Por Daniel Agapito
Fotos: Belmilson Santos
Os dias entre 9 de novembro e 16 de novembro seriam uma loucura, isso não tem como duvidar. Em 7 dias teríamos em São Paulo shows de Asphyx, Converge, Satyricon, Enslaved e assim vai, ad nauseum. Até fora do metal o período foi recheado, com apresentações de Keane, Travis, Busted e Dinosaur Jr. Foi muito show pra pouco dia. O Hypocrisy, banda de Peter Tägtgren, já havia buscado conhecimento na capital paulista algumas vezes, no Carioca Club em 2010 e 2014 e pela última vez em 2022, na Audio, junto do Samael. Desta vez, viriam para o Fabrique Club, local consideravelmente menor. Mesmo com uma base de fãs sólida, teriam que competir contra o ícone Jerry Cantrell, ex-Alice In Chains, vindo sozinho pela primeira vez, e o Ne Obliviscaris, banda conceituada de metal progressivo. De qualquer forma, os mestres do melodeath tinham tudo para fazer um show de outro mundo, mesmo que fosse para um público reduzido.
A banda responsável por iniciar os serviços daquela noite foi a lendária Siegrid Ingrid, instituição do metal extremo paulistano. Nos anos 90, era uma das maiores forças do underground, fazendo diversos shows, inclusive no impeachment de Collor. Após um longo hiato, voltaram na época da pandemia e ano passado lançaram seu terceiro álbum, Never Again. Quem já viu um show deles sabe a pancadaria que é: os caras sobem no palco, deixam tudo lá e saem, sem pompas nem circunstâncias. Queria eu ter a energia do vocalista, o incrível Mauro Punk, que pula e corre pelo palco feito louco, também tendo uma voz poderosíssima.
O som em si estava um pouco complicado, nas primeiras músicas mal dava para ouvir a guitarra e a voz de Punk, mas tudo foi se ajustando conforme o show rolava. Em termos de repertório, fizeram uma boa mistura dos clássicos cult de Pissed Off (1996) e The Corpse Falls (1999), com faixas como Murder e Demência, e “pedradas” do novo disco, a exemplo de Nojo, Never Again, Templo dos Vermes e Drásticas Consequências. A performance em si foi bem curta, de menos de meia hora, e deu para ver que acabaram meio “no susto”, visto que não fecharam com a dobradinha de Enéas e Suicide, que geralmente encerra as apresentações da banda. Punk resumiu tudo quando disse: “Vamos fazer um show curto, simples e direto porque o que importa aqui é o som.”
Outro veterano, o Torture Squad, também estava divulgando seu trabalho mais recente, o brilhante Devilish (2023). Assim como em seus shows mais recentes, era lá que estava o foco do setlist, começando a noite com Hell Is Coming e Flukeman, igual ao início do disco. Buried Alive, a terceira, continuou a sequência do álbum, animando ainda mais o público, que já ocupava mais ou menos uns 70% da casa. A plateia estava majoritariamente animada, mas ainda não a ponto de abrir roda. Também, terça à noite é complicado, não dá para julgar.
A vocalista, Mayara Puertas, constatou que não era por acaso que estavam abrindo pro Hypocrisy, já que ambos têm músicas que falam do mesmo tema, alienígenas. Então, ela anunciou que iriam fazer uma sequência de faixas ufológicas, começando com The Fallen Ones, que fora lançada como single há alguns anos. Deram sequência com Area 51 e Abduction Was the Case, ambas da época de Vitor Rodrigues. Assim como o Siegrid Ingrid, o som estava inconsistente por conta de atrasos nos bastidores que impossibilitaram as passagens de som das bandas de abertura. Independente disso, entregaram um show de qualidade, como sempre.
A atração principal da noite, o Hypocrisy, subiu no palco pouco depois das 21h30. Para já enfartar os fãs, começaram com Fractured Millenium. Depois da introduçãozinha da Fractured, o que vem? Um grito absurdo de Peter. Mas cadê o grito? O som realmente estava muito baixo, com a voz de Tägtgren sumindo em meio aos outros instrumentos por conta de fatores que fogem do controle da produção. Fora isso, a guitarra do próprio vocalista também alterava o volume constantemente, o que deixou-o visivelmente irritado. A despeito disso, a galera estava curtindo, batendo cabeça, levantando os chifres pro ar e fazendo todos os outros gestos que são comuns em shows de metal. Para quem estava lá, não havia problema algum acontecendo.
Adjusting the Sun foi mais tranquila, ainda em alguns momentos o vocal do Peter dava uma sumida, mas o instrumental em si estava perfeito, impecável. Vale ressaltar aqui que a sonoridade do Hypocrisy é algo incrível, é o suprassumo do death metal melódico. Eles foram incrivelmente à frente do tempo deles, com sua influência em gêneros como o metalcore e o djent sendo palpáveis. Por exemplo, o breakdown todo “quebrado” de Adjusting segue a mesma fórmula do metalcore moderno, mesmo tendo sido lançado mais de uma década antes de boa parte das bandas do estilo começarem a pensar em existir. Na hora do breakdown, todo mundo bateu cabeça sincronizadinho, inclusive a banda.
Logo depois de terminar, o vocalista foi gritar o nome de Eraser, um de seus maiores hits, e o microfone simplesmente falhou por completo, não saiu nada. Ele foi direto pra mesa de som falar com um dos técnicos, claramente irritado. Quando viu que haviam arrumado o microfone, passou para a frente como se nada tivesse acontecido, “let’s try that again, Eraser!” (“vamos tentar de novo, Eraser!”). Apesar de todos os pesares, a execução foi perfeita, o som realmente já tinha dado uma melhorada e os fãs cantaram tudo a plenos pulmões. Logo antes do refrão, quando Peter grita “there is no time”, o público gritou substancialmente mais alto que a banda. O solo foi tocado com uma perfeição que chegou até a arrepiar os pelos de lá onde o sol não brilha.
Alf Peter Tägtgren, é um gênio da música. Apenas.
A roda demorou pra vir, mas quando veio, veio forte. Começaram um medley de hits antigos, iniciado por Pleasures of Molestation, um dos primeiros sucessos, vindo de Osculum Obscenum (1993), e a galera já animou, por conta de sua natureza mais brutal. Mesmo assim, nada de roda. A próxima foi a própria Osculum, e o medley fechou com a clássica Penetralia. Isso foi até que, no meio da música, o vocalista soltou um “I want to see you all go”, aí foi geral para o meio correndo e abriram uma baita de uma roda. Este que vos escreve até estava no meio na hora que esta roda começou, mas teve que recuar feito louco. Os fãs até pararam a roda um pouco, mas foi só até a primeira batida da caixa de Don’t Judge Me, depois o caos comeu solto.
Apesar de Children of the Gray ser mais nova, vindo de Worship (2021), isso apenas deixou mais impressionante quando grande parte da casa cantou o começo (“what a beautiful day to die”) e o refrão junto com a banda. Durante solo era possível ver que estavam todos vidrados, olhando fixo, e um mar de celulares subiu pra gravar. A performance dos caras era espetacular, o som estava bem mais ou menos, a luz mal deixava ver a banda, mas como os caras tocam! Eles são banda boa mesmo; mesmo com som ruim e luz ruim, o show tava foda! Não tinha uma música que a galera não aplaudia no final.
Nas mais antigas a galera moshava que nem louca, nas mais novas todo mundo cantava junto, estava bem equilibrado de certa forma. Depois de Children, o público abriu uma roda absurda mesmo, quase saindo na mão, mas era incrível o poder que os músicos tinham: começava o refrão que fosse, todo mundo parava e começa a cantar, soltando um “ô ô ô” junto, e depois voltava o caos. Until the End foi daquelas que o público não tinha o que fazer a não ser admirar as habilidades técnicas de todos os músicos da banda, que tiravam um som tão perfeito que parecia vir direto de um CD (se não fosse o som complicado).
A mais melódica e até certo ponto “menos ambiciosa” Fire in the Sky também foi o momento de um verdadeiro show, com o vocalista pedindo o clichê “scream with me” (“grite comigo”), mas não dava nem para acompanhar a intensidade de Peter. Sua interação com o público meio que se limitava a coisas assim, visto que ele estava visivelmente puto da vida com o som, falando muito pouco. O cara é simplesmente um dos maiores e melhores produtores do mundo do metal, se não o maior. Se tem alguém “nesse rolê” que entende de som e de como tirar leite de pedra para fazer um som bom é ele, então a sensação de tocar com som que não estivesse perfeito deve ser horrível.
Após Chemical Whore, foi falado aquilo que ninguém quer ouvir “do we have time for a few more?” (“Será que temos tempo para mais algumas?”) Estava acabando, infelizmente. Na mesma hora, o moshpit ali do meio tava ficando sério, com gente realmente se batendo e tendo que ser separada. Para fechar, escolheram Warpath, mais rápida e direta, com seções quase thrash, mas ainda mantendo a brutalidade e a atmosfera características do grupo. Curiosamente, foi a única música do subestimado Virus que foi tocada. Provavelmente por conta do tempo do show, vários álbuns foram representados por apenas uma música. Slave to the Parasites, por exemplo, foi “esquecida”, e ela está na “estante” há mais de 20 anos, de acordo com o setlist.fm.
Com todos os integrantes, menos o baterista Henrik Axelsson, fora do palco para “fazer aquela surpresinha”, voltaram para tocar sua música mais conhecida, acredita? Quem já ouviu qualquer versão gravada de Roswell 47 sabe bem do que se trata, uma representação em áudio do que é o Hypocrisy, instrumental de death metal sueco muito bem executado, vocais puxados das lacunas mais profundas das almas dos seres humanos e temas sobre ufologia, neste caso, o acidente de Roswell. Ao vivo, posso dizer com propriedade que tem o mesmo poder, se não mais. Só veja o vídeo e tire suas próprias conclusões.
No final, foram para o meio do palco, deixaram seus instrumentos, jogaram palhetas, distribuíram setlists e Tägtgren falou a típica frase de músico gringo, “thank you Brazil, we love you”. Desta vez foi diferente, soou real. Tudo conspirou contra este show: o anúncio foi feito bem em cima, aconteceu em uma terça à noite, chovendo, a luz estava complicada e o som também (por conta de atrasos nos bastidores). Tudo que tinha para dar errado, mas tudo que realmente deu foi contido pelas bandas. Soou verdadeiro, não como mais um discurso vazio.
O Hypocrisy pode tocar numa casa de idosos que rola roda, pode tocar para uma tribo que nunca teve contato com a humanidade que saem cantando. O poder dos caras ao vivo é absurdo, não tinha como não prestar atenção. Foi um daqueles shows que lavou a alma, única e exclusivamente porque no palco havia 4 músicos da melhor qualidade. Em termos de técnica musical, foi facilmente um dos melhores shows do ano.
Quem estava no show foi verdadeiramente abduzido pelos suecos. Agora é só esperar que façam contato com essa parte da Terra novamente o mais cedo possível. Para a próxima turnê, sugiro que toquem em Varginha e São Tomé das Letras – o público de lá orna muito com a banda.
Siegrid Ingrid – setlist
Back From Hell
Murder
Nojo
Forces
Never Again
Templo dos Vermes
When You Die
Drásticas Consequências
Demência
Torture Squad – setlist
Hell Is Coming
Flukeman
Buried Alive
The Fallen Ones
Area 51
Abduction Was the Case
The Unholy Spell
Hypocrisy – setlist
Fractured Millennium
Adjusting the Sun
Eraser
Pleasure of Molestation/Osculum Obscenum/Penetralia
Don’t Judge Me
Children of the Gray
Inferior Devoties
Fire in the Sky
Until the End
Impotent God
Chemical Whore
Warpath
Bis
Roswell 47
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