Oportunidades. Desde que honestas, você deve aproveitar todas as que cruzarem o seu caminho. E, se você é fã de metal extremo, o último domingo do mês de abril reservava uma oportunidade única para você: o encontro de dois gigantes do metal, duas das bandas que ajudaram a moldar os alicerces da música extrema em sua época de maior prestígio, MYSTIFIER e IMMOLATION. A banda que elevou o nível de extremidade do pestilento metal nacional tocava ao lado do grupo americano que lançou as bases do que seria o novo death metal, e tudo isso na mesma noite, com apenas alguns poucos minutos separando as duas apresentações.
Claro que a expectativa era grande, e claro que os dois nomes citados eram os mais esperados da noite. Mas, antes existia ‘algo’ para acontecer, e o pessoal do CORPORAL JIGSORE não estava ali apenas para apreciar a paisagem. Com um nome que remete diretamente para uma grande música de 1991 do lendário CARCASS (Corporal Jigsore Quandary, do clássico Necroticism – Descanting the Insalubrious), os bolivianos já deixavam clara a orientação death metal de seu som, característica explorada com maestria em seus três ‘full lengths’, Exhumation Sessions (2006, o mais ‘gore’ dos três álbuns), Religious Genocide (2009, o início do mergulho mais profundo no death metal tradicional) e Unleashing The Pestilence (2017, o mais completo e mais maduro disco do grupo até o momento). Levando-se em consideração que os bolivianos tinham a dura tarefa de abrir os trabalhos para duas das grandes bandas do cenário extremo mundial, e que a maioria quase absoluta dos presentes desconhecia quase que totalmente a banda, o que se pode dizer de mais certo é que o CORPORAL JIGSORE foi uma ótima, incrível surpresa! Um show caótico, violento e direto que preparou muito bem os presentes para a desgraça que viria depois, e que certamente, cravou o nome dos caras por aqui. Agora, mais (re)conhecidos, o grupo tem seu retorno aguardado em solo paulista, e esperamos que isso não demore muito.
E, se a primeira impressão da nossa noite de death metal fora ótima, o que se poderia esperar na sequência, com o MYSTIFIER? Apenas para lembrar aos incautos, essa é uma banda que concentra em suas veias praticamente toda a história do metal extremo nacional, que surgiu já lá se vão praticamente trinta anos, e que desde então tem lutado pela música extrema sem defender um rótulo único, o que os levou a serem considerados mundialmente como um dos pais do death e do verdadeiro black metal. Ou seja, o peso da História jogava a favor do MYSTIFIER, então já tínhamos em mãos o primeiro indício de um ótimo show. O outro dependia da postura do trio, e aí nós temos uma das bandas nacionais mais experimentadas nos palcos de todo o mundo. Experiência, extremismo, competência e amor ao metal foram os ingredientes básicos do show perpetrado pelo trio Eduardo Amorim (bateria), Beelzeebubth (guitarra) e Diego DoUrden (baixo e voz). Baseando o show em seus velhos clássicos, o massacre começou com Unspeacable Dementia (Utter Nonsense), única representante do mais recente álbum de estúdio dos brasileiros, Profanus (2001). Give The Human Devil His Due colocou o terceiro álbum, The World Is So Good That He Who Made It Doesn’t Live Here (1996) na jogada.
Daí, o bom leitor talvez se pergunte ‘ué, cadê o lendário Wicca?’. Cedo para se precipitar, meu bom parceiro. O grotesco e maldito disco de estreia da lendária banda baiana não poderia estar de fora, e Osculum Obscenum foi uma das que fizeram os ‘circle pits’ tomarem conta da pista do Fabrique Club, algo que ainda se repetiria muito durante a apresentação. An Elizabethan Devil-Worshipper’s Prayer-Book, com seu clima arrastado e sorumbático parecia enaltecer o clima de terror noturno tão apreciado pelos amantes das artes das trevas, e uma noite assim enegrecida não poderia deixar de contar com a tríade maldita The Realm of Antichistus/The True Story About the Doctor Faust’s Pact With Mephistopheles/ Beelzebuth. Assim, o MYSTIFIER deixou o palco, sob o louvor de seu séquito, cada vez mais convencido do valor de uma das bandas primordiais da nossa cena.
Após aquela pausa obrigatória que todo mundo aproveita para comprar merchandise ou aquela cervejinha básica, era a vez do IMMOLATION, o principal nome da noite. Como dissemos anteriormente, o grupo foi um dos responsáveis por incluir o estado de Nova York no mapa mundial da música extrema, e na época que o death metal vivia o seu auge de popularidade e de experimentações, estabeleceu uma nova forma de se tocar o estilo, fortemente encravada em dissonâncias e alternâncias de tempo bizarras, coisa que tornou o seu som tão facialmente identificável. Sempre liderados pelas figuras lendárias do guitarrista Robert Vigna e do baixista/vocalista Ross Dolan, o show dos norte-americanos começou da maneira que se esperava, com a explosiva The Distorting Light, faixa de abertura do mais recente e excelente álbum do grupo, Atonement (2017). Variando entre velocidade extrema e momentos mais cadenciados, o baterista Steve Shalaty (ex-DEEDS OF FLESH e GUTTED) rapidamente começou a chamar atenção, e já na segunda música da noite, When The Jackals Come, era um dos mais comentados pelos presentes. Mas este devaneio provido pela técnica absurda do baterista não resistiu ao impacto fulminante de Father, You’re Not A Father, um dos maiores clássicos do repertório do grupo, presente no genial quarto álbum, Close To A World Below (2000), que arrancou todos do chão em um movimento convulsivo que aqui vamos chamar de ‘mosh’, apenas pela falta de um adjetivo mais extremo e mais apropriado para o que de fato aconteceu.
Com sua cabeleira devidamente trabalhada no Loreal por algumas décadas, o vocalista Ross Dolan exibia seu timbre único e poderoso como se os anos não lhe afetassem, e aproveitava cada pausa para agitar como um maníaco. Swarm of Terror (Harnessing Ruin, 2005) foi o que faltava para destacar a performance incrível de Vigna, que ali parecia uma espécie de faquir maluco controlado por controle-remoto, com seus movimentos rígidos e rápidos, que não deram sossego nem por um único segundo durante toda a apresentação! Do outro lado do palco, a performance sensata e contida do guitarrista Alex Bouks (ex-GOREAPHOBIA e INCANTATION) era o contraste perfeito, já que este parecia aquele seu amigo que jogava muito Guitar Hero, aquele que nunca perdia uma nota, mas que também nem piscava durante a partida. Brincadeiras à parte, quem esteve lá viu a precisão absurda dessa formação, que já pode ser considerada uma das melhores de toda a carreira do grupo.
Se o pescoço ainda não estivesse suficientemente dolorido, sempre havia como piorar a situação: a contida e quebrada Majesty and Decay passou como um rolo compressor sobre a multidão, nesta altura já completamente atônita diante do palco. Mas a banda ainda tinha muitos clássicos para oferecer, e foi realmente incrível ter a chance de mais uma vez presenciar a execução da fenomenal Into Everlasting Fire (do álbum de estreia, Dawn of Possession, de 1991) e ver o quanto dela existe na nova Destructive Currents, tocada logo antes. Uma noite incrível, sem dúvida, e que terminou de forma ainda mais incrível, com a execução daquela canção que deu nome ao grupo: Immolation. Sim, parecia bom demais para ser verdade, mas foi verdade. E mais uma vez, a lição se confirmou: Se você tem uma oportunidade, desde que honesta, aproveite-a. Quem esteve no Fabrique teve a oportunidade e a certeza de ter aproveitado um dos melhores shows do ano.
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