Se o mercado brasileiro para shows de Heavy Metal já não anda bem das pernas, com muitas bandas gringas vindo ao país para se apresentar diante de platéias bem modestas e festivais dando prejuízos enormes, seja para os organizadores (caso do Evisceration Metal Festival) ou para o público (vide o desastroso Zoombie Ritual), imagine então a situação desfavorável para estilos como Gothic, Industrial, Neoclassical e Medieval, que nunca tiveram uma tradição forte neste país. Dentro desse panorama, seria inimaginável a criação de um evento voltado para tais gêneros “marginalizados”. Mas diante das adversidades, se ninguém mover uma palha e ficar apenas reclamando, as coisas continuarão estagnadas ou irão de mal a pior – isso vale pra tudo. Pensando assim, produtores já acostumados a organizar shows em São Paulo voltados para esse público alternativo, resolveram se juntar e remar contra a maré.
Apostando alto, mas com os pés no chão, deram início à primeira edição do Wave Summer Festival. Apesar de o nome remeter a um dos maiores festivais do mundo voltados à cultura dark em geral, o Wave-Gotik-Treffen, que desde 1992 acontece todo ano em Leipzig (ALE), não tem relação com esse festival, embora seja uma inspiração óbvia e um modelo de referência, que talvez também influenciou o nome da gravadora brasileira Wave Records, a única do país voltada ao Gothic, Industrial e derivados, e uma das organizadoras do WSF. Na edição de estreia, o evento contou com as bandas alemãs Merciful Nuns (Gothic Rock), Das Ich (Industrial) e Prager Handgriff (EBM) e o grupo italiano Ataraxia (Neoclassical), além das atrações nacionais Plastique Noir (Gothic Rock/Pós Punk), Olam Ein Sof (Medieval/Neofolk), Das Projekt (Gothic Rock), Klaustrophobik (Dark Electro), Scarles Leaves (Darkwave) e Individual Industry (Synth Pop), totalizando quinze horas de música rolando ininterruptamente.
A estrutura era de alto nível, um amplo ambiente com direito a hotel, teatro, pista de dança, praça de alimentação, área reservada para autógrafo, merchandising e feira de produtos diversos voltados a esse público, campo de futebol e uma belíssima paisagem verde. Mas como nem tudo são flores, se aproximando do evento, o público era recepcionado por um carro tocando Funk nas alturas – com perdão da redundância -, a poucos metros da entrada. Felizmente ao chegar no evento, os ouvidos eram purificados pelo Olam Ein Sof, que estava tocando numa pequena tenda. Formado pelo casal Marcelo Miranda e Fernanda Ferretti, o duo lembra de diversas maneiras o Blackmore’s Night. Além da sonoridade similar, ambos surgiram da música pesada e se originaram a partir das parcerias, respectivamente, de Marcelo e Ritchie Blackmore com as esposas em suas bandas principais – o Blackmore’s Night começou após as participações de Candice Night no álbum “Stranger In Us All” do Rainbow e o Olam Ein Sof foi criado a partir das colaborações de Fernanda no Arum, grupo de Black Metal da capital paulista. Às 19:00, o Olam Ein Sof faria sua apresentação definitiva no teatro.
Com vinte minutos de atraso, às 15:20, teve início o primeiro show do palco principal. Tocando a princípio para um público muito reduzido, o Plastique Noir foi atraindo, a cada música, os fãs que estavam dispersos em outros ambientes. Divulgando seu terceiro álbum, os cearenses abriram com a faixa-título de “24 Hours Awake”, que foi lançado naquele dia. Seguiram com uma trinca do debut “Dead Pop” (2008) – “Phantom In My Stereo”, “Inconstancy” e “Shadowrun” – e, em seguida, mandaram mais uma trinca, dessa vez do bem-sucedido “Affects” (2011), com destaque para “Houdini”. Para finalizar a apresentação, Airton S. (vocal e programação) dedicou as duas últimas músicas para Max Bernardo, tecladista que faleceu durante as gravações do segundo ‘full length’. No entanto, após executar “Rock ‘N’ Roll Is Over”, perceberam que o horário para o término do show já tinha chegado. Mesmo com o tempo ultrapassado em virtude do atraso, a produção permitiu que Airton, Daniel Noir (guitarra, Facada, Monge, Godtoth) e Deivyson Fernandes (baixo) tocassem a última: “Imaginary Walls”. Um bom show com qualidade sonora dentro dos conformes (sofrendo apenas com uma breve microfonia no início), mas é inexplicável a ausência da já clássica “Rose Of Flesh And Blood”.
Como havia stands, diversas opções de comidas e bebidas, sessão de autógrafos etc. era impossível acompanhar todos os shows. Então, no momento do show do Prager Handgriff, era hora de comer, beber, pegar autógrafo do Plastique Noir e passear.
Às 18:00 chegara o momento de uma das atrações mais esperadas do dia. Bem conhecido até pelo público do Metal devido ao disco em parceria com o Atrocity, além das participações de Bruno Kramm em trabalhos do Crematory, Theatres Des Vampires, Ensoph e Theatre Of Tragedy, o Das Ich está ressurgindo após problemas de saúde enfrentados pelo vocalista Stefan Ackermann. Isso foi um assunto comentado pelo próprio Stefan durante o show, enquanto Bruno sempre falava da felicidade em estar de volta ao Brasil após dez anos. Atendendo a insistentes pedidos, o duo mandou o clássico “Gottes Tod”, que contou com grande participação do público e muita interação por parte de Bruno e Stefan, que assustou os incautos com seus tradicionais gestos, caretas e movimentos bizarrísimos. Mas o grande destaque ficou por conta de “Das Dunkle Land”, com o refrão brilhantemente cantado por Bruno, e o hino “Destillat”, que apesar de não contar com os vocais femininos ao-vivo, ainda assim leva o público ao delírio. Bem que poderia ser usado um sample no pré-refrão, aproveitando o fato de que o instrumental é playback. De qualquer modo, foi uma das apresentações mais marcantes do festival.
Nos intervalos do palco principal, eram realizadas as apresentações no teatro, mas infelizmente, pelos motivos já citados, não foi possível acompanhar. Essa era a única parte “ruim” do festival – ser quase impossível prestigiar todas as atrações. No entanto, poucas pessoas estavam interessadas nisso, afinal muitos foram pelo lado mais sombrio e tinham como prioridade conferir as bandas de Gothic Rock, outros atraídos pela faceta atmosférica proporcionada pelo Olam Ein Sof, Ataraxia e Scarlet Leaves, grande parte na fissura de curtir os grandes expoentes mundiais da cena Industrial e alguns para dançar na boate ao som de diversos DJs. O lado bom é que isso evitava que houvesse aglomerações, tumultos, empurra-empurra…
A penúltima banda a se apresentar no palco principal foi o Merciful Nuns. Abrindo com “Speed Of Light” e “Karma Inn”, ambas do último álbum, “Meteora VII” (2014), o trio conseguiu montar um set interessante que abrangeu quase todos os seus materiais – doze, entre full lenghts e EPs -, deixando apenas “Goetia IV” (2012) de fora. Apesar de estar promovendo seu mais recente trabalho, foi “Exosphere VI” (2013) que recebeu prioridade, provavelmente pelo seu repertório estar mais ensaiado, o que culminou na execução de quatro músicas desse disco, com destaque para a pegada peculiar de “Ultraviolet”, diferente do típico andamento pegajoso, mas sem sair do clima obscuro que permeia o grupo. As lentas “God/Aeon” e “Genesis Revealed” (quase um Doom Metal!) deixaram o clima carregado e expuseram de forma mais enfática o ocultismo tão presente nas obras do Merciful Nuns. Entretanto, o melhor ficou reservado para o final, quando a banda voltou para o bis com “Ancient Astronauts” e “The Return”. A performance fria de Artaud Seth (vocal), Jón Tmoh (guitarra) e Jawa Seth (baixo), sem nenhuma interação e praticamente sem comunicação com o público é condizente com a proposta da banda e nem por isso tirou a empolgação de quem estava presente.
Durante a sessão de autógrafos, que atrasou bastante, diga-se de passagem, a imagem taciturna de Artaud foi quebrada. Muito simpático e sorridente, ele fazia questão de conversar com cada um, seja o gringo que levou uma tonelada de CDs (devia ter ali todos os trabalhos não só do Merciful Nuns, mas também do Garden Of Delight, banda da qual se originou o Merciful) ou o fã que tinha apenas um item. Quem também desconstruiu a imagem estereotipada do povo alemão foi o Das Ich, especialmente Bruno Kramm, que se virou pra arrumar caneta e distribuir autógrafos aos fãs que o encontraram após a sessão.
O fim da noite se aproximava e de longe se ouvia uma empolgação desmedida. E essa reação não era diante de alguma banda com sonoridade agitada. Quem estava no palco era o Ataraxia. Incrível como os fãs expressavam bastante entusiasmo com uma banda de estilo viajante e, por vezes, melancólico. Esse é o diferencial que as bandas estrangeiras tanto comentam sobre o público brasileiro, mas dessa vez chamou um pouco mais a atenção. Com nome já consolidado no cenário internacional, os italianos devem ter tido uma experiência única com essa recepção calorosa. A propósito, antes e depois do evento, foi uma das bandas que mais arrancou elogios nas redes sociais. O Ataraxia está naquele nicho seleto de bandas que é difícil criticar, suas músicas sofisticadas com diversas texturas e vocalizações que transmitem um misticismo peculiar agradam aos ouvidos de qualquer um.
Em suma, o festival foi marcado por um profissionalismo exemplar somado a uma organização digna de evento europeu. Poucos atrasos, raros e quase inexistentes problemas em relação ao som (e que foram resolvidos rapidamente), local formidável e, o mais importante, preocupação e respeito com o público – vans e ônibus foram disponibilizados para buscar e levar o público ao metrô da capital paulista, acesso a deficiente físico, consciência ecológica (não havia copos descartáveis, a pessoa comprava um copo retornável, “recarregava” e depois levava como lembrança), hotel com boas instalações e a preço justo, distribuição de coletânea com todas as bandas do festival para quem comprava o ingresso e, pra finalizar, um completo e variado café-da-manhã na faixa para o público inteiro (dá pra acreditar?). Mesmo que os fãs não tenham comparecido em massa, resultando em pouco mais de 600 pessoas (foram disponibilizados mil ingressos), foi confirmado ainda durante o evento a realização da segunda edição em 2016. Se já começou assim, imagina como se desenvolverá no futuro…