Quem diria que em plena terça-feira teríamos uma noite histórica, regada a heavy metal, atrações circenses e ilusionismo, tudo isso em um teatro, com ingressos esgotados semanas antes (tanto que rolou show extra no Manifesto Bar, no dia 21), e sendo filmado? Pois foi exatamente o que Noturnall (com o auxílio da Cia da Madrugada e do mágico Wander Rabelo) e Alírio Netto, ambos trazendo convidados pra lá de especiais, proporcionaram ao público paulistano no último dia 24. A data era especial para o Noturnall, que exibiria seu show diferenciado, chamado de “Noturnall Freakshow”, e também para o cantor e ator Alírio Netto, que comemorava 25 anos de carreira. A ocasião foi marcante, inclusive, para o aconchegante Teatro Porto Seguro, que pela primeira vez abria espaço para a realização de um evento de música pesada. Trata-se de um bonito espaço cultural, com enorme pé-direito, capacidade para praticamente 500 pessoas – incluindo balcão superior -, e privilegiado por excelente acústica e iluminação. Em entrevista que fiz com Alírio Netto para a edição atual da revista ROADIE CREW (#231), ele contou que a ideia desse evento ser registrado em DVD pelas duas bandas partiu de conversas que teve com Fernando Quesada (baixista do Noturnall), durante shows que fizeram juntos. E já que haveria filmagens, minutos antes do início do primeiro show a produção da Foggy Filmes explicou à plateia como se comportar durante as apresentações.
Pontualmente às 21h00, as luzes se apagaram e o telão ao fundo do palco começou a projetar imagens de Alírio Netto. Também mostrou depoimento de Brian May, lendário guitarrista do Queen, à respeito do artista brasileiro. Isso porque, recentemente, Alírio conquistou um feito de enorme proporção: foi confirmado para integrar o “Queen Extravaganza”, projeto idealizado pelo próprio May e por seu ‘bandmate’, o baterista Roger Taylor. Acompanhado dos músicos do Noturnall, Quesada, Brunno Henrique (guitarra), Juninho Carelli (teclado) e Henrique Pucci (bateria), Alírio Netto entrou tocando o tema principal do musical “Jesus Christ Superstar”, o qual ele foi protagonista. “Back to Light”, seu mais recente single, deu sequência e ganhou coro da plateia. Para o repertório, Alírio reuniu um punhado de músicas de toda a sua carreira, e para tocá-las alguns convidados. O primeiro deles foi seu ex-companheiro de Age of Artemis, Giovanni Sena (baixo), que assumiu o lugar de Quesada em “Truth in Your Eyes”, do álbum de estreia do grupo, “Overcoming Limits” (2012). Depois, com Quesada de volta ao seu posto, foi a vez de Marcelo Barbosa (Angra), ex-parceiro de Alirio no Khallice, fazer dupla com Brunno Henrique nas guitarras na bela “Reasons”, do EP “Inside Your Head” (2008).
A segunda metade do set foi especial e começou de maneira intimista e acústica. No palco agora estavam Carelli, e aos violões o ex-Noturnall Leo Mancini e Quesada, para acompanhar Alírio, que convidou para um duo a sua esposa, a simpática e bem humorada Lívia Dabarian, a Scaramouche do musical “We Will Rock You”, em que ele interpretou Galileo. O cenário estava criado de maneira romântica para uma bela versão da emocionante “Who Wants to Live Forever” (Queen), em que o casal deu um show à parte, mostrando que se completam não só como marido e mulher, mas também nas vozes e na escolha das mesmas profissões. Cada um dos dois teve direito a uma paradinha na canção para mostrar seus talentos vocais. Arrancaram aplausos, principalmente quando, abraçados, selaram a música com um beijo cinematográfico. A seguir, todos se retiraram e Alírio se sentou ao piano disposto ao centro do palco para um medley cativante, que incluiu trechos de “Take Me Home” (Age of Artemis), “Retrato”, música de seu álbum solo “João de Deus” (2016), e “Black Hole Sun”, clássico do Soundgarden.
A seguir, Alírio comentou que pegou emprestado do vocalista italiano Fábio Lione os músicos Rafael Bittencourt, Marcelo Barbosa, Felipe Andreoli e Bruno Valverde, e brincou após os quatro serem aplaudidos: “Pra quem não sabe, esse aqui é o Angra”. Juntos e acompanhados de Juninho Carelli tocaram “Make Believe”, para histeria dos fãs do grupo. Antes de se despedir, Alírio anunciou seus últimos convidados, o tecladista Sérgio Golivek (Conceitual Club), Adriano Daga (Malta), além de reconvocar Sena, Barbosa e Brunno Henrique, para o encerramento com outro hino do Queen: “The Show Must Go On”. Alírio Netto é um talento nato e em pouco mais de cinquenta minutos provou que o palco, ainda mais de um teatro, é um local onde ele se sente em casa, tendo em vista que é nesse tipo de ‘habitat’ que nesses seus 25 anos de carreira, ganhou reconhecimento como cantor e ator de musicais como os mencionados “We Will Rock You” e “Jesus Chris Superstar”, além de óperas como “Carmem”, “Madame Butterfly”, “La Boehme” e “Don Giovani”.
Pegando o gancho da última música tocada por Alírio Netto, realmente o show deveria continuar. E durante intermináveis minutos, o logotipo do Noturnall foi projetado nas cortinas fechadas do palco, enquanto uma introdução sombria rolava no som mecânico. Tudo isso para criar um clima denso para o público, que estava prestes a conferir as loucuras que o grupo havia prometido para sua apresentação. De cara, Brunno Henrique, Fernando Quesada, Juninho Carelli e Henrique Pucci chegaram agitando bastante, tocando a pesadíssima “No Turn At All”, acompanhados das sempre presentes garotas zumbis. Elas trouxeram uma jaula, de onde, segundos depois, surgiu o frontman Thiago Bianchi. “Zombies” veio na cola com as zumbis praticando pole dance ao fundo, entre a bateria de Pucci e as plataformas de teclado de Carelli. Antes de “Wake Up”, música do novo álbum “9” (2017), Carelli se dirigiu pra frente do palco, de onde uma armadilha desceu do teto. Sob o comando de Wander Rabelo, mágico/ilusionista responsável pelos números de circos famosos – como o do ator Marcos Frota – e quadros de programas como Domingão do Faustão, as zumbis amarraram o tecladista de ponta-cabeça e a armadilha o suspendeu. Era um número de escapismo, onde, de lá de cima, Carelli conseguiu se soltar e pular de volta ao palco no segundo final, dos trinta que foram contados regressivamente pelo cronômetro no telão. Aplaudido, Carelli arrancou gargalhadas: “quase morri nessa porra!”, gritou.
Após o começo agitado, na primeira pausa Bianchi brincou: “tá rolando um show de boteco bacana aqui hoje, heim?”. Então agradeceu a presença dos fãs e dos músicos convidados, elogiou Alírio Netto, comemorou a arte em geral, se referindo aos adereços e números que ele e seus companheiros trouxeram, e alertou que as músicas seriam tocadas de maneira ainda mais visceral e veloz. Uma delas, “Fight the System”, que tem o início cantado em português e em estilo rap, foi a única representante do segundo álbum, “Back to Fuck You Up” (2015). Depois dela, Bianchi fez um trocadilho ao dizer que a noite estava sendo “mágica”. Porém o clima mudou da diversão à comoção – ainda que Carelli tenha feito graça através dos efeitos que mandava de fundo, o que fez com que todos caíssem na risada -, quando o vocalista falou dos problemas de saúde que enfrentou por decorrência de câncer, de acidente automobilístico e também de alcoolismo, e revelou que a letra da próxima música, na verdade, era a reprodução inalterada da carta de despedida que havia escrito para seus amigos. Foi a deixa para “Moving On”, que no meio ganhou uma paradinha em que as zumbis apareceram fazendo contorcionismo. O clima de emoção seguiu quando Bianchi abriu o coração ao falar bem do próximo convidado, o guitarrista original da banda, Leo Mancini. Acompanhado de Mancini e de Quesada, que estavam ao violão, e de Carelli na sanfona, Thiago Bianchi anunciou “Heart As One”, ressaltando que a parte financeira recebida com os ganhos desta música, que ganhou uma bela versão acústica no show, é toda revertida às crianças do G.R.A.A.C.C. (Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer).
As provocantes zumbis deram novamente o ar da graça quando retornaram carregando um caixote, por onde agora foi Pucci quem surgiu de dentro. Em seguida, um belo par de pernas atravessou o palco sem o restante do corpo, empurrando uma mesa de rodinhas. Um número bastante ‘misterioso’, que só podia ser a deixa para “Mysterious”. Nessa, Quesada entrou usando um roupão de época, em que sua cabeça deslizava enquanto ele tocava. Mas como nem tudo é perfeito, durante a execução dessa música o baixista não conseguiu tirar o traje e teve que sair do palco, deixando de tocar por alguns instantes até retornar. Após outro número de contorcionismo, as zumbis deixaram um adereço medieval em cena, no qual em “Sugar Pill” uma delas saiu da “barriga” de Brunno Henrique, que, de dentro do equipamento, não conseguiu disfarçar o riso. Antes da pesada “Nocturnal Human Side”, foi a vez do convidado Alírio Netto surgir da jaula. O final dessa, que teve o clipe com participação do americano Russel Allen (vocalista do Symphony X e do Adrenaline Mob) rolando no telão, foi feito com os dois vocalistas ajoelhados e soltando a voz em sintonia.
Depois de todos se retirarem do palco, Bianchi falou sussurrando: “o homem vem aí”. Carelli retornou aplaudido e alertou: “Calma que agora vai ser foda. Aguenta coração!”. Thiago Bianchi não perdeu a tirada e sacaneou cantarolando o refrão de “Aguenta Coração”, do cantor José Augusto. Então as zumbis entraram acompanhando um alienígena, e assim que a banda começou a tocar “Hey!”, todos enlouqueceram quando elas tiraram sua máscara. O ser era ninguém menos do que James LaBrie, que mandou bem no duo vocal com Bianchi. Depois dessa, o carismático vocalista do Dream Theater cumprimentou a todos, elogiou o Noturnall e disse estar feliz por ter sido convidado para participar do show. Ao anunciar a próxima, LaBrie revelou que a letra foi inspirada no filme “The Shawnshank Redemption” (no Brasil, “Um Sonho de Liberdade”, de 1994) e explicou o conceito lírico, dizendo que foi baseado num cenário que ele mesmo criou. Ele se referia à música “Jekyll or Hyde”, de seu álbum solo “Static Impulse” (2010). Mas o que os fãs queriam mesmo era ouvir músicas do Dream Theater. Primeiro veio a comemorada balada “Through Her Eyes”, do respeitado “Metropolis Pt. 2: Scenes From A Memory” (1999), em que James LaBrie foi acompanhado apenas por Carelli ao piano e Quesada ao violão. Já o final, com todos de volta, inclusive as cinco zumbis, foi dado com um dos grandes hits da banda americana: “Pull Me Under”, do ótimo “Images and Words” (1992). E foi engraçado que nessa o próprio LaBrie atravessou feio quando seguiu cantando parte do refrão, quando na verdade havia começado a ponte para o solo. Mas nada que tenha atrapalhado a continuação da música. Foi uma apresentação memorável do Noturnall, uma banda que merece elogios por estar sempre se superando e se desafiando a mostrar ao público novas experiências, tanto dentro quanto fora dos palcos. E lanço aqui uma pergunta. Responda-me se for capaz. Quem no Brasil atualmente tem tido a audácia de resgatar a essência de espetáculos estilo shock rock, nos moldes do que estamos acostumados a ver nos shows do pioneiro Alice Cooper?
NOTURNALL – Setlist:
Intro
No Turn At All
Zombies
Wake Up
Fight the System
Moving On
Hearts as One
Mysterious
Sugar Pill
Nocturnall Human Side
Hey!
Jekyll or Hyde
Through Her Eyes (Dream Theater)
Pull Me Under (Dream Theater)
ALIRIO NETTO – Setlist:
Intro
Jesus Christ Superstar
Back to Light
Truth in Your Eyes (Age of Artemis)
Reasons (Khallice)
Who Wants to Live Forever (Queen)
[Medley ao piano]:
-Take Me Home (Age of Artemis)
-Retrato
-Black Hole Sun (Soundgarden)
Make Believe (Angra)
The Show Must Go On (Queen)