A carreira tem sido longa, e muito proveitosa, em todos os sentidos. Nascida em 1989, a banda holandesa The Gathering teve papel importante na sedimentação da cena metal do seu país natal, e foi uma das melhores e mais criativas usinas de música europeias desde os anos 90. Tendo sempre à frente os irmãos Hans Rutten (bateria) e René Rutten (guitarra) passou por profundas transformações musicais ao longo de sua jornada, partindo do doom/death de seus primeiros dias para algo mais atmosférico e acessível nos clássicos Mandylion (1995) e Nighttime Birds (1997), até chegar ao ápice criativo com os indefectíveis How to Measure a Planet? (1998) e Souvenirs (2003). Embora tenha também passado por mudanças de formação, a banda se manteve forte e produtiva até 2014, quando anunciou seu precoce, mas felizmente curto fim. Afinal, já em 2017 eles anunciavam uma volta aos palcos, um retorno que acabou sendo atrapalhado pela pandemia, mas que felizmente não se resumiu aos shows. Assim, em 2022, eles apresentaram dois novos trabalhos de inéditas. Primeiro veio o álbum Beautiful Distortion e, em seguida, o EP Interference. Com a criatividade em dia e pronta para colher os bons frutos do novo álbum, a banda retorna ao Brasil. A turnê passará por São Paulo/SP no dia 28 de setembro (Manifesto Bar) e Rio de Janeiro/RJ no dia seguinte (Solar de Botafogo), ocasião imperdível para os velhos fãs. Sim, porque ao lado dos irmãos dois velhos parceiros voltaram para a atual formação, Hugo Prinsen Geerligs (baixo) e Frank Boeijen (teclados), além, é claro, da incrível vocalista norueguesa Silje Wergeland, presente em todos os trabalhos dos holandeses desde 2009. Quem nos falou tudo sobre esse retorno foi o baterista fundador, Hans Rutten.
Você é um dos fundadores, e está com o The Gathering desde 1989, era apenas um garoto quando a banda começou. Como foi esse período de inatividade da banda para você?
Hans Rutten: Foi um momento estranho, para dizer o mínimo. Para entender melhor, primeiro lançamos o álbum Disclosure (2012), e fizemos a tour promocional dele. Pouco depois, Marjolein Kooijman, a nossa baixista na época, decidiu deixar a banda. Era 2014, e eu, René e Frank começamos a conversar sobre isso, e pensamos que talvez fosse bom tirarmos alguns anos de folga, para sair desse interminável círculo de escrever, gravar, tocar ao vivo. É como você disse, todos estávamos há muito com a banda, tínhamos feito muito, muito havia acontecido antes de 2013, que foi quando realmente paramos de tocar ao vivo. Foi um período muito frenético para nós, emocionalmente também. Por exemplo, quando Anneke deixou a banda (N.R: Anneke van Giersbergen foi vocalista da banda entre 1994 e 2007, e gravou todos os álbuns clássicos dos holandeses), demorou muito tempo até que conseguíssemos recuperar o nosso melhor, custou muita energia. Então, quando chegou 2014 e estávamos novamente em uma situação parecida, o que pensamos imediatamente foi em dar um tempo, fazer coisas que tínhamos deixado para trás, coisas que não estavam necessariamente ligadas ao mundo da música. Bem, em 2014 fizemos um show especial em Nijmegen (HOL), para celebrar os 35 anos da banda, ocasião em que todos os antigos integrantes se reuniram no palco, e então começou o hiato. Sei que as pessoas não gostam muito desse tipo de atitude das bandas (risos), mas a verdade é esse período longe da música foi realmente necessário para nós. Depois de todos esses anos, precisávamos arejar a mente, colocar em dia aspectos da nossa vida que há muito havíamos deixado para trás em nome da banda. Todos tínhamos assuntos inacabados, e foi isso que fizemos nesse meio tempo. Eu aproveitei para terminar os meus estudos de enfermagem, sou enfermeiro. Cuidei dos meus filhos, foi muito legal, um período realmente proveitoso.
Mas…
Hans: Pois é, sempre tem o ‘mas’ (risos gerais). ‘Mas’, em 2018, começamos a sentir aquela familiar ‘coceira criativa’ novamente. Eu pensava ‘cara, preciso escrever alguma coisa de novo, preciso reunir os caras’. Os outros também estavam pensando a mesma coisa. Eu, René, Frank e Silje estávamos dispostos a retornar, mas ainda não tínhamos um baixista para completar o time. Aí tivemos essa ideia, pensamos em chamar de volta o Hugo (N.R: Hugo Prinsen Geerligs, baixista original da banda, esteve presente de 1989 até 2004), que tinha deixado a banda por conta do nascimento dos seus filhos. Não sabíamos se ele aceitaria algo assim, mas ele foi muito receptivo, basicamente ele já estava pronto para retornar ao The Gathering, então foi assim que acabamos com essa ‘nova’, mas ao mesmo tempo ‘velha’ formação.
Em vários sentidos, foi realmente um reinício.
Hans: Sim, foi o que nós sentimos. Era uma continuidade, mas sentimos como um reinício, pois estávamos com as baterias carregadas, frescos e prontos para fazer aquilo que sempre fizemos. É engraçado, mas as vezes isso é tudo o que você precisa, um tempo para reorganizar as ideias, descansar, e voltar com força total. Era isso que sentíamos. Estávamos prontos para os palcos, prontos para escrever novas músicas, prontos para sermos novamente o The Gathering. Fizemos alguns shows, começamos a falar sobre nossas expectativas de um novo álbum. Mas…
E o ‘mas’ ataca novamente…
Hans: Exatamente (risos gerais). E acho que seus leitores já imaginam o que aconteceu, pois, se voltamos a tocar juntos em 2019, o ano seguinte foi 2020, e aí o roteiro já é bem conhecido. Tivemos que dar uma nova pausa, mas desta vez nos mantivemos em contato, a banda estava separada porque a situação do mundo exigia isso. A banda permanecia unida e ativa, só não podia atuar nesse período, e a sensação é muito diferente.
Sim, entendo. Para os fãs também foi diferente. Quer dizer, a separação em 2014 foi bem estranha, pois vocês vinham em grande fase, lançando ótima música e em ritmo acelerado. Já em 2020, não havia muito o que pudesse ser feito.
Hans: É verdade. E obrigado por compartilhar comigo a perspectiva dos fãs, pois a gente sempre precisa levá-los em consideração. Muitas vezes a banda é tão importante para eles quanto para os músicos, então temos que pensar também neles quando tomamos uma decisão realmente importante. Mas, em 2014 realmente foi importante aquela pausa. Sabe, a vida havia mudado muito naquele período anterior a pausa. Sendo muito honesto, hoje não é mais como era antes. Nós éramos mais jovens, muito mais jovens 25 anos atrás. Havia muito menos distrações naquela época. Nós não éramos pais na época, não tínhamos uma família nos esperando em casa. Não importava como a turnê rolasse, se ganharíamos um bom dinheiro ou não, pois ninguém dependia da nossa ajuda, não havia uma família para alimentar. Essas coisas mudam com o tempo, você fica mais velho, e além de ver as coisas de outra maneira, ganha um mundo de responsabilidades que nem imaginava antes.
Levando tudo isso em consideração, foi um hiato até bastante curto. Quer dizer, foram cerca de quatro anos parados. Muitas bandas demoram muito mais tempo apenas para lançar um novo álbum.
Hans: Sim, é verdade. Tem bandas que nunca se separaram, mas que levam oito, dez anos até apresentar um novo álbum. Tem bandas que passaram décadas em pausa, até retornar. Cada um tem um motivo, então é muito difícil avaliar. A diferença é que nós nunca realmente quisemos terminar a banda. O The Gathering nunca acabou. Desde o começo havíamos decidido que seria uma pausa, que resolveríamos as nossas coisas, e assim que os fluidos criativos começassem a fluir novamente, estaríamos de novo juntos e produzindo música.
Tendo em conta as responsabilidades que mencionou, foi difícil reunir essa formação?
Hans: Eu não diria que foi difícil, mas que foi desafiador. O lado bom é que desde o primeiro momento, todos com que falamos foram receptivos, todos toparam na hora. Mas a verdade é que para uma banda funcionar, ‘topar’ é apenas um dos passos necessários, existe muitas outras coisas que precisam ser levadas em consideração. Quando colocamos a banda em hiato para fazermos outras coisas, essas coisas começaram a ser desenvolvidas, todos seguimos adiante, e isso quer dizer que todos tínhamos nossas próprias agendas. E esse foi um desafio novo: precisamos encontrar uma forma de conciliar a agenda de todo mundo. Se não tivéssemos tempo para realmente estar juntos e criar músicas, não haveria sentido em retomar atividades.
Tendo em vista esse ímpeto de criar novas músicas, vocês sempre foram capazes de transformar de forma realmente abrangente a sua fórmula musical de álbum para álbum, e isso novamente é uma verdade em Beautiful Distortion. Chama a atenção a fidelidade de sua base de fãs, frente à tantas mudanças ao longo da carreira.
Hans: Sim, realmente somos muito afortunados por isso, não faltam exemplos de bandas que mudaram sua sonoridade e se deram muito mal. Claro que também sofremos algumas críticas bastante duras, mas a maior parte dos nossos fãs sempre migrou junto conosco, sempre absorveu e até estimulou essa nossa postura diante da música, esse inconformismo com o que já alcançamos. E isso, acredito, se deve ao fato que, por mais que a nossa música mude, algo lá no núcleo sempre permanece igual, intacto. Óbvio que existem muitas diferenças entre Always… (N.R: Álbum de estreia, de 1992) e Beautiful Distortion, por exemplo, mas também existe algo em comum entre todos os nossos discos, e eu diria que é o elemento atmosférico, as partes ambientais e post-rock, isso está em todos os nossos álbuns. Essa é a beleza de trabalhar com a música, você pode mudar todo o ambiente em volta, mas se tem os mesmos compositores, terá uma emoção reconhecível de cada banda.
De fato. Considerando isso, com qual outro álbum da sua jornada você sente uma conexão maior com Beautiful Distortion?
Hans: Eu poderia ficar enrolando e dizer que é difícil, que nunca pensei nisso, mas a verdade é que vejo o novo álbum quase como um irmão de How to Measure a Planet? (1998). Os dois álbuns foram produzidos e mixados por Attie Bauw (N.R: Produtor holandês com várias parcerias com o The Gathering, além de trabalhos com Gorefest, Fight, Epica e Judas Priest, entre outros), mas não é apenas uma questão de sonoridade. Para mim, esses dois álbuns têm uma enorme conexão de sentimentos, eles são perfeitamente conectados em suas atmosferas e ambientes emocionais, se você me entende. Quer dizer, se How to Measure a Planet? foi a viagem até esse planeta desconhecido, Beautiful Distortion é o momento da chegada nele. É engraçado, pois liricamente esses álbuns não têm conexão nenhuma, enquanto musicalmente não consigo separá-los.
Sim, e isso complementa o que disse antes, que algo no núcleo das músicas sempre permanece o mesmo.
Hans: Exato. Sempre vamos mudar, mas sempre vamos permanecer nós mesmos. Ninguém precisa se preocupar, nunca vamos lançar um disco de reggae ou algo assim, não somos esse tipo de banda. Fazemos música atmosférica: às vezes ela é mais metal, outras é mais rock. E é só isso, de verdade. Alguns dizem que viramos uma banda pop, mas não concordo. Pop tem a ver com música comercial, e convenhamos, o quanto Beautiful Distortion é um disco comercial? Ele nunca seria um disco bem sucedido nas paradas pop, simplesmente não tem os elementos para isso.
Para encerrarmos, existem duas músicas que eu gostaria que comentasse. Uma é do novo álbum, outra do novo EP. Comecemos pelo álbum, com We Rise. Aqui René está fazendo aquilo que muitos esperam dele, temos ótimas passagens de guitarra elétrica nessa canção.
Hans: Sim, é verdade. Realmente, essa é uma canção muito boa, e acho que ela seja a canção de Beautiful Distortion que carrega mais elementos do velho The Gathering, da época em que estávamos começando. Acho que essa é uma das razões pelas quais tanta gente tem comentado essa música, e colocado como favorita no álbum. É uma canção orientada para a guitarra, tem essa parte mais pesada e intensa, é a mais ‘metal’ que temos no novo material, sem dúvida. E acho que ela encaixaria com perfeição naquele período entre Nighttime Birds e How to Measure a Planet?, pois ela mescla elementos que estão bem presentes nesses dois álbuns, o peso de um e as atmosferas de outro. Minhas linhas de bateria são mais simples e diretas nela, é uma canção com algo de doom, como tínhamos em Nighttime Birds, e que tem alguns ótimos ganchos na guitarra. De todas as músicas que fizemos para o EP e o álbum, provavelmente essa é aquela que os velhos fãs mais facilmente reconhecerão como uma canção do The Gathering.
Concordo. Agora, para representar o EP Interference, temos a Stronger.
Hans: Ah, sim. Pois é, essa acabou sendo a última música que compomos para o novo álbum, e demorou muito tempo até que ela ficasse realmente pronta, do jeito que vocês ouvem no EP. Bom, como disse, ela foi composta para Beautiful Distortion, mas não sentimos que ela combinava com o álbum, é como se tivesse uma energia própria, diferente das demais. No fim das contas, quando você faz um álbum, precisa tomar decisões, precisa cortar algumas músicas, e Stronger ficou de fora não por conta da qualidade, mas por conta de sua vibração. Ela é forte, é bonita e tem muita personalidade, tanta que destoava do repertório, então por isso veio aparecer no EP.
Sou uma das pessoas que ficaram muito gratas que tenham lançado essa música no EP, em vez de apenas deixarem ela de lado. É uma das melhores do novo repertório.
Hans: Sim, e concordo totalmente. E é engraçado, pois ela é uma dessas ‘músicas coringa’, sabe? Você começa a trabalhar nela, e não vê todo o potencial que ela tem, segue trabalhando e tentando coisas diferentes, gosta do que está ouvindo, mas ainda não sabe no que vai dar. Então, você lança e de repente ela é a favorita de todo mundo, se torna o seu maior sucesso (risos). É engraçado como essas coisas acontecem, mas gostamos muito dessa canção. Talvez até tivéssemos repensado a posição dela no álbum se tivéssemos conseguido termina-la antes, mas aí está, e que bom que tantas pessoas estão gostando dela. Estamos tentando honrar o bom resultado, ela ganhou um videoclipe, e também está no nosso repertório ao vivo.
Falando nisso, que bom ver que estão voltando ao Brasil. Muito obrigado pela entrevista.
Hans: Agradeço à ROADIE CREW pelo interesse na nossa música, e muito obrigado pela ótima conversa. Pois é, finalmente estamos podendo cumprir a nossa prometida viagem ao Brasil, até que enfim (risos). Esperamos ver vocês em São Paulo e no Rio de Janeiro, então cuidem-se e fiquem bem para que possamos nos divertir juntos. Um grande abraço a todos, e até lá!