Formado em 2011, em Sorocaba, São Paulo, o Warshipper entrou em seu décimo ano de vida como um dos melhores nomes do death metal nacional – ou blackened death, como queira –, e de maneira singular ao aplicar ao próprio trabalho, mesmo que involuntariamente, o termo ‘thinking man’s band’, cunhado no início dos anos 1990 para definir o Queensrÿche, banda que musicalmente nada tem a ver com o que fazem Renan Roveran (guitarra e vocal), Rafael Oliveira (guitarra), Rodolfo Nekathor (baixo) e Theo Queiroz (bateria).
Mas por quê? Porque o contexto lírico do quarteto é para fazer pensar, racionar, algo cada vez menos em voga nos dias atuais – e que pode incomodar o ouvinte não progressista. Ou mais sensível, digamos assim. As mensagens nas entrelinhas (menos) e diretas (mais) foram um dos pontos da entrevista com Renan e Rodolfo, mas as duas horas de bate-papo renderam especialmente, também, a história recente do Warshipper.
Uma história diretamente relacionada com a pandemia, que fez a banda, depois de dois discos lançar uma obra-prima do metal extremo brasileiro, “Barren…” (2020), e ter de ficar em casa, lidando com as consequências da passagem do tempo, que se mostrou produtiva. Começar pela coletânea “Past Essentials” (2022), que resgata os dois primeiros discos, “Worshippers of Doom” (2014) e “Black Sun” (2018), e ainda apresenta algumas preciosidades. Como a faixa “Atheist”, antes somente em formato digital.
Produtiva e movimentada, uma vez que a formação do Warshipper sofreu duas alterações. Rafael decidiu sair, e o multi-instrumentista Theo assumiu a segunda guitarra. Não muito depois, o baterista Roger Costa foi morar fora do país e deixou o banco vago, mas a nova mudança foi em família: Rafael voltou, e Theo assumiu as baquetas. O resultado de tudo isso? “Essential Morphine” (2023), um dos melhores álbuns de 2023. Introdução e contextualização feitas, Renan e Rodolfo têm a palavra para destrinchar os detalhes. Boa leitura, boa audição.
Vamos começar voltando um pouquinho no tempo. Como foi lançar um álbum como “Barren…” (2020), bem recebido por público e crítica, no meio da pandemia?
Renan Roveran: Ah, cara, eu sempre tento ver o copo meio cheio em qualquer situação. O momento da decisão sobre lançar ou não o disco foi o momento mais complicado para nós, que ficamos naquela de ‘espera?’, ‘segura o disco?’ ‘como vai ser?’. Terminamos de gravar em março de 2020, e a pandemia no Brasil começou efetivamente em abril, então optamos rapidamente por lançar, já que estava pronto, tinha videoclipe gravado. Até pensamos que poderia ser uma boa oportunidade por não ter muitos lançamentos naquela época, dependendo do tempo que a pandemia se estendesse. É horrível estar com um material pronto e ficar segurando o lançamento, é uma sensação péssima, então decidimos lançar. Voltando ao lance do copo meio cheio, não teríamos como fazer shows para promover o “Barren…” à época, não tínhamos sequer como ensaiar. Estávamos vendo estúdios na região de Sorocaba e Votorantim, mas acabamos juntando forças para reativar o antigo estúdio do Zoltar, em Votorantim, num prédio comercial da família do Rodolfo, para montar lá o nosso QG e voltar a ensaiar, então tivemos a oportunidade de ensaiar bastante. Não fizemos shows, só que ensaiamos bastante, então foi nessa onda que acabamos dedicando energia para compor o “Essential Morphine”. Tivemos tempo e tranquilidade para compor o novo álbum porque não sabíamos quando as coisas iriam acontecer. E nisso ainda passamos por todos os movimentos de formação, também, de 2021 para cá. Ou seja, deu tempo de acomodar tudo e aproveitar o melhor de todo mundo para compor o quarto disco da banda.
Rodolfo Nekathor: Foi muito angustiante decidir se lançaríamos ou não durante a pandemia por conta dos shows, mesmo, ainda mais porque vimos de uma latência de pensamento mais antigo, de lançar o disco e fazer shows, e acabamos esquecendo de que hoje em dia temos outras formas de alcançar o nosso público. Isso também foi uma virada de chave na banda, abrindo nossos olhos para investirmos numa coisa mais audiovisual, também, inclusive depois da pandemia, que ainda não acabou, só está mais sob controle. Mantivemos essa estratégia de divulgação com muitos videoclipes, incluindo ‘lyric videos’, e é como o Renan falou: ver o lado bom das coisas dentro de um contexto que foi superdifícil para todos nós.
Se vocês tivessem segurado o lançamento por dois anos, não estaríamos aqui para falar também sobre o “Essential Morphine”, mas há outro lado: “Barren…” sobreviveu ao teste do tempo e continua sendo um disco atual. Ou seja, ainda teria dado certo se tivesse sido lançado hoje, porque se tornou atemporal.
Rodolfo: Eu entendo que realmente não é datado, porém tem mais um lado: por mais que acabássemos segurando e o disco conseguisse chegar à dimensão que chegou, nós ficaríamos frustrados como banda, e isso seria um freio na nossa criatividade. O exemplo disso é que acabamos de lançar o “Essential Morphine” e já estamos compondo um novo álbum, ou seja, não conseguimos ficar muito tempo parado. Temos de manter as composições sempre recorrente e vivas, então segurar o “Barren…” talvez tivesse freasse o lampejo criativo da banda, o que seria um problema.
Renan: Querendo ou não, tivemos uma resposta muito legal com o “Barren…”, mesmo em meio à pandemia, e isso serviu de combustível para continuarmos produzindo, compondo, investindo, montando o estúdio, melhorando os equipamentos, fazendo experiências de gravação, tocando sons do Bywar e do Zoltar. Uma coisa muito importante para as bandas do underground é buscar formas de manter todo mundo engajado e querendo fazer de fato acontecer, e eu vi que durante a pandemia algumas bandas acabaram esfriando, infelizmente, e aí os integrantes se distanciaram. Algumas bandas acabaram, outras estão voltando agora, e houve uma quantidade grande que se manteve bastante ativa, mas existe uma camada muito grande, principalmente no underground, de bandas que se desfizeram, afinal, qual era o propósito, né? Ter banda e não se encontrar, não estar junto, não poder ensaiar, não fazer show? Então, em meio a tudo o que promovemos durante a pandemia, a resposta ao “Barren…” serviu de combustível para nós. É difícil pensar em como seria se tivéssemos segurado o lançamento, e talvez tivesse sido negativo pela ótica que o Rodolfo trouxe, de não ter motivação para continuar produzindo e nos empenharmos cada vez mais para fazer coisas diferentes e lançar mais um trabalho.
Isso de ‘coisas diferentes’ é perceptível no “Essential Morphine”, mas antes gostaria de falar um pouco sobre o “Past Essentials”. Em que ponto ele se encaixa no planejamento que vocês fizeram no período de pandemia? Foi para trazer o passado e a evolução do Warshipper para o público que descobriu a banda com o “Barren…”?
Renan: Houve uma série de fatores que nos motivaram a pensar numa possibilidade de relançamento. Primeiro porque o “Worshipper of Doom” (2014) e o “Black Sun” (2018) ficaram fora de catálogo, e tínhamos fechado uma parceria com a (loja e selo) Heavy Metal Rock, do Wilton (Marchini Christian), que funcionou superbem. E foi interessante, porque logo que terminamos o “Barren…” e também pouco tempo depois do lançamento, o Wilton falou: ‘E aí, vocês vão fazer outro disco?’, e aí percebi que ele tinha interesse na banda. Rolou uma química legal, e para nós foi uma sacada muito importante. Estávamos compondo músicas novas, e mais para frente vamos comentar sobre a transição do “Essential Morphine” de EP para um álbum cheio, e numa situação de não ter mais os dois primeiros discos, e tinha gente os procurando, principalmente porque expandimos um pouco mais a visibilidade da banda com o resultado do “Barren…”. Assim, depois de uma conversa com o Eliton (Tomasi) e a Susi (dos Santos), do Som do Darma e que trabalham conosco, nós pensamos numa estratégia. Inicialmente, a ideia era fazer o relançamento de cada disco, incluindo covers do Bywar e do Zoltar. Por exemplo, “The Twin of Icon”, do Bywar, seria a faixa bônus no relançamento do “Worshipper of Doom”, e “The Night of the Unholy Archangel”, do Zoltar, seria bônus no “Black Sun”. Se não me engano, foi o Eliton quem disse ‘cara, e se fizéssemos um lançamento só, um CD duplo?’, e nós pensamos que seria muito legal. Foi aí que começou a conversa toda com o Wilton, que comprou a ideia. Seguramos a ideia de gravar as músicas do Bywar e o Zoltar, porque usaríamos outras opções como bônus e, então, prepararíamos um material que fosse visualmente bacana para o produto físico. Acabou rolando e foi bem legal, porque uma coisa é alguém ter conhecido a banda através do “Barren…” e querer ter contato com os primeiros álbuns isoladamente, e outra coisa é ter esse contato numa edição superluxuosa, com pôster e várias fotos contando parte da história da banda. Foi uma sacada bem legal, mesmo.
A versão de “Respect!” apenas com os seus vocais, então, é parte dessa entrega de algo a mais para quem já tinha as edições separadas dos dois primeiros discos…
Renan: Sim! Perfeito!
Rodolfo: E acabou gerando vários efeitos colaterais que não tínhamos planejado. Além da divulgação, tivemos um alcance interessante num público que não tinha tido acesso ao Warshipper até então, e esse foi um feedback importante, principalmente falando bem mesmo que a banda tenha mudado, e é uma característica nossa nunca soar igual nos discos, porque o material mais antigo agradou ao pessoal mais novo, aquele que nos conheceu agora. Essa história se mantém com a gente, e vira e mexe revisitamos aquela forma de compor.
Renan: Tivemos vários retornos positivos com o “Past Essentials”, como, por exemplo, a resenha na própria ROADIE CREW. Isso nos levou a ter um material novamente resenhado na revista, e por você, Daniel, inclusive, além de outras resenhas, então o disco se provou uma sacada legal. E saiu num momento em que ainda não havíamos voltado a tocar ao vivo, então foi mais uma forma de termos algum lançamento para movimentar e trazer um pouco mais de visibilidade ao nosso trabalho.
Você falou de shows, e o Warshipper voltou aos palcos antes mesmo do lançamento de “Essential Morphine”. Apesar de o videoclipe de “Morphine” já estar disponível, foi uma turnê para mostrar o “Barren…”. Seria o fechamento de um ciclo?
Rodolfo: Eu não penso como o Renan, mas acredito que seria mais uma turnê de dobradinha dos dois discos, mesmo. Caso contrário, vamos ter de começar a fazer mais turnês ainda, porque logo vai ter outro disco, aí vai começar a acumular turnê específica… Talvez isso dê problema (risos). O setlist está recheado de coisas do “Barren…”, tem os sons novos do “Essential Morphine”, há material do “Worshipper of Doom”, e tocamos mais ou menos músicas dependendo do tempo que temos de palco, mas é um repertório bem diversificado para abranger os discos que foram lançados.
Renan: Foi importante fazer shows antes de lançarmos o novo disco, e fizemos shows de julho de 2022 para cá, ou seja, tem menos de um ano que retornamos aos palcos. Foram shows realmente bons, e creio que talvez não entendemos como fechar o ciclo, mas precisávamos ter a experiência de shows entregando mais músicas do “Barren…”. Hoje, com o setlist diversificado que o Rodolfo explicou, temos muitas músicas do “Barren…”, e é óbvio que focamos mais nele e no “Essential Morphine”, sendo que o legal é que as pessoas já pedem alguma músicas que são do “Barren…”. A “Respect!” é uma música que vamos carregar sempre que possível, independentemente de quantos discos lançarmos, mas agora o foco é divulgar o material novo trazendo essas músicas do “Barren…”, também, então acaba naturalmente sendo uma dobradinha. Uma coisa sobre a qual conversamos bastante nas apresentações ao vivo é sobre buscar cada vez mais, dentro das possibilidades do contexto underground, ter um espaço maior de palco. Nos eventos em que temos menos de uma hora para tocar, acaba que temos de selecionar muito o setlist, e uma hora significa toda a logística de montar e desmontar o palco, também. Com isso, sobram pouco mais de 40 minutos de música tocada, e ainda rola a parte de interação com o público, então isso se torna um problema quando se tem mais de quatro CDs. Isso começa a limitar a quantidade de música que podemos colocar no repertório. E não é segredo para quem acompanha o Warshipper que as nossas músicas não são curtas, isso não ajuda, né? (risos) Temos uma tendência a ter tracklists mais longos, então isso é algo que vimos conversando. Tivemos essa experiência nos shows mais recentes, de negociar bem a quantidade de tempo disponível à banda para podermos representar isso ao vivo, o que é muito legal. Devido à coesão da banda, há faixas dos primeiros discos que hoje soam bem mais legais ao vivo do que quando as gravamos.
Mas daqui a pouco vocês vão ter que começar a fazer medley, que é como colocar doce na boca da criança e tirar (risos)…
Renan: Eu fico muito puto quando ouço medley das bandas que gosto! É tipo ‘agora vai rolar aquele som! Não, não é mais. Agora é aquela outra! Não, também não é mais…’ (risos).
Rodolfo: É quase um coito interrompido! (gargalhadas)
Vamos começar a falar, em duas etapas, sobre a transição para o “Essential Morphine”, e a primeira é a ideia do EP, que acabou virando um disco cheio e incluiu os covers do Bywar e do Zoltar que seriam um bônus no relançamento dos dois primeiros CDs…
Renan: Desde pensarmos em fazer um cover do Bywar e outro do Zoltar para saírem como bônus no relançamento até mudar a estratégia para compor mais uma música e lançar um EP… Essa transição toda é que uma música nova acabou virando quatro (risos), e aí tivemos de transformar o EP num álbum. Isso demonstra muito bem como é o funcionamento do Warshipper: nós gostamos de compor, cara! Nós realmente gostamos muito de compor! Sempre estamos com ideias novas e coisas novas rolando, e isso nos motiva, é o funcionamento que desenvolvemos na banda e que faz com que sempre tenhamos a sensação de estar alcançando e experimentando coisas novas. Pensamos em gravar as duas covers e lançá-las como bônus, isso cresceu para a ideia de um EP e evoluiu para um disco completo, e a transição é também de formação, com a chegada do Theo e a saída do Rafael em 2021. Quando o Theo chegou, já estávamos com as covers praticamente prontas, e uma das novas músicas, “Migrating Through Personality Spectra”, já estava sendo tocada com o Rafael. A vinda do Theo somou de diversas formas, até pelo perfil dele, e o fato de ele ser multi-instrumentista serviu como trunfo não somente para nós da banda. Como temos a facilidade de ter um funcionamento de experimentalismo, nós rapidamente pensamos e percebemos que o cara se sente motivado ao demonstrar e explorar todos os talentos que ele tem. Assim, logo de cara nós demos ao Theo a oportunidade de entrar como guitarrista, participando de arranjos e, também, revendo arranjos que já estavam prontos, e foi aí que rolou um ‘vamos encaixar um arranjo de saxofone?’, porque descobrimos no meio do processo que é um dos instrumentos que ele toca. Além disso, falamos ‘vamos compor uma música do zero com o Theo?, que era para ele se sentir parte integrante de verdade, e disso veio a “Morphine”, na qual o Theo toca teclado, baixo fretless, violão acústico e violão de 12 cordas. Ou seja, foram portas abertas para ele participar ativamente, mesmo, e quanto mais ideia legais, melhor para todos nós. Não teve aquela de limitar espaço só porque ele chegou agora. Pelo contrário. Estava todo mundo aberto, e o Theo fez parte dessa transição, sim, de o Warshipper construir um trabalho com o que já estava pronto até a música que compusemos com ele.
Rodolfo: Acredito que o “Essential Morphine” ainda é um disco de transição. Não tanto quanto o “Barren…”, mas eu o encaro assim porque estávamos em processo de transição na banda, com a saída de um integrante, a entrada de outro, a retomada das redes sociais, a saída da pandemia… Então, creio que o próximo disco será algo mais objetivo do que é a formação do Warshipper agora. Nos últimos meses, temos ensaiado bastante para tocar ao vivo, sempre três vezes por semana, refinando e ajustando muitos detalhes da execução, e assim temos conseguido tocar de uma forma muito mais segura. Isso reflete numa composição mais refinada, também.
Renan: Está vendo, Daniel? Já estamos falando do próximo disco! Isso mostra muito como é o nosso esquema, como estamos sempre inquietos.
E essa inquietude fica óbvia para quem escutar os quatro discos em ordem cronológica, sendo que do “Barren…” para o “Essential Morphine” há um salto enorme. Mas isso não quer dizer que vocês se cansaram do que foi feito, certo?
Renan: Não! De forma alguma! É porque queremos sempre fazer mais coisas, realmente, e tem outra perspectiva com relação a essa percepção: começamos a compor o “Essential Morphine” em 2021 e terminamos de gravar a primeira parte dele no mesmo ano, ou seja, são dois anos desde o início do processo, então, de lá para cá, já deu tempo da compor e gravar mais. Tem todo o timing entre essas coisas acontecerem e de o álbum ser lançado, então essas músicas não são mais novidade para nós, mas isso não significa que cansamos delas. Significa apenas que temos de continuar compondo, e nisso continuamos experimentando. Estamos pensando em mudar o esquema de afinação, por exemplo. Isso é motivador, mas não significa que nos desmotivamos com que já foi feito. É o contrário. Hoje, na hora de montar um setlist, considerando que já temos quatro discos, colocaríamos um monte de música de todos os discos se pudéssemos. Há material do “Worshippers of Doom”… Bom, estamos com um projeto, ainda embrionário, que talvez nos exija revisitar bastante material do passado, músicas que não tocamos há anos, e que eu adoraria tocar, só que agora elas não cabem no setlist, por isso não as priorizamos nos ensaios. Priorizamos as coisas novas.
Ou seja, o passado é um catalisador, um motivador para as coisas novas. Passado e presente, na verdade.
Renan: Um passado essencial! (risos) (N.R.: Roveran brinca com o título da coletânea, “Past Essentials”).
Rodolfo: A impressão que tenho é que, se fôssemos traduzir numa questão mais concreta, o Warshipper está ampliando um espectro de possibilidades. Assim como o espectro da luz, que tem um foco apenas, mas que se divide em várias cores e frequências. Não vamos deixar de fazer o que fazíamos antes, porque continuamos gostando de tocar som extremo, de fazer death metal, só que estamos aumentando o leque de possibilidades. Eu e o Renan temos em comum essa ânsia de compor e trazer coisas novas, o que acaba virando uma competição saudável na banda. Então, não vejo como cansaço, mas como um passado que se mantém vivo e nos influenciando a compor sem nos limitarmos a um formato único.
E perguntei porque entendo a ansiedade e o desejo de compor novo material nesta nova fase, e falamos agora da segunda etapa: o Rafael voltou, o Roger viajou, o Theo assumiu a bateria… Ou seja, vocês ampliaram o que fizeram com um cara na banda que cobra escanteio e corre para área pra cabecear e marcar o gol, que é o Theo (risos). Como está a banda com essa formação específica?
Rodolfo: Recentemente, fizemos uma experiência, ideia do Renan, que foi muito gostosa: num fim de semana, alugamos uma chácara numa cidade próxima de Sorocaba que é no meio do nada. Só nós da banda e respectivas namoradas e esposas, e fomos ensaiar no local. Ficamos dois dias fechados, “internados” mesmo lá dentro, fazendo churrasco e tocando para caralho. Aí surgiu um som que já estávamos meio que finalizando, porque as oportunidades vão aparecendo, e essa mudança de background nos ajudou a olhar as coisas de maneira diferente, então novas composições já estão rolando, há outras coisas na agulha para fazermos. Estamos testando afinações diferentes, e está bem interessante.
Renan: Eu estou bastante ansioso para começarmos efetivamente o novo ciclo de composições. Na verdade, como o Rodolfo falou, nós já iniciamos, mas é poder parar e mergulhar de cabeça nas composições novas com essa formação em algum momento, que não será agora porque temos de focar nos shows Depois que mudamos a estratégia de EP para álbum cheio, as mudanças na banda também aconteceram durante a transição, justamente o que você comentou. O Roger saiu, e o Rafael se aproximou novamente de nós depois de um ano fora do Warshipper. Brincamos que foram férias, mas ele quis voltar no momento em que sabíamos que o Roger iria sair, e há o fato de que sentíamos falta do Rafael. Especialmente eu, porque tenho uma relação de entrosamento de guitarra muito grande com ele, já que tocamos juntos desde moleques, sempre quisemos ter uma banda, e o Warshipper demorou muito para acontecer: eu tocava no Bywar, e ele tinha outras bandas, também. Quando o Rafael voltou, nós já havíamos decidido que o “Essential Morphine” seria um álbum, sendo que as outras três músicas que completariam as sete dos disco estavam em andamento com o Roger, então o Theo fez a transição da guitarra para a bateria, dando ao Rafael a oportunidade de retornar tocando guitarra naquelas três músicas novas. Como sempre tivemos um entrosamento muito forte, foi tudo muito fácil. A canção que tivemos como experiência de compor com essa formação é a faixa bônus, “Guilt Trip”, que não tem nada a ver com o que fizemos até hoje! (risos) Ela começou de forma totalmente inusitada, porque estávamos indo ensaiar e falamos ‘vamos levar num violão hoje? Nada de guitarra’, e eu nem sabia o que iríamos fazer com um violão (risos). Começamos por um caminho que não se mostrou correto, aí trocamos a afinação e, quando vimos, tínhamos, nós quatro juntos, uma música pronta. A fluidez foi tanta que me fez perceber que temos uma facilidade que potencializa a nossa capacidade criativa, porque hoje estamos todos ativos no processo de composição. No passado, e bem no passado, isso ficava a cargo de duas pessoas: eu e o Rodolfo. Atualmente, todo mundo participa. Quando experimentamos fazer isso, no período em que estávamos no rancho, veio outra música maluca, que ficará para o próximo disco. “Guilt Trip” é o primeiro resultado dessa formação, e foi superinteressante.
O mais interessante em “Guilt Trip” é que, apesar de ser completamente diferente num disco que já é distinto em relação aos outros álbuns, ela não necessariamente aponta um caminho que o Warshipper vai seguir…
Renan: É verdade. Ela traz algumas pitadas de elementos que vimos experimentando não musicalmente, mas realmente fica uma incógnita, né? Não fizemos isso de forma consciente, só que, depois de a nova formação se estabelecer, de termos o disco pronto e de curtimos a obra pronta, eu senti muito isso. Deixou uma puta de uma interrogação na cabeça de todo mundo, isso se você for seguir por a lógica sequência de lançamento, disco e tracklist.
Aliás, imagino que o próximo disco não deve sair antes do primeiro semestre de 2024, mas vocês vão conseguir se segurar e não tocar nos shows aquela “música maluca”?
Renan: Pois é… (risos)
Rodolfo: Boa pergunta!
Renan: Nós já passamos por essa situação no passado. Por exemplo, nós já tocávamos algumas músicas do “Black Sun” na turnê do “Worshippers of Doom”, só que a banda só tinha um disco lançado, então era interessante para nós ter mais músicas no repertório. Antes de o “Barren…” sair, tocamos a primeira faixa (N.R.: “Barren Black”) na turnê pela Europa, também porque queríamos gravar imagens para o videoclipe, e quando começamos o que seria a turnê do “Barren…”, antes do lançamento do “Essential Morphine”, fizemos o mesmo exercício com a “Religious Metastasis”. Por causa do videoclipe, a tocamos este ano num show no Fabrique. Hoje, como temos um repertório grande, acredito que dá para mantermos um pouco de surpresa, porém nada nos impede de usar uma música da nova fase de composições, lançando como single para eventualmente a tocarmos ao vivo. Foi o que fizemos com “Morphine”, mas talvez não façamos com essa música do rancho, que não tem nem nome ainda. Apenas a chamamos de “Ranch Song” (risos).
Minha questão não era exatamente por uma questão estratégica ao lançar um single, e sim pelo fato de vocês serem inquietos e talvez não aguentarem segurar a novidade. E nem tanto para mostrar aos fãs, mais por uma satisfação artística da banda.
Rodolfo: Ah, mas eu lhe digo que a insatisfação é sempre plena (risos). Mesmo quando fazemos um show com repertório longo, sempre fica aquela vontade de ‘quero mais’, de ter mais duas ou três músicas. Quando a turnê que fizemos na Europa acabou, só conseguíamos pensar ‘pô, podia ter mais uns dez shows’, então acredito que não chega a ser uma compulsão de apresentar algo novo. É um comportamento muito inclinado à não saciação, então acabamos nos acostumando a curtir o momento em que estamos tocando as músicas e a lidar com a frustração de não conseguir tocar tudo. Claro, quando o som é novo, o momento é sempre mais brilhante, fica mais agradável, reforçador e interessante, por isso temos essa inclinação por tocar algo novo. A própria “Religious Metastasis”, por exemplo, antes de a tocarmos ao vivo. Quando estamos no ensaio, às vezes fazemos o exercício de é cada um escolher uma canção, e era sempre “Religious Metastasis” quando chegava a minha vez. E pode nem ser algo tão novo, mas que seja gostoso de tocar. Temos essa insaciedade, mesmo.
Curiosamente, para quem ouviu “Religious Metastasis” nos shows, antes de “Essential Morphine” ser lançado, ela pode ser uma pegadinha, porque é a música mais, digamos, normal do novo disco. Isso influenciou a inclusão dela no setlist?
Rodolfo: Não sei… Creio que foi porque conseguimos ensaiar mais a “Religious Metastasis” antes de voltarmos a fazer shows, então ela acabou sendo escolhida naturalmente. Pelo menos que eu me lembre, não combinamos nada.
Renan: Temos uma piada interna, que é quando uma música soa, de alguma forma, potencialmente mais comercial, e não que vejamos isso como um problema, mas é que o termo “comercial” há tempos tem conotação pejorativa entre os headbangers… Bom, nós sempre brincamos que a canção mais acessível é a “Anna Júlia” do disco (risos), e foi o caso da “Religious Metastasis” (N.R.: Roveran faz uma alusão ao, hum, clássico do Los Hermanos). Como o Rodolfo disse, essa foi uma música que ensaiamos para caramba, então ela estava 100% pronta para ser tocada ao vivo. Além disso, é uma canção bastante confortável para tocar ao vivo, mas acredito que o fato de ela ser meio “Anna Júlia” contribuiu, também. Não somente porque a escolhemos para ser videoclipe, mas também por ser a primeira faixa do “Essential Morphine”.
E a situação muda de figura ao se escutar todo disco, porque a banda abre a paleta de cores. “Migrating Through Personality Spectra” surge como uma montanha-russa sonora, e depois ainda vem “Perfect Pattern Watcher”. Ou seja, é uma baita mudança sonora.
Renan: Lembra quando eu comentei que a ideia inicial era fazer cover do Zoltar e do Bywar, e daí mudamos a estratégia e compusemos mais uma música? Ela é, na verdade, a primeira faixa inédita que compusemos para o “Essential Morphine”, exatamente a “Migrating Through Personality Spectra”, que começamos a compor logo depois do “Barren…”. Quando comecei a montar os riffs e a mostrá-los para os caras, lembrando que foi com o Roger e o Rafael ainda na banda, fomos inserindo novos elementos, a estruturamos e fizemos uma pré-gravação ainda com aquela formação. Quando o Theo entrou, era uma música pronta, tanto que não tem elementos do solo dele, por exemplo, porque ele entrou como guitarrista. Foi aí que eu falei sobre colocar um elemento diferente e trazer o saxofone, e como ela foi feita antes da “Religious Metastasis”, cujos riffs eu escrevi logo que voltamos da turnê na Europa, tem um fato muito legal e muito importante que, inclusive, é um marco para nós: quando o Theo entrou no Warshipper, fizemos os quatro, Theo, Roger, Rodolfo e eu, uma reunião e escrevemos a letra dela nesse encontro. Então, essa foi a primeira vez em que todos os integrantes da banda participaram na hora de escrever uma letra, porque geralmente elas são responsabilidade minha e do Rodolfo, e somente em algumas ocasiões pontuais no passado eu escrevi com o Roger e o Rafael. Para mim, o contexto lírico da “Migrating Through Personality Spectra” se tornou tão importante quanto o instrumental. Eu dou extrema importância ao conteúdo lírico, e escrevemos todos juntos a letra dela, sendo que eu fiquei basicamente como mediador, absorvendo as ideias dos caras. O Theo ainda estava um pouco tímido, porque havia acabado de chegar, mas contribuiu bastante, enquanto Rodolfo e Roger trouxeram muitos elementos. Fomos escrevendo e desenhando a linha de voz, todo mundo junto numa videochamada. Foi a primeira vez que compus algo dessa forma, e foi uma experiência muito legal!
Rodolfo: Uma coisa legal é que cada música, enquanto estava sendo composta, foi sendo refinada coletivamente pela banda. Como estávamos todos em casa, por causa da pandemia, tivemos muito tempo para poder estudar mais, o que ajudou bastante. Por exemplo, o baixo está mais bem trabalhado e audível, tem vários arranjos diferentes, com partes de ‘slapping’, contratempo, ‘tapping’, várias técnicas. Até então, nas composições anteriores ,o baixo ficava mais escondido, e agora ficou bem legal. A mixagem e a masterização do “Essential Morphine” dão uma cara bem legal para o instrumento, e isso também foi um elemento novo que pudemos trazer.
A importância das letras fica perceptível até mesmo pela maneira como o tracklist de “Barren…” foi organizado, com cada música começando com uma das letras do título do disco, e ainda tem o conceito de “Atheist”, que ficou fora do CD. E no “Essential Morphine” tem um trecho de “Pale Blue Dot”, de Carl Sagan (N.R.: livro lançado em 1994)… É tudo bem amarrado.
Renan: E antes de falar sobre o aspecto lírico do “Essential Morphine”, gostaria de voltar um pouquinho no “Barren…”, que tem uma visão muito nossa em relação a muitas coisas que acontecem no mundo e que fazem parte da nossa sociedade, mas talvez não estejamos preparados para ter a sensibilidade de percebê-las de imediato. Porém, a partir do momento em que você passa a perceber, seja por formação, convívio ou maturidade, não tem como não se indignar. Eram coisas muito latentes, que estavam ali o tempo todo, só que a partir do momento em que elas começam a ficar mais na cara de todos, e cada situação em seu tempo, o nível de indignação vai se mantendo cada vez maior e presente, e fazia anos que queríamos expressar isso com palavras através da nossa principal forma de expressão, que é a música. Então, éramos nós olhando para a sociedade e trazendo essa indignação, expressando essa indignação com agressividade. O “Essential Morphine” não é uma obra conceitual, mas é um disco que traz um olhar para dentro quase que majoritariamente em seu conteúdo lírico. A “Migrating Through Personality Spectra”, que nós compusemos juntos, tinha presente a limitação do encontro físico. O Theo havia chegado, mas nem podíamos ensaiar… Aliás, ele estava com Covid quando entrou no Warshipper, ou seja, estava em isolamento, e isso desencadeou uma porrada de coisas, tanto na banda quanto em várias pessoas com quem convivemos. Vários problemas relativos aos impactos emocional e financeiro, e tinha gente morrendo o tempo todo, então nós buscamos o que essas condições nos fizeram sentir e trouxemos de dentro tudo que sentíamos em comum. Foram coisas em que nossos sentimentos se complementavam, e transformamos esses sentimentos em música, então basicamente foi um olhar para dentro, o oposto ao “Barren…”, embora esse olhar interno acabe naturalmente levando a uma percepção externa, que é mais ou menos falamos nas letras de “Magnificent Insignificance” e “Perfect Pattern Watcher”. Uma questão de que, apesar da mágoa com a espécie humana e de todas as observações que possamos ter, nós somos uma existência complexa: insignificante no contexto cósmico, porém muito grandiosa no contexto individual. É importante valorizar o conteúdo individual, afinal de contas, sou eu nesta vida e neste momento, e pronto. Não tem pós-vida, então não tenho preocupação com o que vai acontecer depois que eu morrer, porque sou ateu, e sempre deixo isso claro nas minhas conversas, e assim me preocupo com o que estou fazendo aqui e agora. Preocupe-me com o que posso fazer de bom para mim, para que reflita positivamente em todos os que estão ao meu redor. No meu caso, a música é a minha principal ferramenta para expressar esse tipo de sentimento e essas percepções.
Há dois pontos que preciso trazer agora para a conversa, começando com a letra como “Respect!”, na qual são abordados assuntos cada vez mais em evidência: o respeito ou o desrespeito à mulher e o aumento de casos de feminicídio, e a música ainda tem a participação da Fernanda Lira (N.R.: Crypta, ex-Nervosa). O outro ponto tem a ver com a preocupação em externar as questões do ser humano, porque há uma dualidade interessante. Recentemente, duas notícias chamaram a minha atenção: a de alguns grupos conservadores nos Estados Unidos querendo banir determinados livros de escolas públicas e particulares; e a de quatro crianças que ficaram perdidas na Amazônia colombiana por 40 dias, depois de um acidente aéreo, e foram resgatadas com vida. Os comentários na primeira matéria eram na linha ‘Deus, pátria e família’, ‘tem que proibir mesmo’ e ‘é pornografia’; e na segunda, ‘é a mão de Deus’ e ‘foi um milagre!’. Ou seja, vivemos tempos complicados para externar uma preocupação com o comportamento humano, porque estamos todos sendo envolvidos num esquema ‘tudo é divino’ porque há um ser superior que decide tudo e qualquer coisa por nós, não há livre arbítrio. Dito isso, a letra de “Atheist” mostra que o Warshipper não é uma banda que fica em cima do muro para agradar a gregos e troianos ou perder gregos e troianos, certo?
Renan: É muito louco isso que você trouxe, porque são assuntos de que gosto para caramba. Preciso me segurar um pouco, porque tenho críticas severas ao contexto religioso de diversas formas, mas como isso está presente na sociedade e representa a maioria das pessoas, vamos lá: somos tão importantes a ponto de uma divindade qualquer ficar olhando por nós, só que ao mesmo nos reduzimos à incapacidade de ter responsabilidade pelos nossos sucessos. Se deu certo, é ‘graças a Deus’; se deu errado, ‘é porque Deus não quis’. Ou seja, o ser humano está reduzindo a nada o método que usa, e a ótica que gostamos de trazer é completamente o inverso: nós não somos nada, somos uma ameba no contexto cósmico, porque é a mesma coisa: estamos aqui para nos reproduzir e perpetuar a nossa espécie. São impulsos de sobrevivência que qualquer outro organismo vivo tem, com representações e formas diferentes de comportamento, mas a partir do momento em que eu me sinto responsável pelo que faço, em vez de esperar pela intervenção de alguém ou alguma coisa, eu respondo por mim, porque não tem Deus, deusa, deuses, entidade ou quem quer que seja fazendo isso por mim. Por exemplo, é pensar ‘foi a minha dedicação que me fez ter reconhecimento por aquilo que construí com a banda’, porque não foi mesmo alguém que está observando meus atos e julgando se eu mereço ou não uma recompensa. Por essa ótica individual, você começa a se achar foda e fala ‘cara, eu sou responsável por isso aqui tanto quanto sou responsável se fizer merda e, também, responsável por não fazer merda’. É muito louca essa dualidade de pensamento ‘não sou nada, porque Deus é quem representa tudo. Ele está muito preocupado olhando para mim dentre 8 bilhões de pessoas nesse planetinha que é nada na nossa galáxia, está olhando por mim e separando as maçãs podres das maçãs boas para ver quem está cumprindo com as oferendas ou com o comportamento que agrada’ versus ‘eu estou fazendo algo por mim e me desenvolvendo porque sei que uma hora vou acabar e, assim, me reciclar com a poeira cósmica. Faço o que eu tenho de fazer aqui; e sou responsável por isso’.
Eu sempre procuro resumir o que você falou com dois exemplos do dia a dia. Um cara atravessa a rua e é atropelado, fica sofrendo um tempo internado no hospital e morre, aí alguém chega e fala ‘foi a vontade de Deus’. Que Deus é esse que a pessoa venera? Um que faz uma pessoa ser atropelada e sofrer até morrer, deixando familiares de luto? E há os jogadores de futebol que se ajoelham e olham para o céu depois de um gol, ou que ficam ajoelhados olhando para o céu durante cobrança de pênaltis. Isso acontece em qualquer partida, da Série A do Brasileirão a torneios de várzea. Meu amigo, você acha mesmo que Deus, considerando a existência, está assistindo a um Pífanos de Caruaru x Tabajara, por exemplo? (risos)
Renan: Exato! E vamos pegar o exemplo das crianças que ficaram perdidas na Amazônia colombiana: ‘Deus é muito bom. Deus fez as pessoas encontrarem as crianças, e elas estão bem’, mas por que Ele as deixou passar 40 dias na selva, perdidas? Aí é ‘provação’, ‘escreve certo por linhas tortas’ ou seja lá mais o que for, porém, a verdade é que tudo o que não se consegue explicar com uma fórmula é contado através de historinha. Eu não acredito em Papai Noel.
Rodolfo: Eu sempre tento trazer nas conversas na banda e nas informais, também, uma visão mais científica da vida, que tem mais a ver com a minha formação. Sou psicólogo, então procuro trazer a ciência para pensá-la dentro de como eu me comporto. Pensar a arte, pensar as relações humanas, e vejo o quanto a nossa sociedade ainda traz a latência de uma forma de funcionar e de pensar a vida que é uma forma que se isenta da responsabilidade, dizendo ‘Deus faz tudo por mim’, ‘Deus é responsável pelas cagadas que faço’ ou ‘foi o Diabo que me fez fazer isso’. A partir do momento em que a pessoa para, pensa e assume a responsabilidade sobre os seus comportamentos, a vida toma outra dimensão, começa a ficar mais clara e menos alienante.
Depois desse longo resumo do contexto lírico (risos), vamos voltar ao “Essential Morphine” Para vocês dois, que são o denominador comum em todas as mudanças de formação, como foi trabalhar toda a loucura dos dois últimos anos e transformá-la música com uma cara nova, que é o Theo?
Renan: Foi fantástico! A versatilidade do Theo, e não somente isso, mas também o fato de ele gostar de participar de tudo que estamos fazendo na banda, contribuiu inclusive para que o Rafael percebesse no seu retorno à banda que estamos numa ‘vibe’ legal. A banda se sente confortável ao funcionar coletivamente, e isso potencializa a criatividade de todo mundo. O que eu mais gosto de fazer é compor, e se pegar minha guitarra agora vou compor uma música ou mais. Tenho essa facilidade porque é algo que sempre treinei bastante. Na maior parte do tempo em que estou com o instrumento, quando estou sozinho, eu fico compondo. Não fico estudando técnicas e não sou um cara que toca música de outras bandas. O Theo, que é baterista de origem, dava alguma contribuição às bandas em que tocou antes, mas não tão ativamente, então o Warshipper ganhou um novo integrante que também gosta de compor e tinha uma vontade acumulada de trazer ideias, de participar ativamente. O Theo entrou numa banda que já tem algum caminho trilhado e que o recebeu dando abertura para ele tocar todos os instrumentos que quiser, violão, guitarra, baixo, bateria, teclado e saxofone, e fazer backing vocals. A lista de coisas que o Theo faz é enorme, e acredito que foi bastante motivador para ele. As coisas funcionam muito melhor quando todos estão na mesma sintonia, e é importante falar sobre “Perfect Pattern Watcher”, porque o esqueleto inicial dela foi o Theo quem trouxe, com guitarra, baixo e bateria gravados, e percebemos que era um puta som. Quando o Rafael voltou, nós dois lapidamos as linhas de guitarra, e o Rodolfo trabalhou as linhas de baixo junto com o Theo. Fomos desenvolvendo juntos as linhas de voz, também! Ou seja, ele chegou não só participando das nossas composições, mas trazendo material próprio. Isso está sendo fantástico para o nosso processo criativo atual! Tenho alguns amigos que gostam de compor tanto quanto eu, e eles têm o costume de falar ‘se não for do meu jeito, tenho receio de que não fique bom’, só que sempre vai ficar no mínimo mais interessante, porque você imagina um caminho quando compõe. Por exemplo, eu sou guitarrista, mas imagino as linhas de baixo e bateria além dos outros elementos de guitarra quando componho, no entanto, se eu não tiver a chance de experimentar outro caminho, nunca vou saber qual rumo seria o melhor. Foi assim que aconteceu a “Morphine”, que veio de um esqueleto inicial que eu compus… Na verdade, um que eu já tinha e guardei, porque imaginei que em algum momento nós o transformaríamos numa música. Quando nos reunimos, apresentei a guia inicial que eu havia gravado, aí o Rodolfo veio com novos elementos, o Theo sugeriu vários outros, e o Roger também trouxe algumas ideias. Assim, quando fomos tocar, a coisa tomou uma proporção que não era nada do que eu havia imaginado, e ficou muito mais legal! A partir daí, consegui construir as linhas de voz, porque as escrevi somente depois da inserção dos demais elementos. Então, para mim também acaba sendo um funcionamento interessante, já que posso experimentar outras coisas para ver qual caminho é melhor, mas sem a certeza de que haverá só um caminho legal. É experimentando que vou saber, e a “Morphine” é um grande exemplo disso.
Rodolfo: A cereja do bolo aí é ficarmos atentos ao fato de que variabilidade e diversidade são saudáveis para a música, para a vida. Foi uma coisa que aprendi quando comecei a tocar no Warshipper, que abriu a minha cabeça, porque eu era muito quadrado em relação à música. A “Morphine” trouxe esse algo a mais porque fizemos essa coisa que nunca havíamos feito até então, e chegamos a uma riqueza de diversidade de sons, de arranjos. A cada audição é possível encontrar um novo elemento novo, e isso sem contar a questão lírica, que refletiu bastante em todo o processo. Mas a composição em si abriu um espectro novo, para termos novas cores.
Renan: Apesar de termos essa fala muito forte, é assim que o Warshipper funciona, mesmo. O Zoltar e o Bywar eram bandas que tinha uma proposta a ser seguida, apesar de o Rodolfo e eu termos conseguido misturar bastante coisa, e há inúmeros grupos que têm uma proposta sem o mesmo nível de experimentalismo do Warshipper, mas que são fantásticas! Um exemplo é o The Troops of Doom, que chegou fazendo um som totalmente ‘old school’ que é do caralho! É animal! E está tudo certo, porque é legal que existam bandas que trazem uma veia com direcionamento definido, do qual você pode sempre esperar aquele tipo de som foda para caramba, e outras bandas que apresentem essa maluquice de ‘não espere nada, porque pode acontecer qualquer coisa!’, como é o caso do Warshipper e tantos outros nomes. O melhor que temos no funcionamento no nosso underground, na cena do metal nacional, é poder ter o mais tradicional, o mais arrojado e, também, tudo isso junto e misturado. E isso vale, de fato, para a arte como um todo, não apenas para o heavy metal e não somente para o Brasil, porque está certo. É tudo arte.
Ouvi “Morphine” antes de sair o videoclipe, e ela não me surpreendeu. Isso porque eu já esperava essa evolução do Warshipper, e aí escutei o disco do início ao fim… O começo com “Religious Metastasis” me fez pensar ‘esses putos ficam pegando caminhos diferentes’ (risos), e o fim acabou sendo a cereja do bolo, porque “Magnificent Insignificance”, minha favorita, aquela com a frase do Carl Sagan, me fez imaginar vocês pensando ‘e agora, o que fazemos para superar isso?’…
Rodolfo: Também é a minha faixa preferida do disco, e estou vendo que o Renan ficou surpreso agora (risos). O fato é que fui tendo faixas preferidas ao longo do processo, mas hoje posso dizer que ela é a minha favorito, sim. O detalhe do Sagan no fim me ganhou, também, e é algo que acredito ter encaixado como uma luva. “Magnificent Insignificance” é uma música que traz elementos diferenciados, tem uma parte rítmica diferente em que o baixo tenta acompanhar a bateria, e isso deu uma cara diferente, ficou quase como um metrônomo. Enquanto a construíamos, eu não imaginava que fosse chegar a esse ponto, e o conjunto dos elementos deu uma roupagem final que ficou diferente de tudo que fizemos até então. Não chegou a perder peso, é bastante melódica, é bem ousada, bem arrojada, enfim, é uma música bem diferente. O Renan pode falar mais sobre a parte lírica, porque foi ele quem trouxe o contexto.
Antes, preciso apenas dizer que, ao colocar daquela maneira, não estou desmerecendo o restante do disco. Pelo contrário, até porque o mais interessante é que, depois de “Magnificent Insignificance”, entra “Guilt Trip”. Ou seja, é para bugar o cérebro (risos)…
Renan: Claro, mas o lance é que fiquei surpreso mesmo ao saber que a faixa favorita do Rodolfo é “Magnificent Insignificance” (risos). Na verdade, isso só reforça aquilo que comentei: quando você explora ‘vibes’, históricos, ideias e sentimentos de cada um, tudo se torna melhor. O curioso é que essa música entrou sem querer no disco, porque já tínhamos decidido que não colocaríamos mais músicas, só que eu insisti para que trabalhássemos os riffs dela. A reação de quase todos, quando começamos a fazer as primeiras passagens da música, não foi muito positiva, e com razão, porque não ficava claro até onde a música poderia chegar. Mem para mim estava claro (risos), e foi o baixo que deu o direcionamento, juntamente com a bateria que o Roger escreveu para “Magnificent Insignificance”. Foram os dois fatores que trouxeram uma perspectiva que a engrandeceram bastante. O Roger, aliás, foi quem comprou a ideia da música logo de cara, porque viu que havia variações rítmicas interessantes, umas que ele queria utilizar fazia algum tempo, e isso potencializou o recurso do baixo. Quando o Rafael voltou, a faixa estava basicamente pronta, à exceção de alguns arranjos de melodia que acabamos incluindo, e foi ele quem a deixou ainda maior. Tínhamos uma canção finalizada, mas o Rafael trouxe os elementos dele, e nós falamos ‘Nossa! Agora é outra música!’ (risos). Não tínhamos expectativa de um resultado final tão interessante, como o que aconteceu depois que todo mundo participou e contribuiu. Considero “Magnificent Insignificance” uma canção muito forte, também, e obviamente gosto do conteúdo lírico dela (risos). Tem muito a ver com o que já conversamos aqui, aliás, e o nome diz tudo: é uma insignificância magnífica, somos nós, é a nossa espécie, somos nós olhando para nós mesmos. Eu voo toda semana, e é nesse momento em que tenho uma perspectiva da magnitude da nossa existência e da nossa insignificância individual. Enquanto viajo pelo país, vejo todas aquelas paisagens diferentes, muitos prédios, fazendas, criações, mato inabitável, Floresta Amazônica e tudo mais, e fazemos parte desse contexto, o que é magnífico. Porém, precisamos parar e refletir sobre o quanto isso é importante, sobre o quanto isso é expressivo para a nossa existência. Acredito que “Magnificent Insignificance” é um grande exemplo de combinação perfeita de música com o contexto lírico, mas talvez eu seja suspeito para falar, porque escrevi a letra e sou coautor da faixa. Honestamente, no entanto, acredito mesmo que as palavras conversam com as melodias e as harmonias que a canção traz, dando essa percepção de insignificância magnífica. No fim, senti que ela precisava ter uma narração do Carl Sagan, porque “Pale Blue Dot” fala exatamente sobre isso. Ou seja, era a cereja do bolo. E quando você pergunta ‘o que vem depois?’, nós tivemos essa sensação depois do “Barren…”. Lembro-me de ter essa conversa com o Rafael em algum momento, tipo ‘Pô, cara, fizemos um disco muito legal! E aí, o que podemos fazer agora?’, e eu disse que não deveríamos nos preocupar com isso, vamos fazer o que gostamos de fazer. Antes de nos preocuparmos com as críticas, se as resenhas nos veículos de comunicação serão legais, a nossa resenha interna é mais importante. Quando paramos e olhamos para a música, ficamos felizes, então está tudo certo. E foi a sensação que tivemos com a “Magnificent Insignificance”, porque falamos ‘Caramba! Olha o que nós fizemos!’ quando a terminamos. Nesse funcionamento de banda que nós temos, vamos sempre buscar o que nos deixa felizes, satisfeitos, e a consequência disso é sair algo legal.
Falamos sobre inquietude, e quero terminar com outra quebra de paradigmas do Warshipper: a capa de “Essential Morphine”. A capa não combina com o que as pessoas esperam de uma banda de metal extremo, mas combina com o que vocês entregaram. Ela quebra conceitos com o desenho e não tendo o logo tradicional, então com foi o processo?
Renan: Preciso começar contando como conheci o artista, Gabriel Augusto. Tem um casal de amigos que morava em Sorocaba e que se mudou para a Ilha de São Jorge, na Chapada dos Veadeiros, um lugar simplesmente fantástico… Inclusive, a banda toda já foi para lá para curtir um fim de ano. Bom, esse casal de amigos vendeu tudo o que tinha aqui, se mudou para lá e montou uma pousada, que tem um funcionamento diferente e uma paisagem é incrível, com muitas cachoeiras, alguns cânions, etc. Em uma das viagens que fiz sozinho para lá, vi uma arte num quadro. Quando bati o olho, disse para um grande amigo meu, Emir, que inclusive acompanha o Warshipper desde o começo e é amigo do Rodolfo desde os anos 1990: ‘Cara, que maluquice é essa?’, e ele respondeu: ‘É uma pintura de um camarada meu que tem um rancho aqui, também. Ele é meu tatuador, mas mora em Goiânia e vem de tempos em tempos para cá’. Eu achei a pintura fantástica, adorei o trabalho do cara, e o Emir me passou o contato dele. Acabamos criando uma amizade, e eu comecei a avaliar o trabalho dele nas redes sociais, falei que gostaria muito que a capa do nosso próximo disco fosse uma arte naquele sentido. Cada capa do Warshipper tem um formato diferente e foi feita por um artista diferente, e essa transição de artistas é algo que gostamos, por isso encanei que a próxima tinha de ser do Gabriel. Comentei com ele sobre o contexto do álbum, e ele, que também estava passando por um momento de bastante reflexão, falou: ‘Tenho um quadro aqui que dá liga com as ideias que vocês trouxeram’, e quando eu vi a pintura só pude dizer: ‘É isso!’. A ideia inicial era não ter o logo da banda, aliás. No “Barren…”, nós experimentamos um logo bem discreto, e para o “Essential Morphine” eu sugeri ter o nome da banda, mas sem o logo. A ideia de ter escrito ‘Essential Morphine by Warshipper’ foi uma que surgiu da inspiração que tive com o “Phaedra” (1974), do Tangerine Dream, porque na capa consta ‘Phaedra by Tangerine Dream’, uma estética superprogressiva e da qual gosto para caramba, e aí nosso amigo Felipe Brasil incluiu o nome do álbum e da banda de acordo com essa ideia. Cara, eu adoro essa arte!
Rodolfo: A única coisa que queríamos ter feito, mas que não rolou por uma questão operacional, é que a arte fosse em alto relevo, uma característica da pintura a óleo, da textura. Isso encareceria muito o produto, mas o resultado final ficou excelente.
Obrigado pela entrevista, pessoal, o espaço é todo de vocês para mandar aquela mensagem final.
Rodolfo: Nós é que agradecemos a oportunidade de ter novamente uma conversa superproveitosa e intelectualizada com você, porque considero importantíssimo que consigamos, não de uma forma pejorativa, mas de uma forma legal, tratar de temas que transcendam a questão musical. Isso é o que de melhor temos no nosso público, e fomentar pessoas pensantes é uma meta de vida que eu tenho, seja no meu trabalho ou seja na banda. Então, leiam as letras e conversem conosco sobre elas, porque isso nos ajuda a aumentar os recursos.
Renan: Em primeiro lugar, gostaria de agradecer por mais uma vez ter um bate-papo legal para caramba com você, Daniel, porque é uma baita oportunidade para nós. E a mensagem para a galera é: vá aos shows, e vamos curtir e bater cabeça juntos! Eu adoro me sentir com 20 anos novamente e, mais ainda, adoro quando vejo pessoas que, de fato, estão na casa 20 anos e participando do rolé do metal. É preciso renovar, então é preciso ter a molecada. Vamos lá, porque o rock é diversão, o metal é diversão, e essa pluralidade de bandas e de gêneros que nós temos é divertida, também. Vamos valorizar isso e trabalhar juntos por iniciativas como essa aqui, para conversar e expor o nosso trabalho às pessoas e ter uma visibilidade legal. São várias as engrenagens que compõem o funcionamento do heavy metal como um todo, da música, da arte e do nosso underground, do qual gostamos para caramba!