cara com Under Attack, faixa-título do álbum de 2006, recebida calorosamente pelo público, que àquela altura já era bem maior do que durante a primeira banda. Antes de seguir com 1312, o “novo” (nem tanto assim, entrou em 2017) vocalista fez um pedido simples, atendido rapidamente por quem estava lá: “Vamos ver uma roda aí”. Cervejas voavam, pessoas giravam e Rodriguez estendia seu braço na hora do refrão, dando o microfone aos fãs, uma cena que lembrou fortemente “A Criação de Adão”, de Michelangelo, mas sem a finesse do italiano e com muito mais suor. Falando em fluidos de procedências duvidosas, Get off My Back começou com o público tomando mais um banho em forma de cuspida do vocalista, do mesmo jeito que já havia acontecido na banda anterior. Durante esta mesma música, um fã subiu no palco e simplesmente pegou o microfone de David e saiu cantando, algo comum nos shows do estilo. Para Written in Blood, a energia seguiu no mesmo nível, tendo direito até às famigeradas palminhas sincronizadas, contrastando um pouco com o palco, que já se assemelhava com uma pista de decolagem, visto o tanto de gente que voava.
Não havia passado tanto tempo assim, mas já era mais do que evidente que o público também estava dando um show à parte, demonstrando uma energia absurda e transformando o meio da pista em um liquidificador humano. Rodriguez viu essa energia e buscou uma conexão mais forte ainda, arriscando um português e soltando um “obrigado São Paulo, boa noite!” A faixa que veio na sequência já deu uma boa ideia de como estava a atmosfera no momento, Chaos Sound. Antes de apresentar a melódica Ashes of My Enemies, veio mais um pedido simples: “Quero ver todo mundo fazendo pogo nessa porra!” O público fez mais do que só pular, quase criaram abalos sísmicos, e tivemos até um fã jovem, que não devia passar dos 10 anos de idade, dando um stagedive – já dizia Wattie do Exploited, “punk’s not dead, I know!” Ele não seria o único fã a se destacar, pois logo no final da música, um homem adornando uma camiseta com a arte icônica do Pela Paz em Todo o Mundo, do Cólera, subiu no palco, e Rodriguez simplesmente enlouqueceu, puxando um coro de “Có-le-ra, Có-le-ra!” Para que ninguém se machucasse, o cantor pediu para que a galera de baixo se juntasse para o fã pular, já que se caísse, seria um Nightmare, convenientemente o nome da próxima música.
Enfim, havia chegado uma das faixas mais esperadas da noite, a grandiosa We Are All We Have, que realmente tem um clima de hino. Mantendo o aspecto de união em primeiro lugar, o frontman falou (em português) que éramos uma família e pediu (já em inglês) um time de pessoas pulando do palco – dito e feito, parecia ter mais gente no palco do que na pista. Não preciso nem dizer que o refrão foi ecoado a plenos pulmões, com um coro ensurdecedor de “uô-o-os” em sintonia. Agradecendo a todos, incluindo alguns membros da equipe, David se dirigiu ao guitarrista e foi brutalmente honesto: “Jake, não quero tocar essas merdas novas, odeio as porras das músicas que eu canto, vamos tocar alguma coisa antiga”. Com apoio do público, veio Resistance, cantada com o vocalista usando óculos verdes que pegou de um fã. O mesmo sentimento se repetiu, com o próprio dizendo que “este novo vocalista é muito pior que o antigo”, com a resposta do público sendo unânime quando Jake perguntou se queriam mais uma antiga. Seguiram com On the Front Line.
Fazendo mais uma dinâmica com quem estava presente, David pediu para que todos levantassem os dedos do meio, pois iam falar algo juntos. A maioria cumpriu o que foi pedido, menos uma fã (que estava do lado deste que vos escreve). Quando Rodriguez viu, soltou um “what the fuck” sincero, chegou nela, pegou sua mão e levantou o dedo. Vendo isso, um outro fã que estava em cima do palco veio buscá-la, puxou-a para cima e pulou no começo da faixa seguinte, Borders. Quando todos estavam prontos, gritaram “fuck Donald Trump” em uma só voz. Chamando mais um membro do público ao palco, o vocalista disse, em inglês: “Vamos tocar uma música nova, meu português é bom, mas nem tanto, então chamei Rafael para traduzir. Na introdução, vamos todos dizer ‘pigs on fire’ e no refrão eu vou dizer (em português), ‘fogo nos fascistas, fogo nos racistas’, e vocês vão responder ‘fogo neles’. OK?” O resultado funcionou tão bem que surpreendeu até os próprios músicos, com o vocalista provando que seu português estava longe de horrível soltando um “eita porra” do fundo da alma. “Obrigado, São Paulo! Não tocamos aqui há 11 anos, então esta próxima não chama Made in N.Y.C. hoje, se chama ‘Made in Brazil”, disse Jake.
Voltando ao que disse na introdução, deste show ser o show de punk que cabe em todos os estereótipos, quando você, caro leitor, pensa em punk de maneira bem simples, qual a primeira música que vem à sua cabeça? Posso assumir com certo grau de certeza que pelo menos boa parte de vocês pensou na classicíssima Blitzkrieg Bop, que já havia sido até tocada pelos alto-falantes antes de os nova-iorquinos assumirem o palco, e foi exatamente ela que deu sequência à apresentação. Como esperado, todo e qualquer ser vivo presente naquele estabelecimento soltou a voz durante os dois minutos da música, ecoando a banda em um volume impressionante. “Jake, cansei de tocar, essa turnê tem sido bem longa, o que fazemos?” Jake continuou: “Parece que estamos correndo”, quando David respondeu rapidamente: “Correndo pela noite!” (Running Through the Night). Mostrando que faltavam alguns parafusos em sua cabeça, Rodriguez simplesmente subiu no bumbo de Meggers e, sem pensar duas vezes, pulou para os braços da galera, movimento que seria repetido de maneira similar na faixa seguinte, Riot, quando ele desceu do palco e pediu para que fosse formado um “wall of death”, alegando que os paulistas eram o melhor público do ano.
“São Paulo, façam um pogo, caralho!” Ya Basta, uma das “merdas novas” com o novo vocalista em estúdio, seu sequência ao show, sendo cantada completamente em espanhol, algo que deve ter sido um grande estouro nos países vizinhos, mas que na capital paulista foi só mais uma música – não que a energia tenha descido, pelo contrário, só não foi um aumento notável. Provando que os punks têm sim coração, Punk Rock Love, hino da sofrência two-step, foi dedicada a Renata Gil Rodriguez, esposa do vocalista, que, pelo que deu para entender, estava presente naquela noite. Foi o momento para chegar perto daquela pessoa especial e sair na mão, pois, mesmo sendo uma música de amor, ainda era um show de punk, não tem essa. Sem mesmo ter dito qual seria a 19ª faixa da noite, Rodriguez achou uma camiseta vermelha estampada com a arte do Crucificados pelo Sistema no palco, e do mesmo jeito que fez com o Cólera no começo, puxou um coro com o nome do Ratos. Como o público aparentemente não tinha feito rodas o bastante, ele falou que a próxima seria a última do grupo, e que eles iriam embora na sequência. “Terminaram” sua performance ao som de My Blood, My Life, Always Forward, chegando a desligar as luzes da casa, se despedir e jogar baquetas no final, mas, surpreendendo absolutamente ninguém, as luzes voltaram e em questão de 2 minutos todos estavam no palco novamente.
Voltaram com Corazones Intoxicados, mais uma em espanhol, desta vez narrando uma bebedeira histórica: “Estamos embriagados, bêbados e perdidos, é melhor do que estar sofrendo na vida. Somos nós contra eles, assim sempre foi, nós contra eles, assim seguirá.” O dono da famigerada regata do Cólera apareceu novamente no palco, tirando para dar ao vocalista, que até demorou para entender o que estava acontecendo. Para fechar de verdade, desta vez, foi escolhida nada mais, nada menos, que Unknown Soldier, contando com uma energia absurda desde as primeiras notas. O que parecia ser seu mascote – um homem vestido com uniforme militar, capacete e máscara de caveira carregando uma grande bandeira com o logotipo da banda – apareceu atrás dos integrantes e logo depois o palco novamente se assemelhou a uma pista de decolagem. Terminando o penúltimo refrão, o vocalista simplesmente pulou no meio dos fãs (ainda segurando o microfone) e pediu para ser levado para perto de onde estava a mesa de merchandise, que também é onde fica o mezanino. Com ajuda de seus devotos, agarrou-se no guarda-corpos do camarote, se ajustou, ficou de pé e pulou de lá, mergulhando nos braços do povo. Impressionante: continuou vivo e voltou para o palco, terminando o show na maior naturalidade.
Foi nesse clima que encerrou-se uma noite que certamente entrará para a história de uma das casas mais tradicionais da cidade com dois shows enérgicos, duas aulas de punk, porém, de duas vertentes diferentes. O Casualties simplesmente trouxe aquele punk simples, reto e direto, divertido, com uma presença de palco e estética quase cartunescas, que verdadeiramente se conecta com os fãs, mas sem comprometer as mensagens fortes por trás de cada música. Era perceptível o amor que os fãs tinham pela banda, mesmo não sendo a formação “clássica” por trás dos shows anteriores e dos maiores hits de estúdio. Não foi qualquer apresentação normal, foi realmente um show, sem efeitos excessivos nos instrumentos, sem mega produção de palco e orçamento milionário. Na verdade, foi aquela coisa bem rústica.
Setlist Agrotóxico
Eles Não Vão Parar
Zona Ocupada
Epidemia
As Ruas São Nossas/Neoliberalismo em Ataque Frontal
Números de Guerra/G7
Lobotomia Geral
Fim do Mundo
Inimigo Real
Pesadelo
Bom dia Bagdá (A Guerra dos Bombardeados)
Marcas da Revolta
A Beira do Caos
Setlist The Casualties
Under Attack
1312
Get Off My Back
Written in Blood
Chaos Sound
Ashes of My Enemies
Nightmare
We Are All We Have
Resistance
On the Front Line
Borders
Pigs on Fire
Made in NYC
Blitzkrieg Bop (Ramones)
Running Through the Night
Riot
Ya Basta
Punk Rock Love
My Blood, My Life, Always Forward
Bis
Corazones Intoxicados
Unknown Soldier
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