O mês de outubro começou quente em Porto Alegre. E não me refiro apenas ao calor escaldante em pleno outubro, mas também nos shows realmente quentes levados a cabo por tantos monstros do som pesado. O ginásio Gigantinho já recebeu tantos shows memoráveis em mais de 30 anos que fica difícil eleger o melhor. Por lá já passaram Quiet Riot, Ramones, Sepultura, Motörhead, Black Sabbath (com Dio!), Iron Maiden, Deep Purple e outras bandas clássicas, além de ter sediado diversos festivais na década de 1980 com muitas bandas locais, como o Astaroth.
E pela segunda vez os fãs gaúchos puderam presenciar Whitesnake e Scorpions no mesmo local, após 14 anos. Em 2005 o Whitesnake dividiu o palco com o Judas Priest em shows eletrizantes, e o Scorpions havia sido o headliner do festival Live ‘n Louder, fazendo um show pesadíssimo e cheio de hits. Já o Helloween veio para o Brasil em substituição – mais do que acertada – ao Megadeth, que por motivos de saúde de Dave Mustaine foi obrigado a cancelar todas as datas de 2019. Esta foi a sexta apresentação do Helloween em Porto Alegre e a segunda com Kiske e Hansen no line-up.
A abertura do festival ficou por conta da banda local Cartel da Cevada, que faz um rock and roll/hard rock pra lá de competente e com muito amor pela cultura gaúcha. O último disco dos caras é uma verdadeira ópera rock tradicionalista, que une elementos tradicionais do gaúcho tanto em suas letras como na sonoridade. Cartélico Vol. 1: Fronteira, Trago e Querência foi muito bem representado pelas mãos de Igor Assunção (vocal/guitarra), Fernando Rosa (guitarra), Leo Bacchi (baixo), Alberto Andrade (bateria) e Lucas Rosa representando o diabo, que é gaudério! Vestidos como manda o figurino retratado no álbum, foram tocadas músicas como A Barbada, O Assador, Enquanto a Ceva não Gela e a emblemática O Diabo é da Fronteira, que encerrou o show.
Ainda que os shows tenham começado cedo, na hora em que os alemães do Helloween subiram ao palco o Gigantinho já contava com um público relativamente grande e que derretia com o calor. E nem é preciso dizer que o Helloween já entrou com o jogo ganho. O estratégico retorno de Michael Kiske (vocal) e Kai Hansen (vocal/guitarra) tem dado ao público um show absurdamente empolgante e envolvente, recheado de clássicos cantados por seus vocalistas originais. Era perceptível a boa desenvoltura que ambos conquistaram ao lado de Andi Deris (vocal), Michael Weikath e Sascha Gerstner (guitarras), Markus Grosskopf (baixo) e Dani Löble (bateria), entregando aos fãs uma verdadeira aula de power metal.
Quando a intro Initiation ecoou no som a empolgação dos fãs já era palpável, abrindo os caminhos para I’m Alive, clássica abertura do álbum Keeper of the Seven Keys Part I. Kiske e Deris deram um show à parte dividindo a música, ratificando assim a importância e a qualidade deste retorno. A partir daí foi uma sucessão de hits, embalados por bons efeitos de luzes e multimídia e uma linda decoração com uma bateria de quatro bumbos. Num show onde todas as músicas foram destaque, é interessante citar Ride the Sky e How Many Tears, em versões pesadíssimas e empolgantes e a inigualável Power, um dos maiores clássicos da fase Deris. I Want Out teve a missão de encerrar mais uma belíssima apresentação das aboboras germânicas em solo gaúcho, com grandes balões pretos e laranjas sendo jogados ao público. O posto de maior banda de metal melódico é do Helloween e pelo jeito assim o permanecerão por muito tempo.
Falar do Whitesnake e da figura carismática de David Coverdale é chover no molhado. Se em 2005 este que vos escreve chorou naquele show com o Judas Priest, desta vez as lágrimas foram contidas para o Scorpions. A figura de sex symbol do ex-vocalista do Deep Purple continua a mesma, e mesmo com seus quase 70 anos, continua desfilando com os mesmos trejeitos, e ao contrário do que é dito por aí, continua com uma grande voz. Mas é claro: a presença do baixista Michael Devin não se resume apenas aos sons gordos de seu instrumento, mas também dos seus backing vocals, que são essenciais para que Coverdale faça uma apresentação honesta e verdadeira. Embora a voz de Coverdale soe estridente em alguns momentos, é claramente compensada pelos backing vocals e pela ajuda do público.
Também entrando com o jogo ganho, foram clássicos atrás de clássicos, iniciando com Bad Boys, passando por Slide It In, Love Ain’t No Stranger, Slow an’ Easy, Here I Go Again e Still of the Night. Mas foi na tradicional mela cueca Is This Love que a multidão veio abaixo, acendendo as lanternas dos celulares a pedido do vocalista. Os guitarristas Reb Beach e Joel Hoekstra também deram um show à parte, mas, justiça seja feita, quem merece todos os aplausos é o monstro chamado Tommy Aldridge, que no alto de seus 69 anos toca como se não houvesse amanhã. O solo de Tommy culminou com ele abandonando as baquetas e tocando apenas com os punhos, sendo ovacionado efusivamente. O encerramento do show levou os fãs de Deep Purple à loucura: Burn continua sendo uma das músicas mais emblemáticas da banda inglesa e da carreira do gigante loiro. Que sua voz e imagem permaneçam inabaláveis por muitos anos!
E foi com uma música mais recente que o Scorpions iniciou seu show. Going Out With a Bang faz parte de Return to Forever, lançado em 2015, servindo como uma boa abertura. Ainda que o som não estivesse num volume bom neste início da apresentação, foi interessante ver a banda novamente, após longos 14 anos. O vocalista Klaus Meine é outra figura emblemática, e com 71 anos ainda consegue conduzir o show de forma soberba. Sua voz anasalada é muito agradável de ouvir, e o sentimento de nostalgia a cada refrão é algo de outro mundo… Como experiência pessoal, relato que o primeiro CD que comprei foi o Worldwide Live, que desde então é um dos meus CDs ao vivo preferidos. E o show em Porto Alegre foi como uma versão atual daquele lançamento de 1985: praticamente metade do set list está contida em Worldwide Live. E assim como em 2005, o show foi extremamente pesadíssimo. Os guitarristas Rudolf Schenker e Mathias Jabs continuam afiados e suas performances são dignas de dinossauros do rock. Rudolf, com 71 anos, e Mathias, com 63, tem energia de sobra e fomos presenteados com riffs e solos que beiram a perfeição.
O cenário de palco do Scorpions é um dos mais interessantes que já vi nos últimos anos, com a bateria de Mikkey Dee num andar elevado, e no fundo (e abaixo da bateria), projeções multimídia eram trocadas a cada música. No medley de músicas setentistas, composto por Top of the Bill / Steamrock Fever / Speedy’s Coming / Catch Your Train, o fundo era composto de imagens lisérgicas. Aliás, foi muito emocionante ouvir um pedaço de Steamrock Fever, lançada originalmente em Taken by Force, em 1977. Entre um som mais pesado e outro, as baladas tiveram seu grande destaque. Send Me an Angel ganhou uma versão acústica, enquanto Still Loving You mostrou-se ainda muito eficaz. Mas foi com a emblemática Wind of Change e seu grudento assobio é que o Scorpions fez muito marmanjo se abraçar e chorar.
Uma coisa é certa sobre o Scorpions: eles farão muita falta quando realmente pendurarem as chuteiras. O grande X da questão é Klaus Meine, que embora ainda cante bem e tenha total domínio do palco, nota-se a fragilidade de seu corpo, pois o restante dos músicos ainda tem muita lenha pra queimar e estão em forma. E no solo de bateria de Mikkey Dee talvez muitos esperassem o mesmo que eu: “ele vai puxar alguma música do Motörhead a qualquer momento…”. Ledo engano, mas assim como Tommy Aldridge, é uma verdadeira máquina de espancar peles e pratos! Coube a Rock You Like a Hurricane encerrar mais uma excelente apresentação dos escorpiões no Rio Grande do Sul, e provavelmente, a última.
No mais, foi uma noite memorável, comprovante a importância destas bandas para o som pesado, e mostrando, que apesar de todos os revezes que o brasileiro tem passado, a vontade em curtir um rock ao vivo bate mais forte. Que venha o Iron Maiden na próxima semana (09/10) e o Metallica no próximo ano (21/04/2020), ambos tocando na Arena do Grêmio. E é claro, continuem prestigiando os eventos underground que rolam toda a semana pelo Rio Grande do Sul, bem como de outras bandas “mainstream” que tem colocado o RS na agenda.