Daniel Gildenlöw, a mente criativa por trás do Pain of Salvation, passou por maus bocados em 2014 durante os inimagináveis quatro meses que esteve internado em decorrência de uma infecção bacteriana. A gravidade da situação, entretanto, não foi suficiente para derrubá-lo.
Na verdade, sua experiência traumática foi canalizada para aquilo que a banda sueca sabe fazer melhor: música complexa e letras que abordam temas sensíveis, como humanidade, amor e morte, além, claro, de muito sofrimento e superação, que representam a própria essência do nome do grupo.
A volta por cima veio com o aclamado e bem sucedido “In the Passing Light of Day” (2017), disco que, na minha opinião, tem qualidade suficiente para competir com “Remedy Lane” (2002), considerado o maior clássico da banda pela crítica.
Bem, isso é conversa para outro momento. O fato é que o álbum de 2017 foi tão impactante para o grupo que sem ele provavelmente não teríamos a oportunidade de ouvir “Panther”, o novo e desafiador trabalho do Pain of Salvation, mais especificamente, o 11º de estúdio em sua discografia.
Para melhor contextualizar o leitor, a ideia para o álbum de 2020 foi iniciada em “In the Passing Light of Day” com a música “Full Throttle Tribe”, cujas características ditariam o panorama geral de “Panther”: um ritmo estranho aos ouvidos, como se estivesse fora de compasso, enquanto sua letra fala de um típico misfit, ou seja, uma pessoa que se sente deslocada em relação aos padrões considerados “normais” pela sociedade, como se não pertencesse a nenhum país ou bandeira. Não precisamos ir longe para ver algo parecido, pois os Titãs já exploraram o assunto na canção “Lugar Nenhum”, do álbum “Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas” (1987).
O tema parece ser caro ao Pain of Salvation, que agora dedica um álbum inteiro (9 músicas, para ser mais exato) para narrar uma história dividida em 3 partes bem discerníveis ao longo da audição: o incômodo do personagem – o “garoto inquieto” – por estar deslocado em um mundo vagaroso e dominado pelos cães (Capítulo 1: “Restless boy in a world too slow”); o processo de mudança e aceitação por ser diferente (Capítulo 2: “For me to become I”); e, por fim, a sua transformação em uma pantera e seu posicionamento como líder da nova tribo (Capítulo 3: “How to mourn the living”).
Essa divisão da história foi muito bem arquitetada em seus mínimos detalhes e cada capítulo contém características ou interpretações específicas. Tente ouvir o álbum mais de uma vez e você vai identificar novos elementos ou nuances que antes passaram despercebidos. E, sim, isso mostra que estamos diante de um álbum complexo, profundo e extremamente bem conduzido pelos suecos do metal progressivo.
Eu sei que adentrei em uma discussão complicada ao rotular o estilo da banda, pois isso limita perigosamente o horizonte musical de um grupo que se encontra no ápice de sua criatividade. Neste novo álbum, o Pain of Salvation transita sem medo de experimentar pelo estilo industrial (“Unfuture”, que conta com o próprio Daniel Gildenlöw nas baquetas), pelos ritmos da cultura espanhola (“Wait”), e pela música eletrônica (diversas passagens em “Accelerator”, “Restless Boy” e “Panther” – o teclado de Daniel Karlsson foi bem acionado!). Há, inclusive, na faixa título, passagens que resvalam no rap e new metal. Pode parecer difícil de acreditar, mas o resultado final dessa miscelânia é fascinante.
Claro, temos uma dose pontual e comedida de heavy metal (em sua vertente progressiva, se assim preferir) em “Keen to a Fault” e na segunda parte de “Species”, faixas que refletem uma banda bem resolvida quanto ao seu próprio conceito de “heavy metal”. O peso da música não vem necessariamente da guitarra distorcida ou da voz rasgada, mas também da forma como a banda apresenta o tema.
Apesar de reconhecer esse amadurecimento musical, considero o som abafado das guitarras um ponto que deixou a desejar na produção álbum. Em “Panther” a banda volta a contar com o guitarrista Johan Hallgren, velho conhecido dos fãs, que reassume o posto após a saída conturbada de Ragnar ZSolberg. Portanto, havia uma expectativa dos fãs em esperar algo a mais da dupla Gildenlöw/Hallgren, só que desta vez o instrumento não causou tanto impacto no som. Ainda assim, Johan conseguiu deixar sua marca logo após o refrão de “Restless Boy” (você vai perceber o quanto sua inserção se encaixou perfeitamente no ritmo), e Daniel apresentou um belo solo ao final de “Icon”.
Esta evolução no som do Pain of Salvation também se dá graças ao excelente trabalho de Léo Margarit na bateria, que, se por um lado estava mais orientado pelas técnicas de metal do álbum anterior, agora se mostra mais fluído, solto, porém, extremamente técnico! Os ritmos desenvolvidos em “Accelerator” e “Restless Boy” são complexos e ao mesmo tempo estranhos de se assimilar (assim como já feito anteriormente em “Full Throttle Tribe”), mas, quando o seu ouvido se acostuma, você percebe a qualidade do trabalho nas baquetas.
Importante pontuar que estas duas músicas, complexas, intrincadas, e com efeitos eletrônicos na voz (no fim de “Accelerator” parece que a mídia do CD está riscada, e o refrão de “Restless Boy” é cantado em uma velocidade impressionante), foram audaciosamente escolhidas para serem singles de “Panther”. A opção mais segura seria “Species”, que lembra a fase acústica do Alice in Chains em “SAP” ou “Jar of Flies”. A questão é que a banda não está nem um pouco disposta a seguir o óbvio com este som tão diferente e ao mesmo tempo incrível.
Outro ponto interessante no álbum é a perceptível diferença de sonoridade enquanto você vai navegando pelos “capítulos” da história.
O primeiro deles lida com a dificuldade do personagem em se adaptar ao mundo dominado pelos cães e suas regras. Ele está inquieto, seus pensamentos são rápidos demais para um mundo tão devagar (“Restless boy in a world too slow”) e isso é refletido nas faixas, várias vezes mencionadas ao longo deste texto, “Accelerator” e “Restless Boy”. O ritmo diferente do usual e o aparente descompasso da música representam exatamente a sensação experimentada pela personagem: fora de sintonia com o mundo.
O segundo capítulo, “For me to become I”, é o momento em que o mundo começa a fazer mais sentido à personagem, que está em plena transição. Por isso ouvimos a sutileza de “Wait”, uma faixa com muita melodia e que foge do experimentalismo musical da introdução álbum. Dando mais intensidade à música, Gildenlöw capricha na interpretação e traz uma performance com muita emoção na voz. Uma das melhores músicas do álbum!
Por sua vez, a faixa título é a que melhor retrata o terceiro e último capítulo (“How to mourn the living”). Após o pequeno e sem graça interlúdio de “Fur” (pêlo, se traduzido para português), a personagem aceita sua transformação em uma pantera, felino que anda sorrateiro nas sombras e é invisível em meio ao mundo padronizado e dominado pelos cães.
A impressão é que a personagem (e a banda!) realmente se encontrou e está segura de si. Nesta música, o grupo se aventurou por territórios um tanto quanto inexplorados musicalmente e, para isso, o nível de confiança precisa estar alto! Inclusive, note a entonação de Gildenlöw e você vai perceber que ele canta em tom desafiador se comparado a outras faixas como “Unfuture” ou “Wait”.
E, da mesma forma como se deu com outras passagens do álbum, você pode sentir um desconforto com a sonoridade de “Panther”, mas asseguro que logo seus ouvidos se adaptarão, pois a música é muito boa. Assim, quero acreditar que este trabalho é singular na discografia da banda: a intenção não foi criar melodias marcantes logo na primeira audição, você precisa explorá-lo para extrair o máximo de conteúdo e experiência possíveis.
Assim, o Pain of Salvation criou uma jornada musical que te instiga a sair das rotulações do metal para experimentar ritmos que podem incomodar os ouvidos desavisados. Meu conselho para este álbum é: não ouça com pressa. Para apreciá-lo, ele precisa ser sentido e degustado com atenção, pois as entrelinhas são ricas e mostram que a banda está mais segura do que nunca.
Para finalizar essa resenha, faço menção a dois extremos do álbum: o simples e o grandioso.
De um lado, temos a não muito empolgante “Unfuture”, na qual a banda opta por um ritmo mais cadenciado e cuja voz aguda no refrão se perde um pouco entre os instrumentos – enfim, uma faixa não muito marcante.
De outro, o ouvinte é presenteado com os 13’30’’ da excelente “Icon”, que trabalha bem a suavidade e a tensão e ganha destaque com a bela interpretação na voz de Gildenlöw. Esta faixa tem, inclusive, um solo de guitarra ao final que lembra bastante aquele tocado em “Undertow”, do álbum “Remedy Lane”. Uma faixa excelente para encerrar um álbum marcante.
Eu comentei no início que “Panther” era complexo e desafiador, e, mesmo após escrever esta resenha, eu continuo mantendo minha opinião. Além disso, também acrescento outros adjetivos como “inovador” e “incômodo”, pois sei que o desafio proposto pelo Pain of Salvation pode se tornar um obstáculo para uns, mas também uma fonte de satisfação para outros. De qualquer maneira, tenha em mente que estamos diante de um álbum cautelosamente produzido por uma banda que sabe exatamente para onde quer ir, e que não tem medo de experimentar os limites da sua arte.
Para quem já ouviu o álbum e teve uma boa impressão inicial, eu sugiro revisitá-lo mais algumas vezes para assim absorver todos os detalhes destas músicas tão ricas em ritmos e emoções. Agora, para quem se assustou com os acordes iniciais da faixa título, eu proponho que dê uma segunda chance, pois não é todo dia que vemos uma banda se reinventar com tamanha qualidade.
Uma última informação: nos créditos finais do álbum o grupo deixa claro que a saga do garoto inquieto continua. A notícia é boa! O único problema é segurar a inquietação até o próximo lançamento do Pain of Salvation.