De 13 de setembro a 2 de outubro, dez shows. Em um período de 20 dias, uma apresentação no Chile, duas na Argentina e sete no Brasil. Porto Alegre, São Paulo (duas noites), Belo Horizonte, Brasília, Curitiba e Rio de Janeiro, última parada da “The Greatest Hits Tour” na América do Sul. Daí a dúvida – e também a preocupação, por que não? – sobre o estado da voz de David Coverdale na apresentação do Whitesnake para os cariocas. E não sejamos hipócritas, uma vez que não é de hoje que o gogó do vocalista é o centro das discussões – e também alvo de críticas, por que não? – quando o assunto é a sua banda. Não sejamos hipócritas, mesmo, porque nada disso apaga o fato de ele ser um dos maiores de todos os tempos, com a lembrança de que falamos ainda de um ‘frontman’ que está entre os melhores do ramo.
Dito isso, registre-se: foi melhor do que o esperado. E foi assim também porque a banda que o cerca – Reb Beach e Joel Hoekstra (guitarras), Michael Devin (baixo), Tommy Aldridge (bateria) e Michele Luppi (teclados) – abusa de tão talentosa. E, claro, teve o repertório. E apesar de basicamente ignorar material anterior a “Slide It In” (1984), já que três das quatro músicas das antigas foram apresentadas em suas versões 2.0, que repertório! Com um nada britânico atraso de 15 minutos, o Whitesnake entrou no palco com “Bad Boys”, e o frisson comum ao início de um show passou com louvor por “Slide It In” até ganhar contornos histéricos com “Love Ain’t No Stranger” – curiosidade: há um grande número de anos sempre a terceira canção do set da banda.
Mal dava para ouvir a voz de Coverdale no início, mas apenas porque o público que compareceu em peso e encheu o Metropolitan – assim como no Scorpions, a promoção “leve dois, pague um” feita pela T4F surtiu efeito – cantou bem mais alto. Não foi o que aconteceu em “The Deeper The Love”, mas a balada de “Slip Of The Tongue” (1989) caiu muito bem. Para quem era fã e conhecia tudo, também para quem lá estava para ouvir trilha sonora de comercial de cigarro. Original de “Ready An’ Willing” (1980), mas tocada com a roupagem de “Slip Of The Tongue”, vide o solo à la Steve Vai de Beach, “Fool For Your Loving” agradou aos dois públicos presentes, ao contrário do que veio em seguida.
Coverdale anunciou um retorno ao primeiro Rock In Rio com a belíssima “Ain’t No Love In The Heart City”, mas o retorno foi aquém do merecido. Clássico de Bobby “Blue” Bland que o Whitesnake adotou com total propriedade lá no fim dos anos 70, a pérola deixou boa parte da plateia com aquela cara de ‘o que está acontecendo?’, assim como “Judgement Day”, a ótima tentativa do vocalista de ter uma “Kashmir” para chamar de sua. Um momento que parece ter sido feito para os fãs ‘die hard’, mesmo numa turnê de hits – o que pode explicar, diga-se, por que “Sailing Ships”, também de “Slip Of The Tongue”, não tenha sobrevivido após os primeiros shows de toda a turnê. Infelizmente.
E apesar de toda a técnica de Beach, que exatamente por isso arrancou alguns aplausos, e de Hoekstra, que mostrou algo a mais num bom momento acústico, os solos individuais ajudaram a manter o clima mais morno. “Slow An’ Easy” poderia ter engatado novamente a quinta marcha, principalmente porque a presença hipnótica de Coverdale ajuda e muito, mas aí chegou a hora de Devin mostrar com seu Rickenbacker alguns dos efeitos de sua pedaleira. Foi curto, ainda bem, e “Crying In The Rain” enfim conseguiu meter o pé no acelerador. Em sua versão “Whitesnake 87”, diferente do andamento mais Blues da original presente em “Saints & Sinners” (1982), ela proporcionou momentos de tirar o fôlego.
A começar com Beach completamente fiel ao antológico solo de John Sykes, diferentemente de Doug Aldrich num passado não muito distante. E a terminar com o massacre promovido por Aldridge em toda a música, que incluiu o seu tradicional e devastador solo. Não é toda hora que um público que não sabe o título dos últimos álbuns da banda e, pode anotar aí, desconhece o nome de qualquer integrante que não seja David Coverdale assiste a um baterista de 66 anos fazer aquilo – “Olha, com as mãos!”, disse um espectador ao meu lado. Mas este que vos escreve resume Tommy Aldridge com as baquetas nas mãos: Deus existe. E toca bateria no Whitesnake.
Curiosa ou coincidentemente, a chama se manteve bem acesa. “Is This Love” foi recebida com gritos diversos, principalmente femininos, e “Give Me All Your Love” não deixou um corpo parado até um encerramento apoteótico (antes do bis) com “Here I Go Again”. É simples assim: como é bom cantar essa música! Não importa quantas vezes e como você a tenha escutado. Ao vivo, no carro, no toca-CD, no toca-discos ou via streaming… O importante é que a voz esteja lá. Ou quase. Coverdale não é bobo. Hoekstra, Luppi, Devin e Beach, principalmente os dois últimos, seguram a onda nos refrãos e algumas vezes até em trechos solo, e o vocalista ainda conta com a ajuda, voluntária ou não, dos fãs.
Mas foi no ‘encore’ que a garganta definitivamente mostrou como está castigada pelo tempo – e por excessos como anos fumando cigarro, é bom lembrar. Uma boa razão para “Still Of The Night” pedir as contas e se aposentar do set list. Sim, é um dos maiores clássicos da Cobra Branco, mas o desapego está aí para isso, e Coverdale não precisa mais se esgoelar para alcançar notas que hoje são inalcançáveis. Ele não precisa mais provar nada para ninguém. Que o diga “Burn”, o clássico de Deep Purple que voltou ao repertório exatamente na perna latino-americana (a banda tocou no México antes de descer um Continente) – felizmente, porque vale a pena babar no trabalho de Beach e Hoekstra, principalmente no excelente solo deste último.
Foi o frenesi derradeiro da noite e do ótimo show de uma banda impecável. Foi a prova de que os fãs continuarão marcando presença para ver Coverdale dominar o palco como poucos, até a hora em que o vocalista resolver finalmente pendurar o pedestal e o microfone. Enquanto isso, vale uma chance a “Take Me With You”, “Walking In The Shadow Of The Blues”, “Love Hunter”, “Ready an’ Willing”, “Don’t Break My Heart Again”, “Gambler”, “Guilty Of Love”… Os fãs ‘die hard’ agradecem, e os ocasionais vão curtir. Música boa não tem idade.
Set list
1. Bad Boys
2. Slide It In
3. Love Ain’t No Stranger
4. The Deeper The Love
5. Fool For Your Loving
6. Ain’t No Love In The Heart Of The City/Judgement Day
7. Reb Beach Solo
8. Joel Hoekstra Solo
9. Slow An’ Easy
10. Michael Devin Solo
11. Crying In The Rain/Tommy Aldridge Solo
12. Is This Love
13. Give Me All Your Love
14. Here I Go Again
Bis
15. Still Of The Night
16. Burn