Por Valtemir Amler
Desde o início dos tempos, a humanidade sempre conviveu com monstros. Fossem eles reais ou imaginários, o certo é que eles sempre estavam lá, espreitando na escuridão, prontos para tomar proveito de cada uma de nossas pequenas falhas. Com o passar dos anos e o aprofundamento do nosso domínio sobre as ciências e recursos tecnológicos, o nosso medo de monstros acabou diminuindo ao ponto de eles terem se transformado em verdadeiros fenômenos da cultura pop. Do clássico Drácula de Bram Stoker ao Coringa do trio Bob Kane, Jerry Robinson e Bill Finger, passando pelo Pennywise de Stephen King e o God Hand de Kentaro Miura, o monstro na figura do vilão é hoje venerado na cultura de massas, muitas vezes tendo mais admiradores até do que sua contraparte natural, o herói. Talvez seja por isso que tantas bandas de metal tenham firmado sua imagem no místico e no sobrenatural, somos atraídos pelo sombrio e obscuro. Porém, às vezes não tem nada de obscuro, o ‘monstro’ é pura galhofa e diversão mesmo, como é o caso da veterana banda norte-americana Gwar, formada na Virgínia em 1984. Contando com uma performance ao vivo incendiária, trajes típicos dos velhos ‘tokusatsus’ que fizeram valer a nossa infância (alguém aí falou Jaspion, Jiraiya e Kamen Raider?), eles misturavam elementos do hard rock e do metal com uma dose gigantesca de groove, o que valeu destaque imediato na mídia norte-americana. Hoje, prestes a celebrar quatro décadas de atividade, a banda segue a mesma filosofia, como nos conta o vocalista Mike Bishop, ou melhor, Blothar The Berserker.
O que The Disc With No Name (2021) representou para o Gwar?
Blothar The Berserker: Bem, a verdade é que ainda estávamos no meio da pandemia, então basicamente estávamos tentando descobrir como trabalhar juntos sem termos que estar necessariamente juntos em um mesmo estúdio. Tínhamos essas canções acústicas em que estávamos trabalhando por volta daqueles dias, você sabe, as músicas que vínhamos trabalhando naquela série de eventos na internet, e queríamos dar uma chance real a elas. Queríamos ver se aquilo realmente poderia funcionar como um EP de verdade, conosco realmente gravando um disco de acústicas e tudo o mais. Havia a intenção de ver como algumas músicas soariam em formato acústico, e também existiam aquelas que tinham sido gravadas nesse formato já de início, como Gonna Kill You, que é naturalmente uma faixa acústica.
Achei aquela uma ideia interessante, afinal, quando falamos em Gwar, um álbum acústico não é a primeira coisa que vêm à mente.
Blothar The Berserker: Não mesmo (risos). Acho que ninguém pensa em violões quando o nosso nome é mencionado, e essa é uma das razões de valer a pena trabalhar em algo assim. Você sabe, depois de tantos anos nos palcos e nos estúdios perpetrando tantas histórias bizarras, começa a ficar difícil encontrar novas ideias, então bancar os caras normais poderia talvez surpreender todo mundo, certo? (risos gerais). E claro, durante a pandemia não podíamos fazer nenhum show, o que significa que não estava entrando dinheiro nenhum. Não podíamos mais pagar pela eletricidade, então o jeito foi gravar um disco acústico (risos gerais).
Logo em seguida, vocês tiveram Scumdogs XXX Live! (2021), um ao vivo bastante especial. Quer dizer, Scumdogs of the Universe (1990) foi meu primeiro disco do Gwar, e sei que é a mesma coisa com boa parte dos seus fãs. Então, acho que muita gente curtiu a ideia.
Blothar The Berserker: Sim foi algo bem especial para muita gente, a começar por nós mesmos! Quer dizer, haviam se passado trinta anos do lançamento de um dos nossos discos mais bem lembrados pelas pessoas, muitos caras se tornaram nossos fãs depois daquele disco e nos seguem até hoje, apesar de termos feito várias coisas estranhas ao longo dos anos (risos). Aí, veja, tínhamos feito aquela ‘livestream’ no auge da pandemia, o que basicamente significa dizer que já estava tudo gravado e que poderíamos usar de uma maneira ou outra. Sendo o material que é, e com o interesse das pessoas por ele, tudo o que precisávamos era de um cara que soubesse colocar uma qualidade real de som naquele material, para que soasse como um real disco ao vivo, e não uma coisa digital feita pela internet (risos). Quando encontramos Ronan Murphy, estava claro quem deveria fazer isso, e fizemos.
Você gosta da sonoridade original de Scumdogs of the Universe?
Blothar The Berserker: Eu gosto muito das músicas daquele álbum, mas nunca gostei muito da sonoridade dele. Nenhum de nós, acho que aquele disco nunca realmente conseguiu transmitir como nós soamos quando estamos juntos em um estúdio, tocando em uma mesma sala. As guitarras soam fracas, sem o poder que aquelas músicas realmente possuem. Eu sei que é um clássico e que as pessoas amam aquele disco, mas é por causa da qualidade das músicas, não por conta do som. Eu também amo aquelas músicas, e sempre esperei que chegasse o dia em que pudéssemos dar vida nova àquele material, algo que fizemos agora, ao lado de Ronan Murphy, então não poderia estar mais satisfeito do que estou.
E como foi revisitar todas aquelas músicas depois de tanto tempo? Quer dizer, na época do álbum original, o Gwar era quase thrash, e variou muito em estilo e performance desde então. Além do mais existem ali músicas que sempre fizeram parte do seu repertório, enquanto outras são bem mais incomuns em performances ao vivo.
Blothar The Berserker: Cara, positivamente posso dizer que foi incrível, foi uma experiência realmente ótima. Aquelas canções são pesadas, intensas, e definitivamente mais fáceis de tocar do que muita coisa que fizemos depois, já que estávamos compondo coisas mais simples e diretas naquela época. É como você disse, passamos por muitas experiências diferentes ao longo dos anos, o nosso material vai de um extremo a outro, e algumas de nossas músicas são realmente um desafio por serem rápidas e exigirem certa técnica para tocar, o que definitivamente não foi o caso aqui. Foi um setlist fácil de seguir, não precisamos ficar estudando, o que significa dizer que estávamos livres para realmente nos divertir com a experiência, viver aquilo que estávamos fazendo!
Voltando um pouco no tempo, existiu uma razão especial para o material de vocês ser mais simples e direto naqueles dias?
Blothar The Berserker: Acho que foram várias coisas, pra começar todo o cenário musical estava mudando nos anos 90, o rock alternativo tinha se tornado realmente grande, as bandas tradicionais estavam morrendo e os novatos estavam dominando a cena, e a música dos novatos era totalmente simples, bem diferente das acrobacias musicais que algumas bandas estavam fazendo nos anos 80. Havia até um certo exagero, preciosismo por parte de algumas bandas, e isso acabou afetando até quem não tinha nada a ver com aquilo. Também havia o fato que estávamos curtindo essa música mais direta, era o que realmente fazia a nossa cabeça na época. Por fim, também pesava o fato de que não éramos os instrumentistas mais hábeis e experientes do mundo naqueles dias, e tocar música realmente técnica e rápida com as vestes que usamos no palco é um desafio realmente grande, pode acreditar (risos gerais). Foi uma soma de fatores, mas que resultou em um disco muito bom.
Parando para pensar, essa última parte é algo que realmente vinha a calhar. Afinal, a performance sempre foi grande parte daquilo que vocês fazem.
Blothar The Berserker: Ah sim, é uma parte gigantesca! E foi assim desde sempre, quer dizer, esse tipo de música não deveria ser algo divertido? Eu sempre pensei que as pessoas vão para um show para se divertir, elas colocam um disco para rolar para relaxar, se distrair, se perder dos problemas do mundo por algum tempo. Eu nunca quis colocar um disco para rolar e me sentir como se estivesse de volta aos bancos da escola, com um professor arrogante me dizendo o que fazer e ensinando fórmulas e mais fórmulas, não acho que deveria ser assim (risos). Isso deveria ser divertido, fazer as pessoas terem bons momentos. A mesma coisa é um show. Sei que existem aquelas pessoas que estão lá para analisar o quão precisa é aquela banda ao vivo, mas esses caras não estão nos nossos shows. Desde que toquemos bem o suficiente para que eles reconheçam a música, está tudo bem (risos). O que eles querem é se divertir, sair do lugar comum. Sei que algumas pessoas vão ao nosso show e nem ligam para a música, estão ligados é no evento, na imagem, na loucura. Por mim, está ótimo, você terá o melhor de nós no nosso show, não importa o que veio buscar, pois nossa função é divertir as pessoas. E algo que nunca quis ser é alguém que aborrece os fãs no disco, e aborrece ainda mais ao vivo (risos gerais).
Como The New Dark Ages (2022) se encaixa em tudo isso que comentamos?
Blothar The Berserker: De verdade, acho que se encaixa muito bem. Sempre fomos uma banda diferente e que tenta coisas diferentes, e isso se mantém nesse mais novo álbum. Temos músicas bem diferentes entre si, pois o Gwar é feito por pessoas que não tem medo de mostrar suas influências, temos elementos de thrash, de hard rock, tem muito de punk rock, coisas de industrial e tudo mais o que você possa imaginar, pois não precisamos jogar dentro dos limites e das convenções estabelecidas para as bandas normais. Como Gwar, podemos fazer o que quisermos, e essa liberdade é o que conecta The New Dark Ages a qualquer outro dos nossos álbuns.
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