
Por Daniel Agapito
Inicialmente concebido como um projeto solo do multi-instrumentista Anaiah Muhammad em 2018, o grupo foi completo pelos guitarristas Braxton Marcellus e Dez Yusuf, o baixista Satchel Brown e a baterista Christine Cadette. De lá para cá, o Zulu tem rapidamente se tornado um dos nomes mais quentes do hardcore e powerviolence americanos, levando o som a um novo território com seu álbum A New Tomorrow (2023), que impressionou tanto fãs quanto críticos. Com influências que vão do rap ao reggae, conseguiram uma posição única no estilo, também ficando conhecidos por seus shows divertidos e caóticos, quase ininterruptos no ano passado. Já passaram por grandes palcos, como o festival Roskilde, na Dinamarca, e o Sound and Fury, em sua terra natal, e têm até um disco gravado nos estúdios da Audiotree. Agora, é a vez de o público latino experienciar esta avalanche sonora. Pouco antes de embarcarem para o começo da turnê, a ROADIE CREW conversou com Anaiah, Braxton e Dez, que nos deram uma prévia do show e falaram da importância cultural do hardcore.
Primeiro de tudo, o que os fãs brasileiros podem esperar da apresentação aqui no Brasil, tanto em termos do show em si quanto em relação ao repertório?
Anaiah Muhammad: Tocaremos algumas coisas mais velhas e algumas mais atuais. Quem já viu qualquer gravação dos nossos shows já sabe como são. Queremos fazer algo parecido, mas de um jeito mais especial por ser nossa primeira vez e termos tantos fãs pedindo. Não sei como, mas vai ser melhor ainda!
Braxton Marcellus: Vamos tentar trazer o máximo de energia que conseguimos! Estou muito animado para tocar aí no Brasil, essa energia já vai ser animal. Estou muito feliz também de poder tocar com o Black Pantera, sempre quis vê-los.
Vocês já excursionaram extensivamente os EUA e estiveram pela Europa recentemente. Como é finalmente poder fazer uma tour na América Latina?
Anaiah: É incrível, vir para cá esteve na nossa lista de desejos por muito tempo! Tocamos uma vez na Colômbia (Tattoo Music Fest 2024, ao lado do Merauder, Integrity e Sworn Enemy), e foi a primeira vez de todos nós na região. Agora, fazer a primeira turnê oficial em um continente completamente novo é algo surreal! É incrível ter esse privilégio de tocar em terras novas, esse ânimo nunca acaba!
Há algum artista latino-americano que influencie vocês, algum em específico que vocês curtam?
Anaiah: Não sou tão antenado quanto os outros integrantes, mas sei que o Braxton, por exemplo, adora Sepultura. Também tem uma banda muito boa da Colômbia na nossa gravadora, mas não estou tão ligado assim, estou animado para conseguir conferir um pouco mais dos nomes atuais!
Sei que alguns de vocês da banda são straight-edge, e aqui no Brasil estarão dividindo o palco do NDP Fest com o Earth Crisis, um dos grandes nomes do movimento. Qual foi o impacto deles na vida de vocês?
Anaiah: Muito! Sou straight-edge desde sempre e o Earth Crisis sempre foi uma das grandes influências, desde suas visões políticas, que alguns consideram extremas mas outros veem como a única solução – eu sou um desses. Estou muito animado de poder tocar junto com eles, é loucura dizer que estamos até no mesmo patamar, de ser headliners de um festival desses ao lado deles. É loucura. Fica realmente difícil mensurar o impacto deles em alguém como eu, parte da razão por ser vegano e straight-edge vem deles! Obviamente, não é só por isso, mas eles pavimentaram o caminho do veganismo para muitas pessoas. Resumindo, é muito legal!
Braxton: Eu e o Anaiah somos straight-edge, e acho que foi ontem que estava comentando com uns amigos, vão ser as olimpíadas do mosh ali. Todas as bandas mais pesadas do straight-edge na época me influenciaram, então quando vi que estávamos no mesmo show não consegui acreditar. Tocar com eles no Brasil ainda é um sonho.
Outro nome em ascensão que tocará com vocês é o Black Pantera, grupo que está fazendo um grande trabalho para conscientizar e espalhar a cultura negra. Já havia ouvido falar deles antes do festival?
Anaiah: Sim, já os conhecia e estou muito animado para vê-los, é vital que eles espalhem as mensagens que estão disseminando. Até onde eu sei, boa parte do diáspora africano se encontra aí no Brasil, é um país com significância histórica.
Ao seu ver, qual a importância de ter grupos espalhando a cultura negra pelo hardcore e na música no geral?
Anaiah: Essa pergunta é interessante,… É crucial tê-los, mas não de uma maneira que nos ‘tokenize’, que nos limite a apenas isso. ‘Ah, são grupos de pessoas negras’. Não, somos apenas um grupo, do mesmo jeito que o Black Pantera é. Estamos brigando para conseguir esse reconhecimento, para não ser um grupo de pessoas negras. Acontece muito, as pessoas nos rotulam desta maneira e no que fazemos, mas não queremos esse rótulo, queremos que este seja o normal. Você não falaria isso sobre outros grupos, sabe? Nunca é o caso, muito menos no nosso. Isso diz muito sobre o estado atual em que estamos e sobre o tanto que ainda temos que progredir para sermos reconhecidos como os outros. Essa representação é muito importante, é vital não ter que se sentir como se fossemos diferentes.
Braxton: É importante para mostrar essa representação. Se nós podemos fazer isso, imagina duas bandas no mesmo show. Vai ser muito importante. É muito legal poder finalmente nos conectarmos com eles, fazer isso juntos.
Estando à frente de uma nova geração do hardcore, de um renascimento, como enxergam a cena, no geral?
Dez Yusuf: Palestina livre! As pessoas estão quietas…
Braxton: Com certeza, boa Dez. Queria que tivesse um pouco mais de diversidade no som das bandas, muitas delas estão começando a ficar com um som muito parecido. Sou muito atraído por grupos com uma identidade sonora própria, um estilo único, ou que talvez puxem coisas de outros estilos mais antigos que tenham perdido espaço. No geral, a cena está incrível! Muitos rostos novos no show, muita gente focada e que sabe o que quer fazer. Não gosto de bandas que saem por aí querendo conexões na indústria e infiltrar o hardcore ‘faça-você-mesmo’. Gosto de ver bandas que estão realmente ligadas no espírito do hardcore, que estão ligadas no respeito, não estão tentando fazer bullying com os outros, nem se sentirem superiores aos outros. Precisamos de mais positividade no hardcore. As bandas que estão se divertindo, fazendo o que realmente querem e falam das coisas da vida real são as que me atraem.
Anaiah: Para complementar, é bom ver bandas ao redor do mundo que têm uma bela carga política, que falam de tópicos puxando a história de revolucionários radicais de suas próprias regiões. É vital ter essa conexão com suas raízes, seja a população indígena daqui falando de seus ancestrais ou pessoas puxando coisas de sua história, dos movimentos de libertação na Palestina, como o Dez falou, adicionando isso na música. Estamos fazendo isso, incluindo aspectos de nossa história na música. Espero ver mais disso, além da positividade, uma mistura de tudo isso, um amor radical pela música.
Braxton comentou em uma entrevista ao canal OnShuffle que o futuro do hardcore é mais inclusivo. Diria que este movimento realmente está acontecendo?
Braxton: É para essa direção que as coisas estão indo, precisamos trabalhar isso um pouco mais, mas está bem melhor do que estava antes. É um lugar melhor do que era antes, na minha opinião.
Pergunta bem especial aqui, e quem me mandou foi o Chaene da Gama, baixista do Black Pantera. Estar em uma banda de hardcore preta demanda coragem, sobretudo porque já estamos posicionados em relação à nossa existência. Como vocês lidam com os desafios de, por exemplo, não tocar ao lado de simpatizantes a nazis ou apoiadores de genocídios?
Braxton: Ao meu ver, é uma versão amplificada dos desafios que nós pretos temos que lidar no dia a dia por estarmos em um espaço alternativo. Não sei, é uma resposta bem complexa, poderia falar horas a respeito. Vamos ver o que Anaiah tem a dizer…
Anaiah: Tem tantas maneiras de abordar, mas vou falar só de uma. Um dos aspectos de tudo isso é a expectativa de dizer exatamente a coisa certa, sem erro. Tirando o hardcore da equação, no geral, esperam que a gente eduque e fale a coisa certa sempre, e quando isso não ocorre, vêm diversas críticas, somos ridicularizados. Estando em uma banda em que falamos de coisas que talvez não sejam políticas por si só, como nossas identidades, mas acabam se tornando políticas, temos que descobrir a coisa certa a dizer, mas, ao mesmo tempo, sem querer nos render ao que as pessoas querem que falemos. Não sei se deu para entender…
Braxton: Vivemos abaixo de uma lupa que é colocada em cima de poucas outras bandas. As críticas que são direcionadas a nós, esses parâmetros, não existem para nenhuma outra banda, e ninguém tem a vergonha na cara de admitir que é verdade. Vejo tantas bandas se safarem falando tanta coisa… Temos que prestar atenção em cada pingo de cada ‘I’, não temos espaço para sermos medíocres. Temos que atingir a perfeição, ser acima de todo o resto por conta desta lupa, todo mundo está acompanhando cada passo nosso. É um pesadelo, mas visamos passar disso. Estamos todos bem, nos divertindo, estaremos no Brasil tocando para pessoas que nunca vimos em um país em que nunca estivemos – então, como banda, acertamos em algo. Amamos tudo isso, mas com certeza somos mais cobrados do que muitas outras bandas.
Anaiah: Pode perguntar isso para qualquer performer negro e ele vai te dizer a mesma coisa, independente do estilo. Nós estamos em um gênero musical em que somos cobrados mais ainda por sermos minoria. Mesmo com tudo isso, ainda somos poucos.
Outra pergunta dele, que conecta bem com o que o Braxton falou de estarem vindo para o Brasil para espalhar sua arte para pessoas que te conhecem, mas vocês não conhecem, seria: ‘Gostaria de saber se eles têm dimensão do alcance deles. Falo isso mundialmente. Ouvir esse último álbum New Tomorrow, praticamente um ano depois do nosso Ascensão, foi absolutamente importante pra mim como homem preto.’
Anaiah: Sabe, falamos com e pelo povo onde quer que estejamos, essa conexão é a parte importante. Escuto isso direto deles, sobre o nosso impacto, é algo lindo de ouvir, é incrível pensar que conseguimos ter este impacto. Às vezes é interessante, porque não é sempre que estou pensando nisso, tem horas que estou ali no nosso mundinho, mas quando saio disso, vejo pessoas chegando em mim, agradecidas, falando que mudamos suas vidas, nunca nem pensaria nisso. Teve gente que usou nossas músicas como pauta de discussão em aula da faculdade, nunca imaginei que teríamos esse impacto cultural, é interessante pensar que fizemos isso num espaço alternativo.
Braxton: Estava comentando com os caras, você não tem como saber a importância que você tem na vida das pessoas, o que você vê como algo pontual pode ter um impacto profundo nos outros sem nem você saber. O fato de que estamos em outro continente e fomos convidados para tocar é realmente louco.
Cada integrante claramente tem uma gama de influências diversa. Como vocês juntam todas estas inspirações diferentes em um produto final coeso?
Braxton: Fazemos várias jams, vamos na base da tentativa e erro para contar com a coesão. Somos de todos os andares da vida antes de chegar na música, temos influências muito ecléticas, queremos juntar isso e ter certeza de que soa bem. Quando você tem tantos ‘cozinheiros na cozinha’, especialmente cozinheiros com estilos diferentes, pode virar uma zona se não for executado da forma certa. Então, sempre visamos refinar o processo e conversar de maneira que cheguemos no ponto e em um som que seja derivado de todos os demais.
Anaiah: Todas essas ideias diferentes acabam criando este nosso som diferente, interessante. É algo intencional em que há uma participação não só do nosso lado do hardcore, mas também de elementos de outros estilos.
Com isso em mente, algo que tem acontecido bastante aí nos Estados Unidos é a quebra de barreiras entre o hardcore e outros estilos, uma conversa maior entre gêneros. O Zulu, por exemplo, abriu o show do rapper GZA no começo do ano. Qual a importância desse tipo de diálogo?
Anaiah: É importante para mostrar a união da cena musical e também para expor públicos diferentes ao estilo. É algo que vem acontecendo há algum tempo já dentro do hardcore, mas acho que agora chegamos em um ponto em que as pessoas estão mais confortáveis para curtir abertamente outros tipos de sons fora o hardcore. Foi-se o tempo em que as pessoas te zoavam por ouvir qualquer outra coisa. Agora, elas podem se divertir com seus espectros musicais. O combo do hardcore com o rap, como fizemos com o GZA, já virou clássico, mas tem coisa bem mais louca.
Outra aspecto do trabalho de vocês que se destacou, ao meu ver, foram seus clipes, que mesmo sendo conceitualmente simples, sempre agregam um valor de produção altíssimo. Diriam que mesmo com os streamings e os algoritmos que agora dominam a música, o conteúdo visual ainda tem espaço?
Dez: Diria que sim! O aspecto visual é importante para mostrar às pessoas de onde você está vindo e qual sua mensagem. Dá uma chance aos artistas de contar histórias, narrar e criar seu próprio universo. Os clipes ainda são muito importantes, há uma cultura de, ao invés de sair de casa, chamar alguns amigos para socializar assistindo clipes. Gosto dessa ideia, de as pessoas ficarem de boa com os amigos assistindo nossas coisas.
O hardcore no geral é bastante ancorado em conseguir disseminar sua mensagem. Diria que os clipes são um meio eficaz para isso?
Dez: Sim! Depende muito do que você está tentando passar. Acho que conseguimos fazer isso com alguns de nossos clipes, destacamos nossas influências, homenageamos artistas diferentes que nos inspiram. Diria que é uma das maneiras mais eficazes de fazer isso.
Agora é com vocês: têm alguma consideração final, alguma mensagem para passar ao seu público latino-americano e aos leitores da ROADIE CREW?
Anaiah: Tenho algumas palavras a dizer, sim. Fiquem com o seguinte: primeiramente, é importantíssimo reconhecer os desafios que muitos de nós temos ao redor do mundo por conta de coisas como o imperialismo estadunidense. Neste continente, muitos sofreram, na África muitos sofreram, na Ásia a mesma coisa, em todos os lugares este imperialismo acaba ocasionando sofrimento. Sempre iremos nos solidarizar com o povo. Independente de onde você esteja no mundo, é importante se unir abaixo do mesmo guarda-chuva revolucionário, e se unir, independentemente de qualquer coisa, como nacionalidade, cor da pele etc. É vital realmente se unificar, e é para isso que serve a nossa música. É a música de todos os oprimidos. O que disse foi bem pesado, mas é a realidade, é onde o mundo está hoje em dia, tenho que jogar essa.
Braxton: Dez?
Dez: Palestina livre! O Congo também, Sudão, todos eles!
O Zulu se apresentará neste domingo (9/3) no palco do NDP Fest. Confira mais informações abaixo.
A New Direction Productions, que estreou em 2024 com marcantes turnês (Angel Du$t, Suicidal Tendencies, Joyce Manor, Gorilla Biscuits e Shelter) e já tem uma impressionante lista de shows para 2025, celebra um ano de atividades neste domingo no Espaço Usine com o 1º NDP Fest. A icônica Earth Crisis (EUA) e a sensação do hardcore Zulu são as atrações principais.
Mais duas forças da música pesada, de distintas gerações, dão ainda mais peso ao festival: Point of No Return e Black Pantera. Mais três bandas nacionais completam o evento: Clava, Hardgainer e Klitoria.
SERVIÇO
NDP Fest em São Paulo
Data: domingo, 9 de março de 2025
Local: Espaço Usine
Endereço: R. Barra Funda, 973, na Barra Funda, em São Paulo/SP
Ingressos aqui.
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