Tudo bem que o intervalo foi de apenas um ano, mas o motivo de o Living Colour ter retornado ao Brasil em tão pouco tempo foi plausível. Em 2018, o grupo veio divulgar Shade, seu mais recente álbum de inéditas. Dessa vez, o grande mote foi a celebração de 30 anos (agora trinta e um) de Vivid, bem sucedido álbum de estreia do Living Colour. Quem compareceu ao show do ano passado e nesse de agora, portanto, curtiu dois repertórios completamente diferentes um do outro: no anterior, o quarteto de Nova Iorque apresentou seu set regular; no atual, o grupo tem prestigiado Vivid em sua totalidade – além de incluir outras pérolas de sua respeitada carreira. Conclusão: era imprescindível que o Living Colour colocasse mesmo o nosso país na rota da “Vivid 30th Anniversary Tour”. E, convenhamos: que fã brasileiro dessa banda tão original, criativa e atemporal não iria querer presenciar o aclamado Vivid sendo tocado na íntegra? Tanto é que, em São Paulo, assim como em 2018, o Living Colour novamente arrastou uma multidão de seguidores para a Tropical Butantã, mesmo palco de sua última visita à cidade.
Quem chegou cedo pôde conferir a abertura do Remove Silence. Na ativa desde 2007, o grupo paulistano, que já foi pré-indicado ao Grammy americano, concorrendo nas categorias “Melhor Álbum de Rock” com o debut Fade (2009) e “Melhor Performance Hard Rock” com a música Pressure, aproveitou a ocasião para divulgar o seu mais recente ‘full lenght’. Lançado no último dia 25 de janeiro, Raw foi prioridade no setlist apresentado. De cara, Ale Souza (vocal e baixo), Fabio Ribeiro (teclado), Danilo Carpigiani (guitarra) e Leo Baeta (bateria) entraram tocando a trinca de singles que marca o início de Raw: a própria Raw, música de batida marteladora, que em 2017 já havia sido lançada em um videoclipe bem obscuro, a despojada Laser Gun e a instigante Middle of Nowhere.
O Remove, que já teve em suas fileiras o baterista Edu Cominato (Tempestt, S.O.T.O., Jeff Scott Soto) e o guitarrista Hugo Mariutti (Shaman, Andre Matos, Viper e Henceforth), conta em sua discografia não só com os mencionados Fade e Raw, como também com Stupid Human Atrocity (2012) e os EPs Little Piece of Heaven (2013) e Irreversible (2015). O grupo segue fazendo um som versátil, dispondo do uso de sintetizadores e iPads, o que resulta em um mix de música eletrônica, synth-pop, rock industrial e alternativo. No entanto, Raw mostra um Remove Silence soando mais direto atualmente. Isso ficou claro nas músicas desse álbum que foram executadas no show. E o público (ainda em número razoável), mostrou reconhecimento pelo som da banda, aplaudindo-a ao final de cada música tocada.
Antes de anunciar Irreversible, do EP de mesmo nome, Ale Souza falou do privilégio de abrir para o Living Colour, que afirmou ser admirado por ele e por seus companheiros. Ele ainda aproveitou o ensejo para prestar agradecimentos. Embora algumas pessoas pensassem que rolaria alguma homenagem à Andre Matos, ainda mais porque Fábio Ribeiro tocou com ele no Shaman, no Angra e na banda solo do saudoso vocalista, os músicos preferiram “viver esse show com um pouco mais de leveza”, conforme declarou Carpigiani ao site Ligado à Música. Prosseguindo, o cover do hit Enjoy the Silence do Depeche Mode animou muitas das pessoas presentes. Na sequência, veio a minha preferida de Raw: a pesada Nothing to Lose. A última a representar o novo álbum foi The Buzzer. Em seguida, Ale apresentou a banda e, após a agressiva Pressure e a eletrizante Spellbound, essa de Stupid Human Atrocity, ele e seus parceiros se despediram e foram bastante aplaudidos.
Cerca de cinquenta minutos depois, com a casa quase lotada, o Living Colour foi recebido euforicamente. O público estava ansioso para se divertir com a mistura de hard rock, funk, rhythm ‘n’ blues, hip hop, jazz fusion, punk rock e blues, que são os ingredientes mais substanciais na música do grupo americano. Antes de focar em Vivid, os geniais Corey Glover (vocal), Vernon Reid (guitarra), Doug Wimbish (baixo) e Will Calhoun (bateria) entraram tocando dois covers, ambos presentes em Shade: Preachin’ Blues, do saudoso blueseiro Robert Johnson, e Who Shot Ya?, do rapper americano The Notorious B.I.G., morto em 1997. Essa segunda, de título que veio a calhar, foi dedicada por Vernon Reid à Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro, socióloga e ativista dos direitos humanos, assassinada a tiros, em março de 2018 – Vale lembrar, o que parece que muitos esquecem, que o motorista de Marielle, Anderson Pedro Mathias Gomes, também foi morto, trabalhando pra ela, e deveria ter o mesmo reconhecimento. Ou será que até na hora da morte a política tem que estar em primeiro lugar? Prosseguindo, a banda mandou a primeira autoral do show: Freedom of Expression (F.O.X.), que abre Shade.
Passada a trinca inicial, Corey Glover, que trajava chapéu e um terno amarelo (revelo aqui que eu ri quando nosso fotógrafo Fernando Pires brincou dizendo que o vocalista estava parecendo cosplay do personagem principal do filme O Máskara), fez o aguardado anúncio: “Todos vocês sabem que essa é uma festa para nós, um aniversário, certo? Podemos fazer isso depois de muito tempo. E como agradecimento à vocês, tocaremos o álbum Vivid do início ao fim – e tudo o que tiver no meio.” O público explodiu, ainda mais quando Calhoun disparou o ‘spoken word’ no som mecânico, que evidenciou o hino Cult of Personality. Foi com essa música, 13° lugar no chart Billboard Hot 100 e 9° no Billboard Album Rock Tracks, que, em 1990, o Living Colour conquistou o Grammy Award como “Melhor Performance Hard Rock”. Estava iniciada, então, a íntegra de Vivid, álbum que alcançou impressionantes 6° lugar no Billboard 200, 5° no RPM Top Albums 100 (CAN) e 2° nas paradas neozelandesas, além de ter obtido a benção de Mick Jagger (Rolling Stones) na produção, em parceria com Ed Stasium (Talking Heads, Ramones).
A sequência do set respeitou o ‘tracklist’ de Vivid. Assim sendo, a próxima foi I Want to Know, em que Reid foi absurdo no solo. Ao término de Middle Man, o quarteto foi extremamente aplaudido. Fica difícil escolher para qual músico olhar quando o Living Colour está no palco, tamanho o talento de Glover, Reid, Calhoun e Wimbish. Em Desperate People, por exemplo, eles detonaram nas improvisações, especialmente Reid. Na belíssima Open Letter (To A Landlord), Reid estendeu o dedilhado inicial, sendo acompanhado por Wimbish, que utilizou alguns efeitos no baixo. Por sua vez, Glover ia deixando os fãs atônitos com sua voz privilegiada, ferramenta essa que ainda justifica seu posto como um dos melhores cantores de rock de todos os tempos. Assim que Glover terminou de apresentar a banda, seus parceiros deram início à um breve instrumental, em que Wimbish mandou ver solando, até essa jam culminar na funkeada Funny Vibe, música que em estúdio teve a participação dos fundadores do Public Enemy, o MC Chuck D e o hype man Flavor Flav.
Outra que acabou sendo muito bem recebida, com os fãs gritando “Living Colour” em coro, foi a suingada Memories Can’t Wait, cover do Talking Heads. Na sequência, vieram duas que, originalmente, contaram com o “padrinho” e descobridor do Living Colour Mick Jagger na gaita e nos backing vocals, respectivamente. A primeira foi a cadenciada Broken Hearts e a outra foi Glamour Boys. Tal mega hit, cantado em uníssono pelo público, começou mais dançante e no decorrer inspirou o animado Glover a dançar de modo engraçado. Engraçado também foi a simulação de uma discussão entre Reid e Glover, que, por várias vezes, lhe disse: “I hate you!”. Falando em Reid, o cara parecia possuído de tão entregue ao show. Falante como eu nunca o vi, o guitarrista fez um longo discurso em cima do final da música What’s Your Favorite Colour? (Theme Song), que a cada vez que essa pergunta era feita no refrão os fãs respondiam de prontidão: LIVING COLOUR! A festa de 30 anos de Vivid, logicamente se encerrou com a energética Which Way to America?. Mas calma que teve mais…
Concluída a íntegra de Vivid, o trio de frente deixou o palco livre para o “monstro” Calhoun brilhar sozinho por pouco mais de dez minutos. Em seu ato, o baterista apresentou um número semelhante ao que fez no ano passado, utilizando-se dos mesmos elementos. Esbanjando criatividade, Calhoun massacrou seu kit com um solo cavalar, depois se levantou e se dirigiu à um pad eletrônico Korg Wave Drum, que estava disposto do lado esquerdo de sua batera. Com esse pad, o músico criou loops e tirou um som hipnótico, que serviu de base para Calhoun retornar ao seu posto original e, com as luzes apagadas, se divertir nos tambores, pratos e caixa, surrando-os com baquetas vermelhas luminosas. Pensa que acabou? Ora, estamos falando de Will Calhoun! Assim como no solo do ano passado, ele encerrou sua performance na frente do palco, tocando apenas com as mãos um aFrame (cilindro de estrutura eletrogênica). Foi um show à parte!
Com todos de volta às suas posições, Love Rears it’s Ugly Head, single do segundo álbum do Living Colour, Time’s Up, de 1990, foi a bola da vez. Empolgado, no decorrer dessa Glover foi cantar no pit, encostado aos fãs que estavam colados na grade. E ali Glover permaneceu durante a contestadora Elvis is Dead, que teve seu refrão repetido à exaustão. Inclusive em português, todos obedeciam ao comando de Glover e Reid: “Elvis está morto”. Para que você entenda, na letra dessa música Reid questiona a imagem construída de Elvis Presley pela mídia, traçando um paralelo com o racismo presente nos Estados Unidos, como pode ser observado, por exemplo, no trecho que diz: “Elvis era um herói para a maioria / Mas isso é irrelevante / Um homem negro o ensinou a cantar / E ele foi coroado à rei”. No meio de Elvis… rolou ainda uma inserção de Hound Dog. Pra encerrar a noite, mais um show de improvisação, agora com a pesada Type.
Que show foi esse, meu amigo? Muitos saíram dizendo que foi superior ao de 2018. E olha que aquele já havia sido muito bom! Agora é torcer para que o Living Colour retorne pela terceira vez consecutiva ao Brasil em 2020. Acha um exagero? Talvez você mude de ideia, então, se eu lembrá-lo que no ano que vem será a vez de Time’s Up completar 30 anos. Para isso acontecer, tomara que o Living Colour resolva celebrá-lo também! E quem se sentirá incomodado se eles também passarem por aqui em 2023 quando Stain se tornar um balzaquiano? Aguardemos…