Antes de qualquer outra coisa, vou usar o início desta resenha como confessionário. Desde o dia 8 de junho de 2019 que não escuto, voluntariamente, nenhum disco do Viper, do Angra ou do Shaman com Andre Matos. Não escuto nenhum álbum com a voz do Maestro, o que inclui Virgo e Symfonia, ou qualquer música que tenha sido originalmente gravada por ele. Até a noite de 14 de fevereiro de 2020, quando o Shaman levou a sua Nagual Fly Tour ao Rio de Janeiro, foi a minha maneira de lidar com a morte dele – porque escrever alguns textos em sua homenagem já havia sido difícil. Não conferi o setlist; não assisti a nenhum dos vídeos do show de São Paulo que pintaram em redes sociais e no YouTube; e tentei me esquivar de qualquer informação, evitando ler comentários e resenhas.
Assistir ao show no Circo Voador já seria uma carga emocional grande o suficiente, e a tarefa de transformar a experiência de ver o Shaman sem Andre Matos à frente – felicidade que havia revivido no fim de 2018 – não era daquela para ajudar, honestamente. Mas Hugo Mariutti (guitarra), Luís Mariutti (baixo), Ricardo Confessori (bateria) e Fábio Ribeiro (teclados) ajudaram. Alírio Netto (vocal e teclados) também ajudou. E o público presente, então, ajudou como eu não poderia imaginar. Ao contrário da minha postura contemplativa – e desde já peço licença para usar a primeira pessoa em alguns momentos, porque este texto é mesmo pessoal –, os fãs que compareceram em bom número, mas aquém das expectativas, transformaram um show de contornos sentimentais numa noite muito vibrante e positiva.
Turn Away ratificou sua posição de ótima música de abertura, e a postura do quinteto foi à altura, principalmente a de Alírio, que entrou no palco como se já ocupasse o posto há muito tempo. Distant Thunder aqueceu ainda mais os ânimos da plateia, enquanto Reason fez justiça ao alto nível do álbum que leva seu nome. “É um privilégio estar aqui, e é também uma homenagem ao legado do Andre e desses quatro caras aqui, com todo meu respeito”, disse o novo vocalista em seu primeiro contato com o público, lembrando que a continuação do trabalho era também dedicado aos fãs. Ele trouxe à tona a história da fã que esteve no primeiro show da turnê, em São Paulo, cinco dias antes, e agora estava entubada num hospital. “Mas ela está aqui de coração.”
Pronto, o jogo estava ganho. Duvida? Pista e arquibancada não apenas cantaram bonito For Tomorrow, o que era previsível, mas gritaram com vontade o nome de Alírio, que começou a música seguinte, Time Will Come, no teclado que emulava o som de piano. A referência óbvia foi emocionante e rendeu aplausos efusivos ao fim, além de um sincero “vocês são do caralho!” do vocalista. More, cover do Sisters of Mercy, veio em seguida apenas para provar mais uma vez que ficou bem melhor que a original, porque foi em Innocence, com Alírio novamente puxando a canção no teclado, que finalmente tirou este repórter da inércia. Foi de arrepiar e marejar os olhos, e tenho certeza de que eu não estava sozinho.
“Esta é a melhor maneira de homenagear o Andre, porque não dá para substituir o insubstituível. O Shaman vai seguir em frente, e ele sempre estará presente. Vamos compor novas músicas, porque o legado desses quatro caras não poder morrer”, disse Alírio antes da bonita Brand New Me, a primeira amostra deste novo Shaman e que rendeu o nome de Hugo gritado pelos fãs. Com justiça, pois o guitarrista, além de compositor da peça, meteu um belíssimo solo. Here I Am foi obviamente muito bem recebida – afinal, Ritual (2002) é um clássico –, e aí foi a vez de a banda ter seu nome gritado, enquanto Iron Soul manteve o pique para a entrada do primeiro convidado da noite.
“O Andre quer que a chama siga acesa”, disse Marcus Viana, amigo de longa data do saudoso Maestro, com quem o ilustre violinista (e multi-instrumentista) ressaltou que vai se encontrar em outro plano, isso antes de bradar “Viva o Andre Matos! Viva o Alírio Netto! Viva o Shaman!”, e chegara a vez de um dos momentos mais aguardados pelas fãs: Fairy Tale. Curiosamente, a balada que foi trilha de novela da Rede Globo foi apenas aperitivo para um dos momentos mais emocionantes do show. “Muitas coisas passaram pela mente e pelo coração, então preparamos isso para o Andre”, disse Alírio ao anunciar um medley de piano e sua voz com o violino de Viana: Living for the Night, do Viper; Endeavour e No Need to Have an Answer, do Virgo, projeto de Andre com Sascha Paeth; e The Show Must Go on, o emblemático clássico do Queen.
A maravilhosa Born to Be lembrou a todos da genialidade de Andre, porque a música e seus arranjos, principalmente o espetacular desfecho de piano, têm a assinatura singular do Maestro. Hora de apresentar a banda, e Alírio mostrou uma taça com vinho, mas que tinha água antes de ser tocada por Luis – sim, o coro de “Jesus! Jesus!” ecoou forte; revelou a realização de tocar com o “monstro” Confessori; falou de como Ribeiro é um “gênio” (e está mesmo na hora de torná-lo um membro efetivo); e lembrou Hugo “como um dos melhores amigos do Andre, e que sempre me recebeu com um sorriso no rosto”. “Esse é o cara para segurar a bucha”, retribuiu o guitarrista. “Foi a melhor escolha, pelo carinho e respeito que tem pelo Andre.”
Coincidência ou não, Over Your Head foi tocada a seguir com uma vontade impressionante, e Ribeiro, que massacrou o teclado com um solo sensacional, e vocalista foram os protagonistas. Se você estava esperando por isso, fica o registro: Alírio cantou uma barbaridade e, ainda melhor, mostrou respeito ao não emular Andre Matos e personalidade também em sua performance de palco. Ritual antecedeu o protocolar bis, que começou com os mesmos gritos de “Ô, o Shaman voltou!” que, 14 meses antes, haviam arrancado um enorme sorriso de Andre.
“Há vários amigos meus aqui esta noite. É bom estar cercado de pessoas que gostamos e que gostam de você, e hoje eu fiz novos amigos”, disse o vocalista em agradecimentos aos fãs, que foram ao delírio em Lisbon, canção composta por Andre no Angra que atingiu em cheio os irmãos Mariutti, que se acabaram em cima do palco num desfecho cheio de energia. De volta ao palco, Viana vendeu seu show no dia seguinte – com Beto Guedes e 14 Bis, comemorando os 40 anos do Sagrado Coração da Terra – e, além de lembrar suas composições para novelas, deu uma zoada no local que abrigaria a apresentação: “É o Metropolitan, que hoje chamam de quilômetro de desvantagens”, criticou com razão a infeliz escolha do atual nome da casa.
No clima de descontração, Alírio chamou o “carioca” Rod Rossi (Rec/All) para dividir os vocais em Pride, fazendo as partes originalmente gravadas por Tobias Sammet (Edguy e Avantasia), e deu o tom definitivo da noite: deu um stage diving, foi para o meio da roda e voltou para o palco nas mãos da galera, via crowd surfing. O desfecho que ratificou de uma vez por todas que o legado de Andre Matos no Shaman está em ótimas mãos, porque uma coisa já era certa desde o início: gostar ou não é um direito de todos, mas ninguém tem o direito de questionar a decisão de Hugo, Luis, Confessori e Fábio de seguir em frente. Viva Andre Matos! Vida longa ao Shaman!
Setlist
1. Turn Away
2. Distant Thunder
3. Reason
4. For Tomorrow
5. Time Will Come
6. More
7. Innocence
8. Brand New Me
9. Here I Am
10. Iron Soul
11. Fairy Tale
12. Medley: Living for the Night / Endeavour / No Need to Have an Answer / The Show Must Go on
13. Born to Be
14. Over Your Head
15. Ritual
Bis
16. Lisbon
17. Pride