Longe de mim querer bancar o Jonathan Harker nesse capítulo da história, mas alguém precisa registrar os estranhos acontecimentos que abalaram a noite de sábado, 24 de março, no Carioca Club, em São Paulo. Uma noite tão negra quanto a morte, e que em contraponto, fulgurava como a alma dos que não podem morrer, em um espetáculo de horror e sombras cujo nome é CRADLE OF FILTH. Aqueles que lá estiveram, muito irão recordar desses eventos que doravante dou testemunho. E se, dentre vós, existirem daqueles que não creem no sobrenatural, eu vos peço que atentem: eles estão entre nós!
Sim, meus caros, o poderoso CRADLE OF FILTH mais uma vez tocou o solo paulistano, e trouxe consigo a praga vampírica que semeia pela Europa há quase trinta anos. Hipnotizados pela aura densa e maligna expelida pela presença dos demônios ingleses, um imenso séquito de acólitos se amontoou na casa de shows, com seus estranhos trajes fúnebres, rescendendo ao odor de terra e sangue, enquanto no palco não se via nada além de névoa e a imagem de uma bela dama de pé sobre seu esquife, indiferente enquanto o sangue lhe escorre pela pele. O espetáculo de terror não demoraria para ter início. Aquele estranho ser que atende pelo nome Marthus foi o primeiro a trocar contato com o público, e sentou-se atrás de seu kit, de onde não sairia por todo o decorrer da apresentação. Ele foi seguido por todos os outros acólitos do mestre, o tcheco Ashok (guitarra, ex-ROOT) e Daniel Firth (baixo, ex-MAN MUST DIE), o desmorto Richard Shaw (guitarra, NG26) e a diva satânica Lindsay Schoolcraft (teclados, DAEDALEAN COMPLEX), todos precederam a entrada do mestre, o legítimo herdeiro do mal eterno que ainda hoje aflige e amedronta os habitantes dos Cárpatos e da antiga Valáquia, um medo que nunca abandona os habitantes da Moldova e Bucovina, e que tem as garras e dentes cravados no coração gelado da Transilvânia: o Filho do Grande Dragão, o Dracul de nossa era, Dani Filth adentrou o palco para o júbilo de seu séquito, que recebeu como prêmio por sua devoção a primeira oferenda da noite, Gilded Cunt (Nymphetamine, 2004).
A emoção era visível, e tanto os mestres do horror quanto os fãs ali presentes compartilhavam de uma mesma empolgação, ainda mais presente no impacto profundo de Beneath the Howling Stars, um velho clássico que transformou Cruelty and the Beast em um dos discos mais amados pelos fãs do CRADLE OF FILTH. Embora Dani Filth tenha apresentado aquela performance intensa de costume, é preciso salientar a qualidade do trabalho de Bernard Shaw e Lindsay Schoolcraft, que praticamente deram o tom de como deveria ser a apresentação. Agitando os cabelos de forma ensandecida, gesticulando para o público, interagindo com a galera postada à frente do palco, os dois foram um espetáculo à parte, e muito fizeram para que a apresentação fosse o espetáculo que de fato foi.
A maldição começou a ganhar contornos mais modernos com Blackest Magic In Practice (Hammer of the Witches, 2015) e alcançou a plenitude com Heartbreak and Seance, primeira das duas faixas do novo álbum Cryptoriana – The Seductiveness of Decay (2017) a aparecer na noite, e convenhamos: contém um dos melhores trabalhos de guitarra de toda a carreira do CRADLE OF FILTH. Como que para provar a fé de seus acólitos, Filth tinha reservado uma sequência especial, que prometia não deixar nenhum coração vacilar: Bathory Aria – a poderosa obra em três atos que apresentou os ingleses para muitos de seus fãs há exatos vinte anos atrás – veio seguida pela clássica Dusk and her Embrace, que por sua vez, preparou o caminho para a fantástica The Death of Love (Godspeed on the Devil’s Thunder, 2008), talvez a melhor música já composta sobre a relação Joana D’Arc/Guilles de Rais em todos os tempos.
Parecia que não tinha mais para onde ir, mas o CRADLE OF FILTH é uma banda ativa e estimada até hoje principalmente pela sua capacidade quase incontrolável de compor clássicos. Então, quem poderia estranhar que ainda tivesse mais por vir? Com Shaw se movendo pelo palco como um morto vivo – ou um boneco comandado pelo mestre das marionetes – e Lindsay mostrando todo o seu talento como vocalista, veio Nymphetamine (Fix), que conta com os vocais de ninguém menos do que a norueguesa Liv Kristine (ex-THEATRE OF TRAGEDY) na sua versão original. Ademais? Ainda tinha Born In a Burial Gown, que conta com um dos melhores videoclipes da história da banda, Her Ghost In the Fog (nem comento, deixo você imaginar) e From the Cradle to Enslave para encerrar.
Saldo final? O que se pode dizer do convívio com aqueles que entre nós transcenderam o físico e tocaram o divino e o maldito? Como um mortal transcreve em palavras e resume todo o terror que correu como gelo pela sua espinha enquanto uma noite de medo e pecado tomava forma diante dos mestres imortais do CRADLE OF FILTH? Nunca um DVD vai poder capturar algo que vai além das imagens. Vampiros não aparecem em filmagens, e é isso que eles são. Esses shows têm uma aura única, uma interação tão intensa entre banda e público que é impossível reproduzir fora daquele ambiente. Talvez você perca a sua alma em um show desses caras. Mas, talvez, ganhe a imortalidade. E quem sabe um dia seja o seu nome sendo sussurrado pelos ventos que congelam as almas da Transilvânia…