Fotos: Andre Santos
Trinta anos após aportar no Brasil pela primeira vez e fazer história com sua apresentação na quarta edição do extinto festival Hollywood Rock, que no mesmo dia recebeu Engenheiros do Hawaii, Dr. Sin e Nirvana, além de Red Hot Chili Peppers, Alice in Chains e outras atrações noutros dias, o L7 retornou ao país neste mês de outubro de 2023, cinco anos após sua última visita, para uma série de shows por sua “The Best of L7: South American Tour 2023”. E quem compareceu ao show de São Paulo do quarteto punk/grunge de Los Angeles, que no início dos anos 90 aderiu ao movimento feminista Riot Grrrl, foi presenteado com duas bandas seminais do punk rock nacional como bandas de abertura, As Mercenárias e o Cólera.
Antes de falar dos shows, vejo necessário comentar que o Carioca Club passou por algumas modificações em sua estrutura, que não surtiram tanta otimização. Isso no que diz respeito à acessibilidade dos cadeirantes. A área reservada para essas pessoas foi montada em um espaço localizado em uma das laterais da pista, em que antes, se não me falha a memória, ficava a extensão do balcão do bar. Os cadeirantes ficam agora alocados em um “chiqueirinho” no mesmo nível em que ficam as demais pessoas em pé na pista, que, inevitavelmente, acaba lhes tirando quase que totalmente a visão do palco. Além disso, algo que mesmo com as reformulações não mudou e deveria, é a falta do pit reservado para os fotógrafos poderem trabalhar sem ter que enfrentar o empurra-empurra, a consequente falta de mobilidade, os celulares erguidos, stage divings e afins. É oportuno chamar atenção também para a questão das bilheterias da casa, localizadas no lado externo. No dia em questão, havia uma única fila para compra de ingressos e também para atender os que estavam com nome na lista de convidados e de imprensa. Mesmo a casa tendo alguns guichês para atender tal demanda e não causar atrasos, apenas um estava sendo utilizado. A intenção aqui não é dar uma de “Saraiva”, mas sim alertar o Carioca para resoluções que permitam maior conforto tanto para o público quanto para a própria casa.
Bem, a primeira banda a subir ao palco foi o Cólera. Quando os veteranos Val Pinheiro (baixo) e Pierre Pozzi (bateria) e os jovens Fábio Belucci (guitarra) e Wendel Barros (vocal) surgiram tocando Duas Ogivas, foi legal que eles se depararam com um público já em bom número dentro do Carioca Club, embora moroso no início da apresentação da veterana banda paulistana. Em 2023, o Cólera está completando 44 de história sem nunca ter parado suas atividades, e o quarteto segue tocando com sangue nos olhos.
Desde Quanto Vale A Liberdade, presente na lendária coletânea SUB, à músicas de seus álbuns de estúdio, o Cólera preparou um repertório que agradou seus fãs. Prova disso é que muitos dos presentes cantaram as músicas junto com Wendel. Em Humanidade, música do clássico álbum Pela Paz em Todo Mundo, de 1986, por exemplo, rolou até um ‘breakdown’ em que a ainda precisa cozinha formada por Val e Pierre seguiu tocando acompanhada à plenos pulmões pela maioria dos punks, rockers, alternativos e headbangers que curtiam o show lado a lado e em perfeita harmonia no recinto.
Um momento emocionante aconteceu quando Pierre anunciou uma das músicas e relembrou seu irmão Redson Pozzi, lendário vocalista e guitarrista cofundador do Cólera, que faleceu em 2011. Disse ele: “O Redson gostava pra caramba dessa música, era uma das que ele mais gostava”. O batera se referia à música Medo, hino de abertura do mencionado Pela Paz em Todo Mundo. E o público correspondeu cantando-a em alto e bom som.
Quem fez questão de prestigiar o show do Cólera viu uma apresentação altamente energética e segura desse pioneiro considerado uma das maiores referências do punk rock nacional. Ao que tudo indica, daqui a poucos anos o Cólera seguirá em boa forma para celebrar nos palcos respeitado meio século de história na música underground.
Com a casa já bem cheia, As Mercenárias, um dos grandes nomes do pós-punk nacional da década de 80, matou a saudade de seus contemporâneos e surpreendeu o público mais jovem. Com uma formação mais estendida do que o habitual, o trio formado atualmente pela carismática fundadora Sandra Coutinho (baixo e vocal) por suas parceiras Silvia Tape (guitarra e vocal) e a experiente baterista Pitchu Ferraz (Chaos Rising, ex-Nervosa, Ajna, Dominatrix, Hellsakura, Wander Wildner), contou com a participação de Bibiana Graeff (AnvilFX) e Mayla Goerish (BUMBOmudo), dupla performática que contribuiu positivamente com teclados e alguns efeitos sonoros, vocais de apoio e por vezes principais e uma presença de palco ensandecida e, por que não dizer, teatral.
No repertório, As Mercenárias trouxeram músicas de seus dois únicos álbuns de estúdio, Cadê As Armas, lançado em 1986 pela Baratos Afins, tradicional selo que revelou um monte de outras bandas também cultuadas até os dias de hoje, e Trashland, disco esse que devido à boa repercussão do debut (incluindo participações da banda em programas de TV) foi lançado no ano seguinte pela major EMI. O grupo economizou nas falas e assim pôde apresentar várias músicas de seu catálogo. Os grandes destaques do show foram a hipnótica Eu Não Consigo Mais Dormir e, principalmente, a grooveada (e prolongada) Polícia.
Fãs assumidos e amigos d’As Mercenárias, Boka e João Gordo, do Ratos de Porão, curtiam o show da pista e do camarote, respectivamente. Individualmente, Pitchu deu uma aula de bateria, exibindo seu vasto repertório baterístico em faixas que, além de ácidas e sarcásticas liricamente, musicalmente abrem espaço para diversas referências sonoras, não se limitando exclusivamente à simplicidade e à urgência do punk e do pós-punk.
Se no início da apresentação muitos ali da nova geração prestavam atenção ao que estavam assistindo sem conhecer a história e nem as músicas d’As Mercenárias, ao final do show todos, sem exceção, aplaudiram a banda de uma maneira tão acalorada, que possivelmente esse show deve estar marcado como um dos mais memoráveis da carreira dessas grandes artistas.
À partir de então, com a casa abarrotada de gente, rolou um atraso de meia hora. Quem estava espremido na pista viu a espera pelo L7 ficar ainda mais cansativa devido ao calor que fazia no recinto. No entanto, a energia foi retomada quando a introdução começou a rolar no som mecânico e aumentou ainda mais quando pela escada ao fundo do palco o público viu desceram (nessa ordem) Jennifer Finch (baixo e vocal), Donita Sparks (vocal e guitarra), Dee Plakas (bateria) e (filmando a plateia) Suzi Gardner (guitarra e vocal). Particularmente, independente de introdução mecânica, sempre acho legal quando uma banda surge no palco já tocando, mas não foi o que aconteceu com o L7. Mesmo após o mencionado atraso, alguns rápidos ajustes ainda precisaram ser feitos. De repente, o baixo de Finch simplesmente soltou da correia e despencou no chão. Sparks levou na esportiva e brincou: “problemas do jeito certo”. Ela ainda cantarolou a palavra “problems” algumas vezes enquanto Finch, com a correia já ajustada no contrabaixo, afinava o instrumento. Antes de a banda dar início, contente com a recepção inflamada dos fãs a baixista deu uma dançadinha e corrigiu a amiga: “Problemas não é um problema. São Paulo, nós te amamos e sonhamos com você!”. Sparks completou: “Estamos muito felizes de estarmos aqui. Obrigado por virem esta noite. Isso é rock and roll!”. Problemas sanados, Plakas puxou a contagem nas baquetas e, com Donita Sparks no ‘lead vocal’, a banda iniciou com a comemorada Deathwish, hit de seu segundo álbum, Smell the Magic, de 1990.
A seguir, o quarteto mandou uma trinca arrasadora que deixou os fãs ainda mais ensandecidos. Começaram por dois de seus grandes hits, Andres, com Gardner no vocal, e Everglade, essa com Finch de ‘frontwoman’. Concluindo, tocaram a não menos bem recebida Scrap. Exceto pelo homônimo debut, datado de 1988, as “garotas” do L7 revisitaram todos os seus outros seis álbuns de estúdio, inclusive tocaram sua música mais antiga, Shove, que antes de ser incluída como faixa de abertura do citado Smell the Magic, estreou na coletânea Grunge Years: Sub Pop Compilation, ao lado de músicas do Nirvana, Mudhoney e Babes in Toyland, que também integravam o ‘roster’ da histórica gravadora grunge/punk Sub Pop. E já que citei o Babes in Toyland, vale lembrar que antes de integrar o L7, Jennifer Finch fez parte da banda Sugar Baby Doll, que tinha em sua formação Kat Bjelland, do referido grupo, e também uma tal de Courtney Love…
No decorrer do set, a L7 alternou músicas menos lembradas com clássicos certeiros. Aliás, não faltou nenhum clássico: tome Monster, One More Thing e Wargasm, por exemplo. De todo modo, os fãs cantavam tudo que ia sendo tocado – e se tivesse tido mais músicas no repertório, certamente eles também cantariam! E falando no público, composto majoritariamente por mulheres, o que se via era uma loucura (da boa) total! Assim que a primeira pessoa subiu ao palco e meteu um stage diving, “liberou geral”. Quer dizer, liberar não liberou, os seguranças ficaram malucos com tanta gente subindo e pulando. Teve fã que deu estrelinha na frente da banda, uma fã que caiu na festa e mostrou os seios antes de ser convidada a saltar em voo livre – porém seguro – e até um garotinho de menos de 10 anos que arrancou sorrisos quase que paternais de um dos seguranças que estava em cima do palco. A criança foi colocada ali na beira do palco e retornou para seus pais surfando sobre algumas pessoas que carinhosamente o ajudaram. Se teve um momento fofura naquela noite, indiscutivelmente foi esse! Apesar de em alguns momentos o trio de frente do L7 demonstrar certo temor com os “penetras”, nenhum (a) “invasor (a)” que subia ao palco desrespeitava o espaço das musicistas; o que se via era alguns aproveitando o momento para agradecê-las fazendo gestos de devoção ao quarteto que no início dos anos 90 explodiu mundialmente e que agitava qualquer país por onde passava, fosse em cima ou fosse fora dos palcos.
Apesar de hoje em dia Donita, Suzi, Jennifer e Dee estarem mais comportadas ao vivo, talvez por conta da idade e certamente pela maturidade, elas ainda mantêm suas características quanto estão em ação: Donita e Jennifer agitam o tempo todo, se comunicam mais do que as outras com o público e quando não estão cantando ainda se juntam lado a lado uma da outra e fazem algumas coreografias com seus respectivos instrumentos; Por sua vez, Suzi tem uma atuação ambígua, parece tímida quando está apenas tocando e descarrega raiva e ironia quando assume o microfone, soltando um vozeirão vozeirão que soa mais rasgado e agressivo do que o de suas ‘best friends’; já Dee Plakas é a mais compenetrada, não canta e nem faz vocais de apoio, porém dentro de sua simplicidade contribui jogando a favor da banda, executando suas partes como se fosse um relógio bem ajustado em funcionamento, não perdendo o tempo em nenhum momento e sem diminuir o ritmo.
O momento mais comemorado da apresentação do L7 certamente foi quando o grupo mandou sua música de maior sucesso no Brasil: Pretend We’re Dead. Gravada em Bricks Are Heavy (1992), álbum mais bem sucedido da carreira do L7, essa música foi bastante executada nas rádios rock do Brasil quando lançada e seu videoclipe a fortaleceu sendo exibido à exaustão na programação da MTV – e aqui em São Paulo em programas como o saudoso Clip Trip, da TV Gazeta, que era apresentado pelo carismático Beto Rivera. Depois dessa, a banda mandou Dispatch From Mar-a-Lago, uma afronta ao ex-presidente americano Donald Trump, que foi lançada em 2017, sendo a primeira música inédita do L7 após 18 anos. A provocativa Shitlist, também de Bricks…, encerrou a primeira parte do show mantendo o astral nos píncaros.
Para o bis, o L7 retornou com duas de Smell the Magic, o cover de American Society, da banda californiana de punk rock Eddie and the Subtitles, e Fast and Frightening. Durante o show, o grupo tocou também Stadium West, música de seu álbum mais recente de estúdio, Scatter the Rats (2019), porém deixou de fora o novo single Cooler Than Mars, que apesar de sonoramente estranho, tem uma mensagem positiva sobre os bilionários que estão obcecados pelo espaço ao invés de ajudarem a humanidade fazendo algo a respeito das mudanças climáticas. Particularmente, senti falta de Diet Pill, música que é muitas vezes tocada pelo L7 em seus shows. No mais, foi um show inquestionável, diria até que mais legal do que o que a banda fez em 2018 quando dividiu palco em São Paulo com seus compatriotas do Soul Asylum e com os brazucas do Pin Ups e do grupo Deb and the Mentals.
Após São Paulo, a turnê do L7 passou ainda por Ribeirão Preto (SP), Curitiba (PR), Porto Alegre (RS), Belo Horizonte (MG) e Rio de Janeiro (RJ). Quem compareceu a algum dos shows caóticos que Donita, Suzi, Dee e Jennifer fizeram naquela época no Estádio do Morumbi (SP) e na Praça da Apoteose (RJ), respectivamente, dessa vez em São Paulo certamente matou saudade, apesar de a apresentação ter ocorrido em um espaço bem mais modesto. Já quem não foi ou nem tinha idade para ir ou mesmo nem era nascido na ocasião mas viu dessa vez, sinta-se satisfeito por ter visto o L7 honrando a marcada deixada no país há 30 anos!
L7 setlist
- Deathwish
- Andres
- Everglade
- Scrap
- Shove
- Stadium West (Scatter the Rats, 2019)
- One More Thing
- Mr. Integrity
- Slide
- Can I Run
- Human
- Bad Things
- Monster
- Fuel My Fire
- Fighting the Crave
- Drama
- Non-Existent Patricia
- Wargasm
- Pretend We’re Dead
- Dispatch From Mar-A-Lago
- Shitlist
Bis
- American Society (cover de Eddie and the Subtitles)
- Fast and Frightening
As Mercenárias
- Mercenárias
- Dá Dó
- Inimigo
- Meus Pais Já Não Me Mandam Mais
- Há Dez Anos Passados
- Ação Na Cidade
- Poder
- Labirintos
- Eu Não Consigo Mais Dormir
- Danação
- Linha do Tempo Contínua
- Não Não Não
- Homem Bicho
- Somos Milhões
- Me Perco
- Intro
- Trashland
- Polícia
- Santa Igreja
Cólera setlist
- Duas Ogivas
- Alternar
- Minha Mente
- Por que Ela Não?
- São Paulo
- C.D.M.P.
- Repetição Constante
- Somos Vivos
- Palpebrite
- Marcha
- Medo
- Funcionários
- Quanto Vale A Liberdade?
- Dia e Noite, Noite e Dia
- Pela Paz