Fotos: Michel Camporeze Téer
O Brasil é agraciado por ter relações estreitas com algumas lendas do heavy metal. Como no caso de Vinny Appice, que vira e mexe dá uma passadinha no país. A trajetória desse gigante em solo tupiniquim iniciou no memorável dia 23 de junho de 1992, em São Paulo, quando Appice havia retornado ao majestoso Black Sabbath, que na ocasião fazia sua estreia no Brasil em turnê de divulgação de seu magnífico álbum Dehumanizer, lançado na Inglaterra apenas um dia antes. Dezessete anos depois, novamente junto de Tony Iommi, Geezer Butler e do saudoso Ronnie James Dio, Appice retornou ao país, só que com o quarteto ‘sabbathico’ atendendo agora como Heaven & Hell – menos de um mês antes, o “novo” grupo havia lançado seu primeiro e único álbum de estúdio, The Devil You Know. Mesmo após sua saída do Sabbath e da dissolução do Heaven & Hell, Appice seguiu nos visitando. Antes da pandemia do COVID-19, frequentemente ele vinha batendo cartão no Brasil nos últimos anos, seja fazendo shows solo, workshops de bateria ou sendo uma das estrelas dos projetos internacionais Big Noize e Metal All Stars. No entanto, devido à pandemia, amargamos quatro anos de saudade desse batalhador, que além da fama e da popularidade conquistados no Sabbath, Heaven & Hell e na fabulosa banda solo de Ronnie James, o DIO, tem aumentado seu currículo com trabalhos gravados com centenas de outras bandas e projetos, como Kill Devil Hill, Last in Line, Lynch Mob, Dio Disciples, Resurrection Kings, Dunsmuir, Martiria, Scream Taker, Serpent’s Ride, 3 Legged Dogg, 9 Chambers, Axis, Bruzer, Circle of Tyrants, Derringer, Hear ‘N Aid, Hollywood Monsters, Minoru Niihara (Loudness), Power Project, WAMI, WWIII e com seu não menos renomado irmão mais velho, o também baterista Carmine Appice. Mas felizmente o pior da pandemia já passou e os fãs brasileiros voltaram a encontrar o ídolo, que entre os dias 20 a 29 de outubro passou por diversas cidades, apresentando – como de costume em suas visitas solo – um repertório recheado de clássicos gravados ao lado de Ronnie no DIO e no Sabbath.
Em São Paulo, a apresentação de Appice foi ‘sold out’ e ocorreu no tradicional (e decorado para as festividades de Halloween) Café Piu Piu, localizado no boêmio e tipicamente italiano bairro do Bixiga. Por falta de informação, perdemos o show acústico e literalmente solo, em formato violão e voz, de BJ, músico conhecido de longa data da banda do vocalista americano Jeff Scott Soto e também por seus trabalhos com Tempestt e Spektra e por suas passagens pelo grupo sueco Talisman e pelo DangerAngel, da Grécia.
Assim como em 2018 e em 2019, para essa nova excursão pelo Brasil, Vinny Appice esteve novamente acompanhado dos talentosos Nando Fernandes (vocal), Edu Ardanuy (guitarra) – dupla que integra o Sinistra – e Fernando Giovannetti (baixista do Electric Funeral (Tributo ao Black Sabbath) e de diversas bandas autorais), trio esse que por si só já vale o ingresso. Marcado para começar às 21h30, o show atrasou em exatamente uma hora do horário divulgado (considerando, como dito antes, a falta de informação de atração de abertura). Nando, Edu e Fernando surgiram primeiro no palco e foram bastante aplaudidos. Após brincar com o público e soltar a garganta ao perguntar aos presentes, ‘Are you ready to rock?’, enquanto Ardanuy tocava um dedilhado na guitarra e Fernando tentava resolver problemas com seu equipamento, o próprio Nando anunciou: “Senhoras e senhores, não é todo dia que temos a oportunidade de compartilhar um espaço, uma energia e um amor… Que acho que todos aqui somos apaixonados e amantes do rock and roll, né? Recebam com muito respeito e muito carinho: Vinny Appice!”.
Enquanto Edu ainda brincava com a guitarra, a fera surgiu. A histeria foi geral. Posicionado em seu kit de batera, Mr. Vinny Appice pegou o microfone e mandou um “Olá, everybody!”. Impressionado com a quantidade de gente, agradeceu a todos pela presença, enganou-se ao dizer que tocou no Brasil seis vezes (foram sete!) e ressaltou: “Toquei em bandas maravilhosas em minha carreira, especialmente o Black Sabbath…” O público vibrou ao ouvir o nome da banda britânica e Vinny o repetiu, garantindo gritos mais entusiasmados. Depois disso, ele perguntou aos fãs se gostavam de Sabbath, ao obter a óbvia resposta positiva, brincou: “Eu também!”. E prosseguiu com a interação: “Toquei também com Ronnie James…” – dando a deixa para que todos gritassem “Dio”. Com Edu ainda viajando na guitarra, o baterista avisou: “Este show é dedicado a Ronnie James Dio. Curtam o show!” Pegando o gancho, Nando deu o sinal de comando ao público: “Vamos começar aquecendo a voz agora?”. Então a banda tocou o início de Heaven & Hell, do Sabbath, com Nando e público fazendo o coro tradicional “Ô, ô, ô, ô…”, e logo mandou Turn up the Night, do álbum Mob Rules (1981), na íntegra.
Aquela seria uma noite de clássicos, e a próxima pérola do set foi justamente The Mob Rules. E que porrada! Quando Ardanuy tocou o riff inicial, confesso que senti uma baita saudade de ouvir Ronnie James Dio soltar seu vozeirão, e também uma tristeza avassaladora ao pensar que ele se foi e que muitos ali nem sequer chegaram a vê-lo em um palco. No entanto, quando Nando começou a cantar, tanto essa quanto principalmente a música seguinte, a belíssima Children of the Sea, do álbum Heaven & Hell, o sentimento foi de que o baixinho estava sendo muito bem representado. Aliás, o Brasil tem alguns dos caras que melhor sabem emular a voz de Ronnie, como o próprio Nando, que é sempre escalado para acompanhar Vinny Appice; João Luiz (Golpe de Estado, ex-King Bird), que já fez parte do Evil Eyes (Dio Tribute) e do Electric Funeral, banda do radialista Vitão Bonesso que presta tributo ao Sabbath, e também Marcelo Saracino (RF Force, Undertime), que integra outra banda cover do grupo britânico, o Heaven & Hell.
É sempre um prazer ver Vinny de perto, pois além de sua classe, punch e elegância, ele ainda se permite improvisar e é sempre assertivo ao encaixar viradas criativas nos pontos certos das músicas. Mas, idolatrias à parte, comparando com suas passagens anteriores por São Paulo, confesso que dessa vez senti um Vinny Appice mais cansado e com uma pegada não tão pesada quanto de costume, talvez pelo show da noite anterior em Sorocaba (SP) ou pela própria idade; afinal, ele já é um senhor de 66 anos. Nas músicas, ele não deu nenhuma bola fora, longe disso, mas ainda que suas mencionadas viradas fossem concluídas com precisão, dentro do tempo, senti que alguns reflexos estavam mais lentos, já que em certos momentos ele cometia alguns ‘intervalos’ entre o início e a conclusão dos arranjos. Nitidamente, esses ‘intervalos’ eram propositais: artimanha e destreza que vêm da experiência de um batera rodado como Vinny, que ao perceber que pode se atrapalhar com uma virada improvisada, opta por economizar nota e valorizar sair do arranjo deixando o mesmo ainda dentro do compasso – é o que chamo de ‘saber jogar a favor da música’.
Prosseguindo, Vinny novamente pegou o microfone para falar do que viria a seguir: “Certo, a próxima música é do segundo álbum do DIO, chamado The Last in Line”. Ao ver a reação efusiva dos fãs, Vinny perguntou se eles gostavam desse álbum. Claro que a resposta foi positiva e unânime para essa obra-prima lançada por Ronnie e sua distinta banda em 1984. Nesse clima de alto astral, Vinny anunciou: “Essa música é a faixa-título, chamada The Last in Line”. O local quase veio abaixo e o público arrebatado de vez quando Ardanuy puxou o sempre emocionante dedilhado inicial desse hit metálico. Falando em Edu Ardanuy, os clássicos que Vinny gravou com o Sabbath e com o DIO estavam literalmente em boas mãos. Você leitor sabe que é chover no molhado falar do dom de Edu nas seis cordas, e vê-lo comandar riffs, solos e dedilhados dessas músicas que estão marcadas na história do heavy metal, mantendo a fidelidade e o respeito pelos arranjos e timbres originais, era como se estivéssemos ouvindo os próprios Tony Iommi e Vivian Campbell em nossa frente.
Outra que emocionou foi a obscura e densa The Sign of the Southern Cross, mais uma de Mob Rules. E o bicho pegou na música seguinte. Falo da minha favorita do Sabbath em todos os tempos e que foi agraciada por Vinny Appice com uma das mais marcantes introduções de bateria da história do heavy metal: Computer God, faixa de abertura de Dehumanizer. E foi um pecado que justo nessa um baixista com o talento e a pegada de Fernando Giovannetti tenha voltado a passar mais alguns perrengues com o equipamento no começo da música. Tirando isso e algumas partes em que Nando esqueceu de cantar, especificamente na parte mais porrada da música, tudo correu bem. Pena também que Computer God acabou sendo a única música tocada do poderoso Dehumanizer (sim, estou assumidamente puxando sardinha, porque é meu disco favorito do Sabbath).
Durante a execução de Computer God, lembrei-me da vez em que em uma das vindas de Vinny Appice ao Brasil, após coletiva de imprensa ele me confidenciou uma história engraçada e curiosa sobre as gravações desse álbum, enquanto autografava meu Dehumanizer em vinil: “A banda iniciou a pré-produção do álbum tendo o saudoso Cozy Powell na bateria, mas viram que não estava rolando legal e me ligaram. Lembro-me de a gente ficar super à vontade, só de cuecas, bebendo e compondo o disco em um lugar modesto, utilizando pequenos amplificadores. Inclusive, o Ronnie cantava com o microfone plugado em um amplificadorzinho de guitarra. Quem nos via, não conseguia acreditar que o “poderoso” Black Sabbath estava compondo nessas condições”. Agora tente visualizar essa imagem do Sabbath sem rir!
Depois de outra de Mob Rules, a inofensiva Voodoo (que bem poderia ter sido substituída por Falling Off the Edge of the World, por exemplo), Appice e seus comparsas brazucas apelaram com uma dobradinha de responsa do DIO: nada mais, nada menos do que Stand Up and Shout e Holy Diver. Depois dessa injeção de adrenalina, rolou uma surpresa. Silvio Golfetti, guitarrista original do Korzus, foi chamado ao palco e Edu lhe repassou sua guitarra. Grande fã de Black Sabbath, tendo inclusive gravado com o Korzus um cover da banda inglesa para Under the Sun, no EP Pay For Your Lies, de 1989, Silvio não escondia em seu rosto a satisfação de estar tocando junto com Appice. Por sua vez, para esse momento, Vinny mostrou que não tem ego inflado e inseriu ao repertório um dos maiores (senão maior) hinos do Black Sabbath, gravado pelo lendário baterista original Bill Ward, que ele teve a pesada missão de substituir em 1980: War Pigs!
Com Edu de volta ao palco no lugar de Golfetti, os fãs foram nocauteados com Neon Knights e a íntegra de Heaven and Hell, que havia sido usada em trecho no início da noite para aquecer o público. Com essas duas músicas atemporais, Vinny e Cia. encerraram a primeira parte do show. Para a alegria desse que vos escreve, na volta o quarteto tocou uma música pouco lembrada de Holy Diver, a ‘hardona’ Caught in the Middle. O show já prosseguia para o fim, mas ainda havia tempo para mais duas. Aí a banda alvejou o coração dos fãs com dois dos maiores clássicos da carreira solo do baixi… Não, do gigante Ronnie James Dio: We Rock e Rainbow in the Dark.
Faltou alguma música no set? Bem, claro que como fã bateu aquela vontade de ouvir Don’t Talk to Strangers, One Night in the City, Evil Eyes e Mystery, do DIO; a mencionada Falling Off the Edge of the World, de Mob Rules; Die Young, de Heaven and Hell; e quantas fossem possíveis de Dehumanizer. Mas, como dito no início, Vinny Appice já é um senhor de 66 anos e é compreensível que seria exaustivo para ele tocar um setlist maior. Só de poder revê-lo e feliz por estar tocando no Brasil, já valeu a noite. Que Vinny Appice siga saudável e continue tocando por muitos anos ainda, pois assim essa despedida terá sido apenas um “até breve”, já que enquanto ele estiver fazendo turnês, o Brasil sempre estará garantido em sua rota.