O que esperar de uma banda que esteve no Rio de Janeiro e no mesmo Circo Voador no ano anterior? No caso do Epica, a questão não é o fato de a apresentação em março de 2018 ter sido parte da turnê de The Holographic Principle (2016), enquanto desta vez a banda holandesa estava comemorando os dez anos de Design Your Universe, um daqueles álbuns apontados pelos fãs como o favorito. Não, no caso do Epica, a questão é que o grupo pode voltar ano sim, ano também que vai encontrar casa cheia e fãs de braços abertos. Mais do que isso, é interessante chegar à conclusão de que o sexto show na cidade nada maravilhosa foi provavelmente o melhor de todos desde a primeira vez, em 2005 – aliás, cinco foram somente nesta década (2010, 2012, 2015, 2018 e 2019).
Tudo bem. Pode ser a empolgação recente, uma vez que todas cinco apresentações anteriores foram acima da média – sim, o Epica é muito bom de palco. Pode ser também que o repertório com nove músicas de Design Your Universe tenha ajudado, mas a verdade é que aquela noite de domingo mostrou ser especial a partir do momento em que, na ordem e com o prelúdio Samadhi rolando nos PAs, entraram no palco Ariën van Weesenbeek (bateria), Coen Janssen (teclados, fazendo aviãozinho), Mark Jansen e Isaac Delahaye (guitarras e vocais guturais), Rob van der Loo (baixo, único da atual formação que não gravou Design Your Universe) e, já com Resign to Surrender arrepiando, Simone Simons (vocal).
Mas por que parecia especial? Não era só a animação do público que lotou a lona mais famosa do Rio, mas também a percepção de que havia algo errado no palco, digamos assim. Ao fim da arrasadora trinca de abertura do quarto disco de estúdio – exatamente, as espetaculares Unleashed e Martyr of the Free Word foram tocadas na sequência –, algo estava bem claro: parada no centro do palco, balançando os cabelos e interagindo com a plateia de lá mesmo, Simone parecia cansada, o que poderia ser justificado pela extenuante agenda da turnê. Não era isso, mas uma indisposição gástrica que acometeu também Jansen, que, de fato, parecia muito mais concentrado em seu instrumento do que o normal, apesar de não poupar sorrisos.
Mas o que isso significou? Nada. Vamos adiantar um pouco o repertório, direto para Burn to Cinder, que ficou espetacular ao vivo e jogou todos os holofotes no fim para Simone, que continuou a brilhar na belíssima Tides of Time. Desconforto estomacal? Meu amigo, se ela já estava cantando muito desde o início, aqui deixou todo mundo de queixo caído, dos que não perceberam nada aos que notaram que alguma coisa estava errada. Ironicamente, no entanto, o fato de a vocalista não ter se movimentado tanto pode ter ajudado as fãs a prestarem mais atenção ao seu vestuário. “Nossa, que vestido bonito que ela está usando”, disse uma admiradora, completando, algumas músicas depois, quando a viu em cima do praticável entra o teclado e a bateria. “Que sapato lindo! Queria saber onde ela comprou.” Tenho certeza de que foi uma indireta para o namorado, então segue a foto dos sapatos para o rapaz correr atrás. O Natal está chegando.
E sim, presente no Instagram como fotógrafa amadora, modelo involuntária e especialista em maquiagem (ela é embaixadora de uma famosa marca de cosméticos), Simone inspira muitas mulheres. E isso é ótimo, convenhamos, mas de nada adiantaria sem o talento musical, e é por isso que todo Epica continua em ascensão. Antes do momento ‘fashion’, a banda tinha feito bonito em Our Destiny (com uma bela iluminação verde para compor o cenário) e Kingdom of Heaven, cujo instrumental mais intrincado, com uma ótima inserção de violão, mostra como as entradas de van Weesenbeek e Delahaye, dois músicos com background de metal extremo, foram benéficas ao Epica.
E você se lembra da menção ao fato de a banda ser muito boa de palco? Talvez pelas limitações temporárias de Simone e Jansen, Delahaye e Janssen resolveram brincar, interagir e levar suas performances a outro nível, tipo tocar depois de beber uma dúzia de latinhas de energético. Cada um. Deu ainda mais gosto de ver, algo que van der Loo pouco conseguiu, afinal, praticamente não parava de bater cabeça e sacudir as longas madeixas. Quando o fez, abriu um enorme sorriso ao notar a festa constante que os fãs faziam na pista e na arquibancada. “Vocês querem mais uma? É uma música do The Quantum Enigma, e Começamos a tocá-la nesta turnê”, disse Simone ao anunciar In All Conscience, que ficou sensacional e nem pareceu soar como novidade para os fãs.
“Vocês querem cantar comigo?”, perguntou Simone mais uma vez. Seu desejo é uma ordem, ainda mais quando a música é Cry for the Moon, o hino máximo do álbum de estreia, The Phantom Agony (2003), lançado quando a vocalista mal havia atingido a maioridade. E foi a catarse esperada por todos, uma vez que se trata fácil, fácil de uma das favoritas de cada fã nestes 16 anos de Epica, e nem mesmo o solo de van Weesenbeek no fim, meio de zoeira mesmo, esfriou o clima. Para fechar o set antes do protocolar bis, Design Your Universe até poderia ter ficado para fechar a noite, uma vez que, além de ser a faixa-título do álbum que é a razão da turnê, o fim com piano e voz, ressaltado pela luz vermelha em cima de Simone, resultou num clima todo especial.
E o bis? “Que calor! Este é o show mais quente até agora”, disse Janssen, depois de soltar as notas de We Will Rock You, do Queen, em seu keytar. “É por causa do clima ou são vocês? Ah, vocês é que são lindos. Não podemos nos esquecer disso. Fazem moshpit sem que precisemos pedir.” Depois do tecladista, estava aberto talk show. “A palavra da noite e ‘mais’”, brincou Delahaye, estendendo a diversão ao colocar a plateia para, claro, pedir mais. “Olá! Tudo bem, metaleiros?”, perguntou van Weesenbeek, obviamente de maneira nada pejorativa. Mas era hora de música, e Sancta Terra deu o pontapé num encore que contou com Simone empunhando bandeiras do Epica e do Brasil, obviamente com uma intenção bem diferente da dos “cidadãos do bem” que transformaram a bandeira nacional e a camisa da seleção brasileira em símbolos indesejáveis.
Mas como a verdadeira intenção era celebrar, Delahaye pediu que os fãs abrissem uma roda na pista. E os fãs abriram. Janssen ameaçou descer para tocar no pit. E desceu. Foi uma festa, realmente, mas uma que não poderia acabar ali. “Vocês fazem moshpit, batem cabeça e se divertem demais. Vocês são o melhor público, e é por isso que os amamos”, disse Simone, com um enorme sorriso no rosto e jeito de que valeu mesmo qualquer esforço para realizar o show. “Estão prontos para pular?”, perguntou a vocalista antes de anunciar Beyond the Matrix, que quase colocou a casa abaixo.
Quase porque o derradeiro desfecho, com Consign to Oblivion, começou com um ‘wall of death’ pedido por Simone e, claro, atendido com prontidão pela plateia. Um encerramento apoteótico, com a banda distribuindo coraçõezinhos e estendendo a permanência no palco para reverenciar seus fãs cariocas. E nem mesmo a ausência de Quietus e da dobradinha com Deconstruct e Semblance of Liberty, que ficaram fora certamente por causa dos problemas como Simone e Jansen, macularam aquele que foi mesmo o melhor dos seis shows da banda holandesa no Rio de Janeiro em quase 15 anos de relacionamento. Pontos para os fãs cariocas do Epica – não necessariamente para os fãs cariocas de metal, que estão devendo – e para a banda, que já pode começar a planejar a volta para 2020.
Setlist
1. Resign to Surrender
2. Unleashed
3. Martyr of the Free Word
4. Our Destiny
5. Kingdom of Heaven
6. In All Conscience
7. The Price of Freedom
8. Burn to a Cinder
9. Tides of Time
10. Cry for the Moon
11. Design Your Universe
Bis
12. Sancta Terra
13. Beyond the Matrix
14. Consign to Oblivion